quarta-feira, 8 de junho de 2016

NEUZA MACHADO: ESPLENDOR E DECADÊNCIA DO IMPÉRIO AMAZÔNICO






NEUZA MACHADO















ESPLENDOR E DECADÊNCIA DO IMPÉRIO AMAZÔNICO
O OLHAR INTERATIVO DO NARRADOR DA PÓS-MODERNIDADE

SOBRE O ROMANCE O AMANTE DAS AMAZONAS DE ROGEL SAMUEL












NEUMAC

I  -  O Amante das Amazonas: Ficção Pós-Moderna/Pós-Modernista  de Segunda Geração

É evidente que, em relação às obras, as idéias permanecem sempre breves, e que nada pode substituir as primeiras. Um romance que não fosse mais do que o exemplo de gramática que ilustra uma regra ─ ainda que acompanhada de sua exceção ─ seria naturalmente inútil: bastaria o enunciado da regra. Exigindo para o escritor o direito à inteligência de sua criação, e insistindo sobre o interesse que a consciência de sua própria pesquisa representa para ele mesmo, sabemos que é sobretudo ao nível do estilo que esta pesquisa se realiza, e que no instante da decisão nada está claro. Assim, após ter indisposto os críticos ao falar da literatura com a qual sonha, o romancista se sente repentinamente desarmado quando esses mesmos críticos lhe pedem: “Explique-nos portanto por que você escreveu esse livro, o que significa, o que você pretendia fazer, com que intenção você empregou esta palavra, por que construiu esta frase desse modo?”

Diante de semelhantes perguntas, seria possível dizer que sua “inteligência” não lhe serve para mais nada. O que ele quis fazer foi apenas aquele livro mesmo. Isto não quer dizer que ele está sempre satisfeito com esse livro; mas a obra continua a ser, em todos os casos, a melhor e a única expressão possível de seu projeto. Se o escritor tivesse tido a faculdade de dar uma definição mais simples de seu projeto, ou de reduzir suas duzentas ou trezentas páginas a uma mensagem em linguagem clara, de explicar o funcionamento de seu projeto palavra por palavra, em suma, de dar a razão de seu projeto, não teria sentido a necessidade de escrever o livro. 

Pois a função da arte não é nunca a de ilustrar uma verdade ─ ou mesmo uma interrogação ─ antecipadamente conhecida, mas sim trazer para a luz do dia certas interrogações (...) que ainda não se conhecem nem a si mesmas. 

Com estas palavras de Alain Robbe-Grillet, sobre o novo romance (não apenas francês), o fenômeno literário que marcou o globalizado e caótico século XX (o século que propiciou a difícil transição histórica da modernidade para a pós-modernidade), palavras estas escritas no final da década de cinqüenta, exprimo o meu empenho de dialogar reflexivamente com a obra de Rogel Samuel denominada O Amante das Amazonas  (publicada em segunda edição, em 2005, pela editora Itatiaia de Belo Horizonte). Recupero as asserções de Robbe-Grillet sobre o narrador do século XX (neste momento interativo da crítica literária no Brasil, e neste início de século XXI), porque medito sempre o enigma criador do ficcionista do todo do século passado, independente de sua localização de nascimento, e percebo que as “inovações” ficcionais, daquele momento, continuam hoje sob “renovadas” roupagens, e as questões teórico-críticas (que enlaçam o escritor ficcional), levantadas por Robbe-Grillet, continuam ainda a fazer parte da realidade sócio-intelectual do crítico literário brasileiro. Retomo o assunto, porque, nestes tempos pós-modernos, tempos globalizados, o escritor (seja de qualquer nacionalidade, poeta ou ficcionista ou dramaturgo ou outro direcionamento literário) se coloca na obrigação de explicar a sua criatividade à chamada imprensa cultural dominante. É matéria verdadeira que somente algumas questões visíveis são questionadas, porque, as invisíveis vão estar resguardadas no plano particular do autêntico texto-obra, a exigir que o leitor-especulador do momento histórico de sua publicação, ou de épocas futuras, as venha examinar. Sem o aval das explicações exigidas (uma vez que os textos ficcionais da pós-modernidade são de difícil entendimento), o escritor dos dias de hoje não se contempla reconhecido pela mass media como criador literário, perdendo por tal desvalimento a oportunidade de ser lido, o que, convenhamos, é o anseio normal de quem escreve.
Esta propedêutica, objetivando espelhar a posição do crítico literário atual, se fez/faz-se necessária, porque a enxergo apontada em minha direção, uma vez que, para interagir com a diferenciada obra ficcional de Rogel Samuel, respeitante ao espaço geográfico do Amazonas ─ social e mítico ─, lugar pouco conhecido à minha própria percepção intelectiva, movi-me, inicialmente, em busca das estimáveis explicações do próprio escritor, acauteladas nas diversas entrevistas por ele permitidas aos jornalistas-internautas. (Até ao momento, os grandes jornais do Brasil e a Grande Imprensa Falada e Televisiva não se ocuparam em revelar a seus leitores e/ou ouvintes e/ou espectadores o valor genuíno desta obra ficcional de Rogel Samuel, publicada pela Editora Itatiaia. Excetuo, aqui, as Entrevistas aos jornalistas da Internet, Tânia Gabrielli-Pohlmann  e Luiz Alberto Machado , o reconhecimento valioso e propagador dos dirigentes do Site Blocos On Line, nas pessoas de Leila Micolis e Urhacy Faustino, e a Entrevista por ele facultada ao Professor Renan F. Pinto, da Universidade Federal do Amazonas, transmitida por uma emissora televisiva, restrita aos espectadores de lá).
Por intermédio das Entrevistas, Rogel Samuel ofereceu, aos leitores de seu romance, encaminhamentos seguros sobre a natureza de sua criatividade ficcional a qual reputo como autenticamente Pós-Moderna/Pós-Modernista de Segunda Geração. Autêntica, porque há no momento inautênticos autores que se fazem passar por ficcionistas pós-modernos, mas que são, em verdade, escritores-mercadores de uma literatura de massa sem nenhum crédito no âmbito da Arte Literária. Apenas foram conceituados pela mídia enganosa deste momento sócio-intelectual como bons escritores, para visarem ao lucro em detrimento da qualidade de um texto. O romance de Rogel Samuel, pelo exame teórico-interpretativo-reflexivo, ultrapassa tais exigências comerciais, pelo fato de ser uma narrativa de alto nível criativo e se inserir no que qualifico como peculiar obra pós-moderna.
E eis que imediatamente surge a pergunta (por conjetura, talvez, um dos motivos de aborrecimento de Robbe-Grillet nos anos cinqüenta, quando se revoltava contra as interferências críticas de seu momento): Como classificar um texto ficcional como autenticamente criativo e pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração, se o mesmo ainda não passou pelo crivo do tempo? O texto já não seria normalmente pós-moderno, uma vez que seu autor é nato de uma atualíssima dinâmica social já conceituada como pós-moderna, ou seja, é um indivíduo provindo de uma era específica denominada como Era Pós-Moderna? Outras interferências, já exaustivamente dialetizadas criticamente, poderiam aparecer, no intuito de desqualificar as minhas inferências teórico-críticas reflexivas, uma vez que o mundo, no século XX, se dilatou, e os pseudos críticos, promotores da mass media, abraçados a uma causa imperialista voltada para o consumo literário imediato, evidentemente ligado ao lucro, se fortaleceram, contaminando os leitores emocionais com a chamada literatura de massa (a maior parte vergonhosamente sem qualidade, inclusive sem qualidade paraliterária). Então, como classificar um texto narrativo em prosa, escrito nos anos finais do século XX, como autêntica ficção pós-moderna? Como classificar uma ficção pós-moderna/pós-modernista, que, certamente, irá “incomodar” aos leitores do futuro, obrigando-os a repensarem suas próprias dinâmicas existenciais, incômodo este que, não tenho dúvida, se revelará a partir de um romance diferenciado (e o romance O Amante das Amazonas é diferenciado) escrito nos anos finais do século XX, muito antes de seus nascimentos (dos leitores do futuro, evidentemente).

[A literatura] é algo vivo e o romance, desde que existe, sempre foi novo. Como poderia o estilo do romance ter permanecido imóvel, fixo, quando tudo evoluía ao seu redor ─ bem rapidamente, na verdade ─ no decorrer dos últimos cento e cinqüenta anos? Flaubert escrevia o novo romance de 1860, Proust escrevia o novo romance de 1910. O escritor deve aceitar carregar sua própria data com orgulho, sabendo que não existem obras-primas na eternidade, mas apenas obras na história; e que elas só sobrevivem na medida em que deixaram o passado atrás de si e que anunciaram o futuro. 

Por meu ponto de vista teórico-crítico reflexivo, acrescido de conhecimento intelectual interativo, adquirido a partir do contato permanente com os textos técnicos e/ou artísticos, ponto de vista que não se deixa influenciar por teóricos e/ou críticos de plantão, posso dizer que a ficção pós-moderna/pós-modernista (atenção: de Segunda Geração) de Rogel Samuel irá “incomodar” (retirar da comodidade, induzir a pensamentos dialetizados) o leitor-intérprete de momentos históricos posteriores. Os leitores do futuro irão repensar cada palavra, cada pensamento do autor, e principalmente irão reconsiderar a problemática de um Estado Federativo do Brasil, o Amazonas, um lugar que deveria ser de pura maravilha, mas que se encontra atualmente maculado por alguns interesses internacionais (uma rica minoria de estrangeiros e brasileiros exploradores) que não se coadunam com os muitos interesses nacionais de preservação do meio-ambiente (uma minoria de brasileiros conscientes e trabalhadores). E isto tudo, se houver no futuro um lugar chamado Amazonas. Se houver no futuro um país chamado Brasil, e se entendermos que, no momento, aqui, uma parte dos habitantes ─ grupo pequeno, mas que se posiciona como poderoso ─ se esmera em prol de seu desaparecimento no vasto telão simulacrado do Mapa Mundi.
Contudo, para referir-me ao incomum texto narrativo de Rogel Samuel, o nomeei, no início destas linhas preliminares, como Ficção Pós-Moderna (historicamente) e como Pós-Modernista (esteticamente). Pós-Moderna porque se insere em uma nova era, posterior à Era Moderna (aquela que teve o seu início, na Europa, lá pelos meados do século XV, com o advento do Humanismo Renascentista). Pós-Moderno seria o nome que se convencionou chamar ao momento histórico, depois da cisão que se estabeleceu no mundo pós-capitalista, com a retomada de valores comunitários (de pequenos grupos, e de uma maneira diferente dos valores comunitários da Idade Média, entretanto, não deixará de ser uma retomada). Pós-Modernista porque se instaura a partir de uma cisão com a estética chamada Modernista, implantada no Mundo e no Brasil a partir dos anos iniciais (anos bélicos) do século XX.
Conseqüentemente, vejo-me induzida a novamente explicar as diferenças entre estética modernista (seja de que geração for) e estética pós-modernista, principalmente no que se refira à ficção (computo duas gerações pós-modernistas até ao momento; coloco a criatividade ficcional de Rogel Samuel na Segunda Geração, atual): há diferenças marcantes entre ficção modernista e ficção pós-modernista. Na ficção modernista da última fase (creditada como terceira, a partir dos anos quarenta do século XX, mas avaliada aqui como estética de transição para o pós-modernismo da Primeira Fase), há presença do indivíduo-criador a guiar os leitores até “aos vagos clarões do espírito” , quando repenso aqui o direcionamento filosófico especialíssimo de Gaston Bachelard. São os últimos modernistas (da transição dos anos quarenta ao início dos anos sessenta) escritores epifânicos: João Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, entre outros. Esses ficcionistas privilegiados alcançaram o direito de ultrapassagem dos cogitos (um: linear; e dois: dialético) e de conviverem com o terceiro cogito do pensamento individual. Estou a referir-me apenas aos escritores dos anos quarenta ao início dos anos sessenta do século XX, já assinalados, ficcionistas ímpares, distanciados das exigências moralistas próprias dos anteriores narradores ficcionais da Era Moderna (desde o início do Gênero Narrativo Ficcional como fenômeno da Era Moderna, ou seja, do início do século XVII até ao final do século XIX). Aqueles (os ficcionistas do século XVII ao século XIX) iniciavam seus escritos ficcionais com uma fórmula já elaborada, com princípio, meio e fim, já com regras pré-concebidas, impositivas, de normas e exemplos de vida comunitária, à moda da anterior Era Medieval, se me obrigo a repensar livremente as palavras de Walter Benjamim , sobre o narrador ficcional (narrador exemplar) do início da Era Moderna. Tais reflexões saem, também, de outras fontes do meu próprio cabedal de conhecimento, uma vez que faço parte, irrestritamente, desta engrenagem sócio-cultural pós-moderna interativa. Entretanto, há, neste meu patrimônio intelectual intercambiável, uma vigorosa ligação teórico-reflexiva, embora desde já reformulada, com o ainda importante ensaio de Walter Benjamim.
E, uma vez que me refiro a Walter Benjamim, faz-se necessário explicar que ele repensou sociologicamente e historicamente os narradores ficcionais da Era Moderna, percebendo-os como narradores (prosadores) saudosistas de um passado de glórias mítico-sociais (mesmo que, assim, não seja visível, ao longo de seu texto, escrito antes do término dos anos quarenta). Por intermédio de Benjamim, e de outros pensadores das dimensões sociais, diversificadas, da individualista sociedade moderna, pude observar que os narradores ficcionais modernos (continuo insistindo, da Era Moderna até ao final do século XIX), independentes das diversas orientações estético-ficcionais do período (barroco, romantismo, realismo-naturalismo-impressionismo), se posicionaram como continuadores-saudosistas das normas comunitárias das Eras Antiga e Medieval, anteriores à Moderna (no plano da camada linear e visível, enquanto exigências de normas narrativas). A diferença (e eu me obrigo sempre a uma explicação) está no fato de que os narradores da modernidade (das estéticas assinaladas, a iniciar por Cervantes) descobriram o poder das camadas ocultas, verticais (a partir do iniciante gênero, além da novidade da narrativa vertical em prosa, ao invés dos costumeiros versos narrativos do discurso épico), em confronto com os condicionamentos das ideologias repressivas, individualistas, que já se avizinhavam. Entretanto, é importante esclarecer, não me refiro ao narrador renascentista das narrativas em versos, não há dúvida, narrador também moderno historicamente, pois o mesmo não conheceu o gênero narrativo ficcional, posteriormente, criado e desenvolvido pelo espanhol Miguel de Cervantes. Camões, que escreveu submetido gloriosamente a todos os gêneros distinguidos no século XVI, não logrou conhecer, historicamente, a forma moderna do Gênero Narrativo Ficcional.
Faz-se necessário, também, não confundir o gênero narrativo ficcional com as novelas/romances de cavalaria medievais, escritas em versos e com personagens puros ─ narrativa épica medieval ─, enfraquecidas esteticamente, com o passar dos anos, porque foram adaptadas em forma de prosa, para o gosto dos ávidos leitores burgueses do século XVI e seguintes. Por esse ângulo, aqueles “novos” narradores da prosa moderna (atentar-se para o narrador do Quixote e os narradores da estética ficcional romântica), se posicionaram desiludidos ante a perda da pura heroicidade guerreira ─ própria dos destacados personagens das epopéias em versos anteriores ─, tornaram-se, por intermédio da realidade histórica que os envolvia, personagens desajustados, desequilibrados, buscando novos rumos gloriosos em um mundo disparatado, onde o progresso era a força maior. Entretanto, e mesmo assim, os “estreantes” ficcionistas de então (repito, o primeiro foi Cervantes) iniciaram a “nova” modalidade genérica ancorados firmemente em seus imaginários-em-aberto particulares, pois intuíram que seus personagens, obtidos da realidade sócio-cultural que os envolvia, apesar da fama obtida com o aparecimento daquela “recente” forma ficcional em prosa (repito: prosa diferente das “prosas palacianas” anteriores), deveriam permanecer cultuando a heroicidade do passado, e mereciam ser reanimados pelos narradores-pioneiros daquele momento, apresentando aos leitores apenas personagens mais destacados, com nomes, sobrenomes, etc. (mesmo que fossem problematizados ao longo das narrativas do período).
Assim, as exigências narrativas da Era moderna (narrativas em prosa) acompanhavam, de certa maneira, os fenômenos estilísticos da narrativa épica ─ epopéias antigas e medievais, anteriormente escritas em versos ─, os quais (os fenômenos estilísticos), dali para frente, passariam a ser reavaliados pelo olhar inteligente e a mão recriadora dos reformados humanistas da já finda Era Moderna, transmutados e problematizados ad infinitum. Portanto, e ainda assim, seriam os modernos prosadores os arautos das normas tradicionais inseridas em suas narrativas (a partir dali, em prosa ficcional), exemplos de vida comunitária, apesar das inegáveis mudanças históricas ocorridas naquele momento. Tais personagens ─ com suas vidas desajustadas, desequilibradas, graças ao“novo” momento da humanidade ─ em busca de valores que os tornassem heróicos, uma busca de ajuste ao mundo moderno que se iniciava, à moda heróica da antiguidade, mas, historicamente, impossível de ser readquirida. Mesmo com o “recente” vigorando naquele início, aqueles “novos” narradores modernos continuavam irremediavelmente buscando a “perfeição” das antigas normas guerreiras e míticas do passado. A grande vantagem, ou seja, o sucesso desse gênero narrativo, enquanto gênero diferenciado, deveu-se às exigências sociais da história da civilização ocidental, as quais (naquele momento crucial de uma nova Era) impediam a retomada de “heróis à moda antiga” reconhecidamente comunitários em uma sociedade na qual, a partir dali, imperariam apenas as leis individualistas de um mundo já repleto de impurezas (o personagem antigo e o seu mundo circundante eram naturalmente puros). Por conseqüência, instalavam-se as prerrogativas das narrativas ficcionais em prosa, reprodutoras de realidades possíveis (camadas superpostas), e, ao mesmo tempo, e contraditoriamente, apresentando narradores-principiantes de uma novíssima modalidade genérica, o Gênero Narrativo Ficcional, registrado graficamente no início do século XVII, por Miguel de Cervantes (1602), gênero este reconhecido pelos exigentes teórico-críticos pós-modernos, submetidos atualmente à Ciência da Literatura, como fenômeno da Era Moderna.
Mas, a pergunta permanece: e os escritores pós-modernos/pós-modernistas? Como classificá-los como ímpares, se os mesmos desmistificaram e desmistificam e desmistificarão, por um bom período temporal, suas criações ficcionais? Reafirmo: são autênticos. São esses os verdadeiros revolucionários da chamada literatura-arte deste atual momento histórico (século XXI), porque sabiamente não se consideram criadores excepcionais. Os pouquíssimos eleitos pelo dom da arte literária, neste momento de desajustes existenciais, são os realmente autênticos criadores ficcionais. (E aqui elevo a diferenciada criatividade ficcional de Rogel Samuel, a qual, nas páginas seguintes, será por merecimento indiscutível destacada). São esses ficcionistas atuais (apenas os privilegiados pelo dom da criação literária), os “novos criadores” da estética pós-modernista da Era Pós-Moderna, porque, pelo processo histórico-literário (não poderão apartar-se) rejeitaram, rejeitam e certamente rejeitarão por um considerável período, os dogmas da estética modernista passada.
É importante explicar: os ficcionistas pós-modernistas não rejeitaram os grandes escritores do modernismo e, também, não se opuseram aos escritores de outros gêneros do passado, ao contrário, foram e são admiradores de todos, dos verdadeiros, dos ímpares, mas seus dons ficcionais já não se adequavam e não se adéquam ainda àquele momento modernista da primeira metade do século XX. A dinâmica de vida agora é outra. A rejeição foi na esfera da formalidade (forma), porque os de agora não querem explorar ficcionalmente os conflitos existenciais do indivíduo-criador, e, muito menos, lançar um poderoso olhar demiúrgico, de cima, à realidade fragmentada.
Então, se há rejeição, porque não falar em renovação? Muitos dirão: há semelhança com o modernismo, não há rejeição ─ a marca inconteste de mudança estética. (Assim como muitos críticos literários, ao longo do século XX, se referiram ao Romantismo e Simbolismo, buscando semelhanças inexistentes). Verdade. Há aparente semelhança obscurecendo as diferenças, que são muitas. O escritor da ficção pós-moderna/pós-modernista de Segunda Geração, além de não aceitar dogmas, para a elaboração de seus textos, e de não se ater às revelações epifânicas, àqueles momentos culminantes, insólitos, assinaladores do clímax dos textos, percebe o quanto é difícil narrar, se não há um padrão teórico-crítico preestabelecido que o coloque na categoria de pós-moderno. O padrão aparentemente não existe, porque aparentemente os teórico-críticos da atualidade se recusam a ler com atenção os textos-novidade, uma vez que é muito cômodo continuar a interagir com os escritos literários já sacralizados pelos conceituados “donos do saber”. E, atualmente (no Brasil e no Mundo), os “donos do saber”, ligados à Indústria Cultural, estão a proliferar. Estão ancorados nas redações dos jornais e revistas, nas seções dedicadas à cultura, avaliando como bons os livros que irão render retorno financeiro. E esses muitos valorizam alguns textos insignificantes que o Mercado Propagador se esmera em divulgar, que vão sendo exaltados como “repletos de criatividade”, deixando no ostracismo os realmente valiosos. Mas, acredito, os autênticos resistirão ao crivo do tempo. Os verdadeiros textos-arte ficcionais serão reconhecidos no futuro. Seria interessante que a Indústria Cultural destacasse a qualidade e esquecesse, um pouco, as exigências financeiras (não muito, o dinheiro será sempre necessário ao artista, pois, sem Mecenas provedores, as contas estão aí, para serem pagas).
Entretanto, o leitor massificado não se encontra preparado para entender as mudanças estéticas (não foi devidamente orientado); os bons textos, criativos, são de difícil compreensão para o leitor de vida apressada. Até mesmo o crítico, atualmente, prefere se posicionar como analista-intérprete que seja aceito pelos leitores massificados do momento. Só não percebe (o crítico de hoje) que ele também será avaliado no futuro, e não seria nada interessante ser reconhecido como um “novo Monteiro Lobato”, julgando depreciativamente uma arte inovadora (Monteiro Lobato e a arte diferenciada de Anita Malfatti) e apreciando aqueles que não mereciam ser apreciados (pesquisem); socialmente, colocando-se a favor de uma elite abastada e rejeitando lamentavelmente os menos favorecidos. (Frase de Monteiro Lobato, sobre o camponês brasileiro do século XX: “(...) essa raça a vegetar de cócoras, incapaz de evolução, impenetrável ao progresso” ).
Entretanto, os verdadeiros ficcionistas pós-modernos/pós-modernistas, como o escritor Rogel Samuel, conseguiram e vão conseguindo (o ciclo ainda não se fechou) descartar em seus escritos a agora temporalmente distanciada psicologia interiorizada dos passados modernistas. O meio social, de uns anos para cá, passou a exigir-lhes uma nova deliberação ficcional. Se o mundo tornou-se uma aldeia global desvairada, o ficcionista também terá de registrar e sentir (ver e sentir) criativamente esse mundo aloucado que o cerca. Então, eis as mudanças: as reciclagens intelectuais em forma de prosa ficcional, as assumidas paródias, inteligentemente recriadas, a intertextualização proveniente de diversas matérias genéricas, o ato de tecer e destecer o próprio texto, o tom amigável com o leitor, confidenciando-lhe a sua aparente inabilidade discursiva, a sua falta de pretensão ao estrelato intelectual, tudo isto poderá ser denotado (ou se quiserem, conotado) como autêntica ruptura com os preceitos formais do passado modernismo. Os anteriores (os conceituados modernistas, desde Mário de Andrade com o seu Macunaíma) foram os ficcionistas que se colocaram em uma posição de destaque, olhando o mundo exterior estilhaçado (os últimos estilhaços da Era Moderna), de cima, e comparando-o com seus próprios mundos interiorizados, também estilhaçados pelas exigências sociais, pela perda de suas identidades primitivas e a angustiosa necessidade de resgatá-las. Cada narrador daquele momento (até meados dos anos sessenta) como porta-voz do ficcionista moderno, ou melhor, do ficcionista já em vias de sepultar as exigências das chamadas estéticas modernas. Cada narrador como intermediário de dois mundos, o real e o ficcional, guiado pelo olhar mitificado e a mão poderosa de seu criador, “aquele deus que garantia tudo”, como foi criativamente assinalado nas páginas de A Hora e Vez de Augusto Matraga, pelo ficcionista mineiro Guimarães Rosa.
Entretanto, o mundo agora é outro. O narrador também é outro. Em verdade, agora, o ficcionista pós-moderno/pós-modernista não poderá valer-se apenas de um único narrador. Ao longo das narrativas da segunda metade do século XX até ao momento (das narrativas-obras autênticas), diversas vozes narradores interagiram/interagem com o criador ficcional. São esses narradores, múltiplos, diferentes entre si, que se colocam como arautos do ficcionista desta fase intermediária entre o final do século XX (anos oitenta em diante) e o início do século XXI. Rogel Samuel também formalizou (criou) mais de um narrador: não há apenas um, há outros além do Ribamar de Sousa, e pelo menos mais um poderá ser distinguido pelo leitor “incomodado” (o Ribamar-personagem-narrador de duas realidades singulares, externas e conceituais, complexas ─ sócio-ficcional e mítico-ficcional ─, e o Rogel-poeta-ficcionista-narrador de sua própria dinâmica interioridade).
O mundo agora está tão globalizado e complexo que o escritor-narrador pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração se viu/se vê na contingência de renascer à moda tradicional (o ato de contar uma história atual como se fosse um fato de um passado distante), e, ao mesmo tempo, se multiplicar e dilatar-se ficcionalmente e liricamente (matéria lírica interagindo com a ficcional), a partir de uma forma literária ainda não muito divulgada que lhe apresente os meios de recontar a sua própria realidade (transfigurada) aos leitores do futuro (o que ele viu e sentiu neste momento caótico de transição para o Terceiro Milênio, as suas angústias secretas, impossíveis de serem traduzidas em pergaminho comum, impossibilitadas de serem manifestadas pela voz de um único narrador). São estes os narradores pós-modernos de O Amante das Amazonas: o Ribamar de Sousa, narrador multifacetado (somatório de vozes massificadas que se intercalam para que possam reconhecer a perda nostálgica de um incrível mundo, anteriormente imaculado, um mundo para sempre perdido, graças aos desmandos de uma cultura pseudo-elitista, alienante e massacrante), e o próprio escritor-narrador (também poeta lírico) de forma ficcional epo-lírica, conhecedor de uma realidade fantástica, grandiosa, vigorando para além da simples reprodução da verdadeira e fabulosa Floresta Amazônica. O(s) narrador(es) rogeliano(s) ultrapassando criativamente suas inúmeras leituras teórico-filosóficas-literárias (foram dez anos de pesquisa e reformulações de texto, diz o autor à sua entrevistadora), resgatando o lirismo-epo-ficcional de um lugar ímpar, repleno de “metáforas poéticas”, como ele mesmo assinala, porque somente um ficcionista-poeta, e pós-moderno, poderia criar narradores diferenciados (neo-facies de poetas e narradores: antigos, medievais, modernos e pós). Ou mesmo um único narrador fragmentado que pudesse imobilizar o fluxo narrativo ficcional (em prosa), para observar a poesia (matéria poético-lírica) pairando sobre as águas dos caudalosos rios amazonenses.
Entretanto, com tantas qualidades ficcionais, percebo que o romance não foi devidamente divulgado no Estado de nascimento do escritor, salvo poucas exceções, como a Entrevista de Rogel Samuel ao Professor Renan Freitas Pinto, da Universidade Federal do Amazonas, em 2007. Penso que os intelectuais manauaras não querem reconhecer o talento do conterrâneo (ou só valorizam relatos lineares sobre o Amazonas). E, convenhamos, já é longa a estrada intelectual de Rogel Samuel, inclusive, com o seu nome já divulgado em verbete de Enciclopédia, como a Enciclopédia de Literatura Brasileira, de Afrânio Coutinho e J. Galante de Sousa (Editora MEC); seus poemas já foram incluídos na antologia de Anísio Mello, Lira Amazônica, publicada em São Paulo, em 1965. o Estado do Pará, na pessoa de Carlos Rocque, um diligente divulgador da literatura da grande região amazonense, também o destacou entre os principais poetas do Amazonas, em 1968, na Grande Enciclopédia da Amazônia (publicada em Belém, capital do Estado do Pará). Em 2005, o seu romance O Amante das Amazonas foi matéria de tese da professora paraense Lucilene Gomes de Lima. Nesses mais de quarenta anos, dedicados à literatura e ao reconhecimento do texto literário, como ensaísta e crítico de prestígio, Rogel Samuel publicou muitos poemas em revistas e jornais (foram mais de trezentos poemas publicados até ao momento). Em se tratando de publicação pela Internet, apresentando aos leitores/internautas sua vasta obra literária, Rogel Samuel, além de seu próprio Site do Escritor e de seu Blog, com atualizações diárias, faz parte de um dos maiores Sites de Literatura Brasileira, reconhecido internacionalmente, o Site Blocos On Line, da escritora Leila Micolis. Não percebo tal divulgação por parte de seus conterrâneos intelectuais manauaras. Trabalhei na Universidade Federal do Amazonas, como professora convidada, em 1996, e pude distinguir a chamada “ignorância permitida” em relação à obra literária de Rogel Samuel. Esse “desconhecimento”, permitido pelos intelectuais manauaras, persiste, até aos dias de hoje. Penso muito nesse “descuido” dos amazonenses intelectualizados. Penso que tal “descuido” de conterrâneos sempre acontece com os verdadeiros criadores literários, quaisquer que sejam seus Estados Federativos de nascimento. Os verdadeiros escritores foram (e serão sempre) injustiçados em seus locais de nascimento, em seus momentos históricos. Muitos foram (e muitos ainda serão) pré-julgados pela Indústria Cultural Brasileira (aquela que visa somente o lucro), com a desculpa rasa de que os textos não são de entendimento rápido do público pagante (o que poderia ser classificado como catarse direta). Deste modo, se o Mundo os reconhecer, no futuro, aí sim, serão reverenciados e lisonjeados, e todos disputarão o privilégio de tê-los como conterrâneos.
Penso sempre nos inúmeros descuidos dos intelectuais do Brasil, quanto à criatividade dos escritores e poetas, e, instigada por tais pensamentos, reporto-me às leituras teórico-críticas que costumo considerar, as quais estavam, estão e estarão sempre prontas a inspirar-me, interativamente, quando me vejo propensa a reflexões sobre os nossos ficcionistas e poetas, e, com mais atenção, os nossos grandes escritores-ficcionistas que se revelaram, fenomenicamente, nos últimos decênios do século XX. Penso que apenas esses raros ficcionistas-criadores, geralmente relegados ao ostracismo ou publicando seus textos por conta própria (ou quando recebem a sorte meritória e conseguem publicar por intermédio de alguma editora que não vise somente ao lucro), sem a possibilidade de vendê-los, como seria justo, merecem a minha atenção, porque foram eles (e ainda são eles) que refletem criativamente a problematizada realidade da qual faço parte.
E, graças a esses meus pensamentos, teórico-críticos ou não, dialetizados e revitalizados pelo conhecimento, pelas leituras diárias, reporto-me agora a Anaxágoras de Clazomene.
Perguntaram a Anaxágoras de Clazomene se ele havia perdido a sociedade ateniense e a resposta dele foi rápida e certeira: “Não eu, mas eles me perderam” . Gostaria de fazer pergunta semelhante a Rogel Samuel, autor deste romance pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração que está aqui a mobilizar-me: “Perdeu você, Rogel Samuel, a sociedade dos amazonenses? Se não houver resposta, por parte deste diferenciado escritor, talvez por um natural recato, próprio de quem não se incomoda com lisonjas, responderei, consciente, à minha pergunta a ele dirigida. E eis a resposta que ofereço aos leitores momentâneos de Rogel Samuel e aos leitores do futuro: “Não foi o Rogel Samuel que perdeu a sociedade dos amazonenses, quando de sua vinda para o Rio de Janeiro (para a universalidade), naqueles anos iniciais de 1960, foram eles que perderam a oportunidade de tê-lo como personalidade importante ligada à terra natal ─ o professor, o poeta, o ficcionista, o ensaísta, o cronista ─, uma vez que os conterrâneos deste incomum escritor sempre relutaram (e relutam) em oferecer-lhe a devida consagração, como ficcionista de rara criatividade e, mais ainda, ficcionista, poeta e ensaísta nascido no Amazonas.
II - O Amante das Amazonas: Personagens-Narradores
O(s) Personagem(ns)-Narrador(es) Pós-Moderno(s)/Pós-Modernista(s) de Segunda Geração de Rogel Samuel

Hoje, nosso mundo está menos seguro de si mesmo, mais modesto talvez, uma vez que renunciou à pessoa todo-poderosa, mas também mais ambicioso, uma vez que olha para além. O culto exclusivo do “humano” cedeu lugar a uma tomada de consciência mais ampla, menos antropocentrista. O romance parece vacilar, tendo perdido seu melhor sustentáculo de outrora, o herói. Se não consegue pôr-se de pé novamente é porque sua vida estava ligada à vida de uma sociedade agora extinta. Se conseguir, pelo contrário, um novo caminho se abrirá para ele, com a promessa de novas descobertas. 

Por que o mundo já começa a enxergar o talento ficcional desse escritor pós-moderno, em especial, a partir desta instigante narrativa? Sem o receio dos prováveis contra-ataques (contra-ataques daqueles que não leram a obra e, por isso, dela não gostaram, ou leram mal), posso afirmar: o romance O Amante das Amazonas, enquanto forma literária diferenciada, não é somente a recriação ficcional de estratos múltiplos de realidades amazonenses (sociais, míticas e ficcionais). É muito mais. É uma narrativa que reflete a problemática do mundo, em seus aspectos dilatados. Os Narradores, a Floresta Amazônica, o Palácio Manixi, os Numas, os Caxinauás, Pierre Bataillon, Paxiúba, Zilda, Laurie Costa, o Comendador Gabriel Gonçalves da Cunha e a filha Glorinha Lambisgóia, Ifigênia Vellarde, Zequinha Bataillon, Maria Caxinauá, João Beleza, Júlia, Frei Lothar, Benito Botelho, Estella de Sousa, Mirandinha, Leonildo Calaça, Sabá Vintém, Du Bará, Conchita Del Carmen, e todos os outros importantes personagens (porque são todos importantes e insubstituíveis), poderão ser reconhecidos por leitores de outras partes do mundo. (Certamente, o romance será traduzido em outras línguas, por meio de bons tradutores, os quais saberão respeitar a qualidade do texto ficcional de Rogel Samuel). As traduções, que certamente acontecerão, vão propiciar o reconhecimento desta criação literária-ficcional ímpar, porque os conflitos, ali revelados, são as altercações do homem pós-moderno, atribulado (herança da Era Moderna), suas tentativas de reconstrução sócio-cultural em um mundo globalizado em vias de perder importantes fronteiras culturais. Assim, percebo este romance de Rogel Samuel como criação ficcional ímpar, expondo interlinearmente o contemporâneo meio social, globalizado e caótico, entrópico, e, em se tratando do futuro, enxergo-o como refletor replicante de conflitos atemporais e universais.
Pelo meu ângulo visual interativo, o narrador pós-moderno/pós-modernista (e neste momento refiro-me ao escritor-ficcionista enquanto personalidade ativa adstrita ao seu momento histórico) sintetiza a união da forma de narrar tradicional com a forma de narrar modernista, paradigmática, insólita, dos anos trinta do século XX (início da segunda fase do modernismo no Brasil) ao final dos anos sessenta. (Tradicional aqui significa a forma de narrar sintagmática, linear, heróica, dos narradores antigos e medievais, até ao final do século XVI, e alguns posteriores, com aparecimentos esporádicos ─ sem criatividade ─ nas escolas literárias que foram surgindo. É importante o esclarecimento de que não estou a referir-me ao narrador da Era Moderna, das narrativas complexas, nascido a partir das páginas notáveis de Miguel de Cervantes, no início do século XVII, o qual vigorou até ao final do século XIX, com as variações próprias de cada momento histórico e suas respectivas estéticas literárias).
Reportando-me à tese de Anaxágoras de Clazomene, de que “o homem pensa porque tem mãos” , revisitada por José Américo da Motta Pessanha, no Prefácio ao livro O Direito de Sonhar, de autoria do filósofo francês Gaston Bachelard, repenso esta assertiva de Anaxágoras, permitindo-me transferi-la ao aludido narrador tradicional, anterior à Era Moderna. Por este prisma, procuro reavaliar aquele narrador horizontal, que se esforçou por pensar a realidade (recopilando-a literariamente) resguardado por mãos trabalhadoras, ligadas ao prazeroso exercício de “bem narrar” (bem escrever), mas, ainda, preso a uma “perspectiva anulada” , uma perspectiva exteriorizada, superficial, fenomênica. Assim, o pensar em profundidade ficou interditado, porque as “mãos trabalhadoras” dos narradores antigos e medievais, e dos novelistas eram mais poderosas e só alcançavam pensar as aparências (não me refiro aos romancistas das seguintes estéticas literárias da Era Moderna). Será importante recuperar o fato de que as novelas em prosa (sintagmáticas, sempre conceituais), diferentes dos romances paradigmáticos da Era Moderna, em seu caminhar histórico até ao momento, não lograram transformar-se em ficção-arte, continuaram lineares, e, aos poucos, perderam aquela graça própria dos narradores iniciais, das novelas ou romances de cavalaria em versos, atualmente, já reconhecidos como narradores épico-medievais.
Entretanto, o narrador moderno descobriu que pensava porque tinha “olhos” e mão poderosa (e, aqui, repito, refiro-me aos criadores excepcionais de um tipo de ficção que começou com Miguel de Cervantes, no início do século XVII), aquele narrador da Era Moderna que instaurou, nos meios intelectuais de então, um gênero literário estreante atualmente conhecido por “narrativa em prosa” ou “narrativa ficcional”, para diferenciá-lo da epopéia (Gênero Épico) e das novelas medievais de cavalaria (lineares), escritas primitivamente em versos (posteriormente, adaptadas em prosa, para o gosto dos nascentes burgueses).
O narrador moderno, cujos olhos o obrigavam a ver o momento incógnito de uma novíssima Era desconcertada, amedrontadora,  intuiu que, por intermédio de uma perspectiva dialetizada, o seu ato de narrar alcançaria camadas desconhecidas daquela realidade que lhe estava próxima, escoltado por seu singularíssimo grau de conhecimento do mundo e por sua capacidade de registrar, ao longo de sua narrativa, palavras plurissignificativas, que levassem o leitor a pesquisar os seus vários significados, e, com isto, obrigando-o a interagir com a camada oculta do texto ficcional. O criador desse iniciante ardil ficcional foi Miguel de Cervantes, quando criou a expressão “moinhos de vento”, expressão que remete aos diversos obstáculos enfrentados por seu personagem principal, o Quixote (um herói decaído, impossibilitado de representar os antigos heróis do passado medieval), acompanhado de seu fiel escudeiro Sancho Pança (o personagem-representante legal, racional, da Era que se iniciava). Como bem se pode avaliar, a origem da plurissignificação literária é ficcional; a forma poética lírica a adotou, posteriormente, (A poesia lírica, inclusive a renascentista, anterior ao século XVII, não é plurissignificativa; possui os fenômenos estilísticos do gênero lírico, mas não se vale da plurissignificação, um fenômeno literário da Era Moderna, a partir da estética barroca).
O ciclo de narradores ficcionais modernos, iniciado a começar de Cervantes, termina aqui no Brasil no final do século XIX e anos iniciais do XX, com as narrativas realista-impressionistas, de Machado de Assis a Lima Barreto. Assim, as narrativas ficcionais do século XX, de escritores brasileiros do pós-22, em conformidade com as expressões literárias dos escritores de outros países ocidentais (James Joyce, Kafka e outros), já poderiam ser inseridas, em se tratando de Era, naquela a que denominamos de Pós-Moderna. Segundo os especialistas, há ainda muita dificuldade para um julgamento eficiente sobre o início desta atual Era, pois ela está muito próxima, historicamente, de nossa realidade existencial. Entretanto, penso que o século XX (desde a sua alvorada), presentemente, já poderá ser recebido como o princípio de algo bem diferente da Era anterior. Teria de gastar um tempo distendido para provar tal tese. Por enquanto, não é esta a intenção que me orienta. Mas, de qualquer forma, para o desenvolvimento de minhas reflexões sobre o romance de Rogel Samuel, catalogarei os anos iniciais do século XX como o início desta nova Era, chamada (depois de diversas negações e reprovações) de Pós-Moderna.
Penso que as narrativas dos escritores da segunda fase do Modernismo Brasileiro (a partir do Macunaíma de Mário de Andrade) até aos anos finais da década de 1960, já poderiam ser reconhecidas como narrativas pós-modernas (refiro-me à Era, evidentemente). Por conseqüência, já teríamos, historicamente falando, dois momentos histórico-literários relacionados com o nosso atual momento (estes anos iniciais do século XXI): o Modernismo (da segunda fase até aos anos sessenta, dividido em dois segmentos) e o Pós-Modernismo (dos anos sessenta em diante, já computando também dois segmentos).
Ao chamado Modernismo de Terceira Fase (anos quarenta aos sessenta), percebo-o como um momento de transição para o pós-modernismo literário (estética pós-modernista). Para a valorização da criatividade do escritor brasileiro, foi um momento literário excepcional, com todos os seus grandes ficcionistas epifânicos, os quais souberam guiar, catarticamente, seus leitores ao mais alto grau de interação reflexiva por meio de textos ímpares, iluminados; ficcionistas esses, únicos, cada um diferenciando o estilo criativo de seus escritos por meio de suas peculiares formas, obstruindo o posterior desenvolvimento de textos semelhantes, impedindo a proliferação de plágios, assinados por outros pseudo-escritores. (É lícito lembrar que Cervantes foi vítima de tal conduta por parte de um outro escritor. Depois de sua morte, houve uma continuação das aventuras do Dom Quixote). E aqui vamos assinalar, inclusive, o Modernismo Brasileiro das duas últimas fases, a partir dos anos trinta aos anos sessenta, como estéticas Pós-Modernas (relacionadas à Era), com o advento das mudanças políticas aqui percebidas, mas, também, como reflexo das leituras estrangeiras feitas pelos intelectuais nos anos anteriores, desde o término da Primeira Guerra Mundial. Leituras teórico-críticas importadas principalmente da França, trazidas também pelos professores-pesquisadores e sociólogos franceses, que aqui vinham pesquisar, leituras que refletiam as idéias do denominado “novo romance francês”, o qual desenvolvia a chamada “técnica do olhar” em alta rotatividade, técnica esta já utilizada desde o início do século XX por perspectivas ficcionais diferentes (narrativa paradigmática normal, narrativa de absurdo, narrativa fantástica, narrativa do realismo-mágico), todas, sem distinção, diretrizes ficcionais relacionadas com as chamadas Narrativas de Acontecimento.
Só que os narradores brasileiros, os pós-modernos/pós-modernistas de Segunda Geração, foram além do “olhar” em alta rotatividade dos chamados pós-modernos/pós-modernistas da Primeira Geração (Murilo Rubião, Roberto Drummond e outros). Diverso dos antigos narradores experientes que “tinham mãos para pensar” (teoria de Anaxágoras de Clazomene) e dos narradores modernos (os quais pensavam porque tinham olhos e mãos para escrever), os narradores pós-modernistas (do segundo momento ficcional da Era pós-Moderna até ao momento) passaram a pensar porque tinham mãos criadoras à moda dos antigos narradores, olhos para ver a realidade globalizada, como os pós-modernos/pós-modernistas da Primeira Geração, mas possuindo, concomitantemente, um incomum imaginário-em-aberto, dinâmico, acionado pela capacidade de apropriação e transformação interativa do cotidiano, do conhecimento em todas as suas vertentes, das informações generalizadas, em outras palavras, de tudo o que pudesse instigá-lo criativamente, a partir de sua própria realidade histórica, ou seja, do cheio ao vazio existencial.
Tais quais os anteriores pós-modernos/modernistas do início do século XX, os narradores pós-modernos/pós-modernistas de Segunda Geração foram jogados à pressão do progresso. Mas, diferentes dos anteriores, não quiseram desenvolver um olhar acima da realidade (a partir do segundo cogito dialetizado), não se propuseram a agir como demiurgos, a criar uma insólita realidade ficcional. Exigiram mais de si mesmos. Assumiram uma participação ativa em seus textos ficcionais, posicionando-se como escritores-personagens-narradores, denunciando, inclusive, suas próprias inquietações existenciais, mostrando-se aparentemente fragilizados ante o imensurável de uma degradada realidade globalizada. Preferiram a preocupação com o presente (mesmo simulacrado em passado histórico, ou escrito em presente histórico), ao invés de se reportarem paraliterariamente ao passado real, ou mesmo se preocuparem profeticamente com o futuro incógnito, desenvolvendo a diferente criatividade ficcional por intermédio de uma inquietação revestida por uma simulação da tal realidade (afinal, quem reproduz fielmente a realidade são os cronistas e jornalistas, ou seja, os escritores paraliterários, não os autênticos criadores ficcionais).
As mãos que trabalham (a criação ficcional), os olhos que vêem (o homem como um produto das aparências), ambos acrescidos do imaginário particular ímpar do ficcionista, repleto de conhecimento de que natureza for (mesmo que o ficcionista esteja desiludido por se ver submetido às exigências sócio-ideológicas de seu momento estético), impõem a visão do chamado hiper-realismo, visão transformadora, intensamente grandiosa, abeirando-se ao plano metafísico do sonho. Mas a vida ordinária pós-moderna já é por si um sonho dantesco, os simulacros existenciais são maiores e até mais interessantes do que a própria realidade. Assim, os narradores deste momento da pós-modernidade sonham a realidade que desejam transmitir aos seus leitores (aos leitores do futuro, bem entendido), mas não podem furtar-se à transmissão criativa de tais simulacros. Entre os personagens desses sonhos amplos, resgatados pela mão poderosa, pelo olhar poderoso, e pelo especialíssimo imaginário-em-aberto (imaginário sem limites) do escritor, esses sonhos são antes de tudo reveladores de personagens atuantes, e cada um deles terá de se mostrar repleto de brilho, mesmo que apareça e desapareça rapidamente ao longo do texto ficcional. Por tais motivos, todos os personagens de Rogel Samuel, em seu romance O Amante das Amazonas, são importantes e são atuantes. São todos imprescindíveis ao desenrolar da ficção, porque, mesmo que (alguns) apareçam esporadicamente, ao longo da narrativa, como, por exemplo, a Sabá Vintém, a manicura das ricas senhoras (ela que sabe de tudo o que acontece no ambiente narrado), não poderão ser descartados. São poderosos auxiliares dos narradores rogelianos (quantas informações preciosas foram repassadas aos narradores, por intermédio de Sabá Vintém, ou pela personagem-bibliotecária Estella de Sousa?).
Do princípio ao fim da narrativa, a presença interativa do narrador pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração se encontra visível. Não importa que sejam dois ou mais narradores (invisíveis e passageiros, como a manicura Sabá Vintém ou a bibliotecária Estella de Sousa, ou Benito Botelho, ou qualquer outro personagem), eles se unem como representantes dos narradores do escritor pós-modernista. Os narradores rogelianos, desta diferenciada narrativa, gradativamente, vão hiper-realizando o amplo espaço sócio-mítico-substancial da floresta amazonense, e, posteriormente, o espaço sócio-substancial da cidade de Manaus, transformando-os (os dois universos narrativo-ficcionais) em momentos de criativos e impagáveis espetáculos. É bem verdade que os leitores do futuro merecerão a grandiosidade destas múltiplas visões arrebatadoras de uma Floresta plantada no princípio de tudo, Floresta que ainda faz parte do atual momento histórico da humanidade, com a ressalva de que a mesma, possivelmente, não se perpetuará, pois poderá desaparecer em um dos interregnos do tempo.
Assim reflito sobre os narradores de Rogel Samuel. A história pessoal desse incomum escritor é grandiosa e ela interage com a grandiosidade sócio-mitológica de seu Estado de nascimento. A história pessoal/familiar do autor é grandiosa, o Amazonas é grandioso, assim como aconteceu com João Guimarães Rosa e o Sertão de Minas Gerais. Ficcionistas e Ficções: grandiosos, importantes, perpetuados pelo poder do imaginário alargado. O Amazonas é hiper-fascinante, um repositório de lendas espetaculares, muitíssimo além da imaginação linear. Os narradores rogelianos não são comuns, são avatares excepcionais de vários narradores, ao longo da história do homem (e é exatamente este o conceito que poderemos oferecer aos chamados narradores pós-modernistas de Segunda Geração), os quais vão possibilitando o exagero criativo (e aqui, nesta expressão “exagero criativo” não há nenhuma depreciação crítica), transformando, em se tratando da incomum ficção de Rogel Samuel, o que seria aparentemente normal (os acontecimentos cotidianos da Grande Floresta) em espetáculo grandioso.
Cada capítulo de O Amante das Amazonas é um close que aumenta e ilumina o espaço narrado, um close dilatado pelo olhar ficcional poetizado de um escritor-narrador repleto de matéria lírica. Nas páginas rogelianas, o chamado “simulacro pós-moderno” se agiganta, transformando o Palácio Manixi em um local digno de grandiosas filmagens cinematográficas. Não importa que a história se localize no passado histórico em confronto com um verossímil presente ficcional, o que vale é a representação da mesma no presente cronológico, para que seja reavaliada no futuro, quando a Floresta e seus míticos personagens não mais existirem. Os leitores do futuro se sentirão vazios com a perda, como hoje nos sentimos despejados de um passado de glórias, ao lermos as grandes obras literárias que nos foram legadas. Satisfazemo-nos (os leitores-eleitos reflexivos) com os preenchimentos prazerosos ou mentalizados desse vazio, com nossas incomodações culturais, com nossa ânsia de crescimento intelectual.
Mesmo que o autor afirme, em suas Entrevistas, que, desde as primeiras páginas, imitou os autores amazonenses da época do auge da borracha, os quais também foram imitadores de Euclides da Cunha, mesmo que diga que a sua obra, como um patchwork quilt (só para expressar-me como os autênticos críticos brasileiros pós-modernos, os quais preferem reverenciar as expressões estrangeiras, em detrimento de suas falas tupiniquins), explicita as suas dilatadas leituras teórico-filosóficas, posso afirmar que o todo de sua narrativa se vale da intencionalidade ficcional. A intencionalidade ficcional vai segurar e assegurar o diferente fio narrativo, transformando em novidade, em criação, o já instituído. A visão distendida de Rogel Samuel sobre o seu espaço romanesco é maior do que as informações que ele colheu nos livros (em suas leituras filosóficas ou ficcionais). É uma visão transcendental, particularíssima, que ele procura desmistificar, como se ele não tivesse o direito de reivindicar a autoria plena de seu texto ficcional. Ele “finge” saber menos do que os seus personagens (“o poeta é um fingidor”, já disse Fernando Pessoa), por isto a criação de dois narradores visíveis, fora os invisíveis que muito contribuíram. Por meio dessa aparente simulação, ele refez/refaz os aspectos e atitudes dos personagens perante a vida na Floresta, evitou/evita os juízos pré-concebidos dos leitores desatentos, mas o propósito de criação ficcional permaneceu/permanece direcionando o fio narrativo. Seus narradores expuseram/expõem (e vão continuar a expor) seus pontos de vista sobre a realidade da Grande Floresta, sobre aquele lendário universo que eles desejaram/desejam perpetuar, para apresentá-lo aos leitores do futuro. A criação ficcional é alguma coisa que independe de preço, porque a história do conflito entre as duas realidades – a social e a mítica – poderá ser reavaliada futuramente, quando os “verdadeiros” leitores de Rogel Samuel, desconhecedores dessas passadas durações grandiosas, começarem a interagir com as camadas ocultas de seu romance pós-moderno/pós-modernista. Enquanto não aparecem esses futuros leitores, naturalmente os leitores privilegiados, aproprio-me de minhas reflexões e passo a afirmar que, se há mais de um narrador atuando, isto prova a intencionalidade ficcional. E se suas faces são incomuns, reduplicadas, estas são próprias das autênticas narrativas ficcionais da pós-modernidade.
Enquanto o(s) narrador(es) rogeliano(s) refletem os atuais problemas insolúveis da Grande Floresta e, por acréscimo, os problemas da cidade de Manaus (e o personagem pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração desta diferente narrativa ficcional é a Floresta Amazonense), a autêntica criatividade ficcional de Rogel Samuel vai-se materializando ante o entendimento catártico do leitor do presente (e assim será com o leitor do futuro). Tal intencionalidade do(s) narrador(es) de Rogel Samuel, resguardada evidentemente por uma linguagem especialíssima, vai permitindo que os movimentos e percepções dos personagens, restritos ao interior da Grande Floresta, se presentifiquem, revelando aos leitores uma específica realidade, saída do particular conhecimento do criador ficcional, conhecedor, por sua vez, dos diversos graus da chamada “linguagem figurada”.
E, graças a esse conhecimento anti-convencional, o(s) narrador(es) desta ficção rogeliana, em particular, vão interagindo com a intertextualidade, aquela intertextualidade que já foi considerada a marca de nascença das narrativas do final do século XX. Os estudos literários, as análises e interpretações, as sistematizações de textos-base (e foram muitos os textos-base sistematizados, segundo o próprio escritor) possibilitaram a transformação da Grande Floresta em ocorrência maravilhosa (atentar para a etimologia desta palavra). A Grande Floresta como espetáculo, dinâmico, interativo, e que, a qualquer momento, atingirá também outras mentes, aquelas que ainda não tiveram o privilégio de dialogar com este instigante texto ficcional.
Se há intertextualidade, esta se liga aos assuntos míticos da Floresta, às questões políticas do Amazonas, às reflexões particulares do autor. Essas controvérsias, diversas e desencontradas (ou se quiserem ajustadas), colocam em destaque, apenas, um personagem principal. E este personagem principal é a própria Floresta, com seus segredos e alucinações, uma Floresta estranha e diferente, terrivelmente insólita, Floresta que nenhum outro escritor amazonense da atualidade conseguiu resgatar, criativamente falando, em forma de ficção (apenas o escritor Rogel Samuel, nobilitado no terceiro cogito da consciência singular).
A visão do(s) narrador(es) rogeliano(s), em um primeiro momento, poderia ser considerada como uma “visão de fora”, ou seja, uma visão de narradores de narrativas pós-modernas/pós-modernistas projetando a objetividade da câmara (como querem os estudiosos da ficção da pós-modernidade), mas, a valorização da Floresta Amazônica, subentendida, é maior do que a objetividade alienante. Mas é também esta aparente “visão de fora” que impede a análise psicológica, tão do gosto dos anteriores pós-modernos-modernistas. Ela se calca nas invenções do século XX, como o cinema e a televisão. De certa forma, relaciona-se com o novo (já antigo) romance francês da década de quarenta, mas não se prende totalmente a essa forma narrativa, também conhecida como a “escola do olhar” (de Robbe-Grillet, Claude Ollier, Jean Ricardou; ou mesmo, dos escritores portugueses do pós-sessenta ao final dos anos oitenta: Augusto Abelaira, Almeida Faria e outros), ao contrário, nesta fase atual, dos anos noventa até ao momento, o imaginário-em-aberto do escritor pós-modernista de Segunda Geração se dilatou. Os dois narradores desta narrativa de Rogel Samuel se apresentam em pessoas diferentes: o Ribamar de Sousa em primeira pessoa e um segundo narrador em terceira pessoa. São os alternados egos do próprio escritor amazonense se confundindo com os inúmeros personagens, todos importantes, todos eles fases-faces do próprio criador. Além disso, há muito mais: esses narradores são porta-vozes de quem escreve, porque, ao longo da narrativa, percebe-se que, independentes das assumidas colagens (colchas-de-retalho ou patchwork quilt), aqueles que enunciam (anunciam) têm poder, possuem o poder dos que se colocam como testemunhas importantes, de momentos incrivelmente importantes, momentos do próprio autor, nato de um lugar que se localiza para além da imaginação comum, resguardados pelos mistérios ocultos, mistérios diferenciados subjacentes na Imensurável Floresta Amazonense.



III - A Narrativa e os Personagens

No princípio, o texto imita os autores amazonenses do auge da época da borracha, que eram imitadores de Euclides da Cunha. 

Para o critério de um resultado considerável de meu pensar reflexivo, sobre o romance O Amante das Amazonas, de Rogel Samuel, o préstimo da Entrevista do autor à jornalista Tânia Gabrielli-Pohlmann aparecerá, aqui, como registro às minhas induções analítico-fenomenológicas sobre sua diferenciada criatividade ficcional. Por este auxílio do próprio escritor, entendo os desempenhos dos dois narradores deste relato ficcional, sobre o esplendor e decadência do Império Amazônico, como autênticas rubricas pós-modernas/pós-modernistas de Segunda Geração. Verifico, outrossim, por meio de uma reflexão teórico-crítica abrangente, que o Ribamar-Narrador poderá ser avaliado como alter ego do escritor comprometido com suas leituras diárias, e, ao mesmo tempo, propenso a impregnar-se criativamente das mesmas, transformando-as em fontes de produção literária ficcional.
Diz Rogel que, no princípio, o seu texto buscou imitar os autores amazonenses do auge da época da borracha, que eram também imitadores de Euclides da Cunha. O fato é que o escritor de Os Sertões, aquele que tanto se impressionou com os problemas do sertanejo, principalmente os habitantes do Alto Sertão (os realmente “fortes”), em confronto com os “enfraquecidos” sertanejos da caatinga (os próximos, do “brejo”, onde, à época, desnutridos, a seca os exterminava com maior facilidade), ao visitar a região amazonense, e ao escrever sobre a mesma, impressionou-se teluricamente (atentar para a etimologia da palavra), legando aos historiadores (e apreciadores de impecáveis estilos literários) sensibilíssimas páginas de puro encantamento, mas não logrou traduzir em palavras plurissignificativas ─ criativas ─ aquilo que entendo por verdadeira arte literária (fosse no âmbito da miséria humana, que grassava no Amazonas do princípio do século XX, ou da beleza estonteante de um lugar reconhecidamente de pura maravilha e incríveis singularidades). Euclides da Cunha, diferente de sua atuação como criador ímpar em Os Sertões, em seus textos sobre o Amazonas, ao ocupar-se das virtudes e/ou os problemas daquela região, não alcançou (pelo meu ponto de vista), no âmbito da criação literária, suas peculiaridades riquíssimas, atuando, por outro lado, como repórter impressionista, a observar tensamente, mas por uma ótica sintagmática, as inúmeras mazelas que assolavam aquele “paraíso” já maculado por exigências capitalistas (o que poderia ser um dado singular no espaço da criatividade paradigmática), excluindo assim a possibilidade de recriar o ambiente da Floresta artisticamente e de obter o ensejo de transformar aqueles textos (reconhecidamente de impecáveis qualidades discursivas, no entanto, lineares) em algo “incômodo” (incomum criação literária) para os leitores de sua época e para os leitores do futuro.
Euclides da Cunha colocou o Amazonas à margem da história pois se encontrava submisso à idéia de que a região estava separada dos ideais políticos do Novo Mundo Americano, desde a conquista colonial dos espanhóis ao norte da América do Sul (século XVI) e, posteriormente, século XVII, de 1580 a 1640, quando os reis espanhóis se apropriaram do trono português e da Colônia do Brasil. A verdade é que o anterior pensamento euclidiano permaneceu incólume até aos anos finais do século XX, porque a região amazônica resistiu aos liames da colonização espanhola nos países fronteiriços, à época colonial, e, posteriormente, à colonização portuguesa da Terceira Dinastia Orleans e Bragança, após à regeneração. Até meados do século XIX não se tornaram notórios, naquelas paragens do Estado do Amazonas e Acre, mais próximas da fronteira com Peru e Bolívia, os conhecidos, historicamente falando, assentamentos comerciais dos colonizadores. Esta constatação evidencia a sobredita “marginalidade” constatada por Euclides da Cunha nos anos iniciais do século XX. O que Euclides percebeu e comprovou, em seu escrito documental sobre a região amazônica, próxima às fronteiras de domínio espanhol, é que a “marginalidade” do território, apesar dos aventureiros que ali se estabeleceram desde o início da colonização, principalmente os não-portugueses ou pouquíssimos portugueses, se encontrava politicamente aquém do desenvolvimento colonial das outras regiões do Brasil.
Por este ângulo, percebo o Manixi rogeliano, originário do final do século XIX, um Manixi governado por um ditador sui generis de origem francesa. Enquanto os espanhóis, primeiramente, e portugueses, posteriormente, colocaram a região distanciada dos valores aproximados das antigas regras coloniais, transformando-a numa espécie de local periférico, um lugar desconhecido, onde poucos aventureiros ousavam explorar, lá pelos idos do século XVIII e início do XIX, aventureiros de outras nacionalidades por ali aportaram, submetendo alguma etnias indígenas e os caboclos ao seus domínios. Na verdade, os colonizadores (espanhóis e portugueses) possuíam extensões de terras brasileiras menos problemáticas para a colonização e, por isto, não persistiram na busca exploratória, devido às dificuldades de locomoção, às doenças tropicais, aos ataques dos indígenas, aos ataques dos animais ferozes da Floresta, e muitos outros empecilhos. Tais embaraços não perturbavam os aventureiros de outros reinos europeus, em seus anseios de domínio e enriquecimento de livre comércio. Sobre esse itinerário dificultoso, o narrador-personagem de Rogel Samuel, o Ribamar de Sousa, iniciando a sua viagem ficcional em 1897, oferece-me informações estimáveis:

Porém embarcado chegaria em Manaus sem tropeços depois de 6 dias de viagem a 8 milhas por hora. E 2 dias mais tarde passava pela Boca do Purus, 5 dias após entrava na Foz do Juruá. Não navegávamos dia e noite? Na Foz do Juruá o Rio Solimões mede 12 km de largura e pássaros de vôo curto (o jacamim, o mutum, o cojubim) não conseguem atravessar, morrendo cansados afogados no fundo de ondas pinceladas de amarelo da travessia. Em 8 dias de navegação pelo Juruá chegávamos no Rio Tarauacá e atracávamos em São Felipe, de 45 casas, vila bonita, e arrumada. 9 dias depois entrávamos no Rio Jordão, de onde não prosseguiu o Barão, que não tinha calado, a gente seguindo desse modo de canoa pelo Igarapé Bom Jardim, subindo pois e encontrando nosso termo e destino, a ponta do nosso nó, o término, o marco extremo de nós mesmos, o mais longínquo e interno lugar do orbe terrestre ─ atingíamos finalmente o Igarapé do Inferno, limite do fim do mundo onde se encontrava, e envolto no peso de sua surpresa e fama, o lendário, o mítico, o infinito Seringal Manixi ─ 40 dias depois de minha partida de Belém, 3 meses e 5 dias desde a minha partida de Patos. 

Mas não disse que vinha à procura de Tio Genaro e meu irmão Antônio, aviados no Manixi. Não. Pois eles tinham sido trabalhadores seringueiros do Rio Jantiatuba, no Seringal Pixuna, a 1.270 milhas da cidade de Manaus, onde anos depois naufragaria o Alfredo. Eles freqüentaram o Rio Eiru, numa volta quase em sacado, e dali partiram em chata, barco e igarité até ao Rio Gregório, onde trabalharam para os franceses, e de lá partiram para o Rio Um, para o Paraná da Arrependida, aviados livres que eram, subindo o Tarauacá até o ponto onde dizem foi morto o filho de Euclides da Cunha, que delegado era, numa sublevação de seringueiros. Depois viajaram. E foram para o Riozinho do Leonel, seguiram para o Tejo, pelo Breu, pelo belo Igarapé Corumbam – o magnífico! –, pelo Hudson, pelo Paraná Pixuna, o Moa, o Juruá-mirim até o Paraná Ouro Preto onde, pelo Paraná das Minas entraram pelo Amônea, chegando ao Paraná dos Numas, perto do Paraná São João e de um furo sem nome que vai dar num lugar desconhecido. 

Os aventureiros europeus, como os franceses e alemães, à época, por não se acharem os “donos” da Colônia, penetraram naquele templo de pureza mítica, conhecido como Floresta Amazônica, com a intenção evidente de apropriação do local. O fato era que os colonizadores espanhóis e/ou portugueses, cada um em seu tempo histórico, estavam mais preocupados com a costa brasileira, alvo de vários ataques de navios piratas (ingleses, holandeses, franceses), do que propriamente, por motivos óbvios, com a região amazônica da fronteira latino-americana: julgavam que terras tão inóspitas não iriam merecer a atenção dos aventureiros de outros reinos de Além-Mar. Por este aspecto, retomando as minhas inferências sobre o Manixi ficcional rogeliano, a partir do reconhecimento histórico de uma região sem igual, além de repensar a presença do personagem francês Pierre Bataillon, como chefe importante da região, medito sobre a presença missionária dos padres católicos alemães, na figura do personagem Frei Lothar, objetivando catequizar os indígenas e mestiços, mas sofrendo os males da expatriação, afundando-se no desmazelo corporal e no vício da bebida, e, conseqüentemente, na desilusão espiritual.
O valor histórico dos textos de Euclides é inestimável. Os textos, sobre a realidade amazonense do início do século XX, são bem elaborados (não há como contestar a capacidade discursiva do escritor), há ali a marca dos que sabem escrever e transmitir pensamentos e conhecimentos em forma de narrativa, mas, reafirmo, não há o “desconforto” verticalizante do texto artístico (a possibilidade de o leitor interagir com os cogitos superiores do escritor). Por exemplo, a Ilha de Marapatá, para Euclides, é o “mais original dos lazaretos ─ um lazareto de almas! Ali, dizem, o recém-vindo deixa a consciência...” . Esta horizontal informação de Euclides não atinge o cogito reflexivo do leitor, em outras palavras, não promove a “eternização” literária do lugar, mesmo que demonstre textualmente que a Ilha de Marapatá é o espaço da angustiante solidão. No entanto, o Pós-Moderno/Modernista de Primeira Geração Mário de Andrade recebeu a informação, com certeza por via euclidiana, avaliou-a, e soube transformá-la em ficção-arte. Com sua capacidade de interagir criativamente com as palavras, Mário de Andrade obsequiou os leitores de seu presente histórico (e os do futuro) com uma lendária Ilha de Marapatá, onde seu personagem Macunaíma havia deixado a consciência ao sair para o espaço universal.
Rogel Samuel foi além: informou-se intelectualmente, viu os problemas e as virtudes de perto (problemas e virtudes amazonenses que sempre fizeram parte de sua vida), pensou e repensou o espaço de concepção de sua obra ficcional e o transformou em singularíssima narrativa. A Grandeza do Mítico-Ficcional (não é o mítico da epopéia em versos), a Floresta Imensurável, o Igarapé do Inferno como Limite do Fim do Mundo, todos os símbolos transmutativos que vigoram e se revigoram no discurso narrativo de Rogel, a partir de sua criativa intuição, desvelam gradativamente a Floresta Mítica e a Cidade (Manaus ou todas as Cidades do Mundo); descobrem-na, enquanto dimensão de normas capitalistas, rodeada nestes tempos pós-modernos por um arcabouço mítico. O amoroso olhar do escritor, nascido e criado ali, conhecedor de todas as frestas e sinuosidades do lugar, “olhar atuante” auxiliado por sua influente mão de criador ficcional e por um terceiro cogito singularíssimo, mapeou, horizontalmente e verticalmente, a Grande Floresta Amazonense e a Cidade de seu nascimento, oferecendo-lhes vida ficcional (a verdade da ficção), por meio de uma singular imaginação dinâmica, duradoura.
A narrativa O Amante das Amazonas apresenta-se (e apresentar-se-á no futuro) como incomum ficção transmutativa. Enquanto houver leitores que visualizem dinamicamente o entrelaçar das mensagens reveladoras, ao interagir com os ditos e os não-ditos de Rogel Samuel, os pecados e as virtudes dos seres humanos, a Floresta Amazonense e a cidade de Manaus sempre se revitalizarão. Assim, por intermédio de minha ótica particular (embasada certamente por anos e anos de contato interativo com o texto artístico), Euclides mostrou estaticamente o que viu, ou seja, a realidade amazonense do início do século XX por meio de um impressionismo marcado pela razão planificada do forasteiro-escritor. As “neo-impressões” ficcionais de Rogel Samuel saem de sua inteligência “animada”, saem de seu imenso amor pela terra natal. Nas páginas de O Amante das Amazonas há constante movimento. Há uma Floresta vibrante onde uma sutil música se espraia e os barulhos cotidianos quase se tornam reais (os ruídos da Floresta). Ali, os fatos vão acontecendo paulatinamente. O mesmo se revela quando a criatividade do ficcionista se volta para a cidade de seu nascimento: há movimento no Bar do Bacurau, “no início da João Coelho” , e, “proeminente, bêbado, apoiado no balcão”, Mestre Benito Botelho indagará ad infinitum (ou seja, enquanto houver um leitor incomodado) “o sumiço do filho de Pierre Bataillon no fundo da floresta amazônica”. Quanto a Conchita Del Carmen, permanecerá repleta de vida (vida ficcional), comandando a Rua das Flores (enquanto a narrativa existir e houver leitores para oferecerem-lhe dinamismo supravital). O conflito entre os espaços sócio-substancial e mítico-substancial se revela assim em toda a sua grandeza e movimento diante do leitor. O Manixi é o lugar da contenda. A Cidade de Manaus também. Ali, na Floresta versus Cidade, os dois espaços (o social e o mítico) se unem e se digladiam (se digladiarão permanentemente nas três dimensões da ficção rogeliana, ou seja, nas dimensões da arte ficcional). Ali, dois poderes se enfrentam.
Entretanto, apesar do ou graças ao conflito, a partir da página oitenta e nove, um novíssimo narrador rogeliano se obrigou a surgir para revelar aos leitores que, desde o início da narrativa, o interregno capitalista esteve ali presente (o lado capitalista do Manixi), ansioso por destruir a grandeza mítica do lugar. Subitamente, aparecem ratos na narrativa. Os dois poderes não poderão permanecer juntos naquele espaço efervescente de transição. Um deverá destruir o outro. A mudança narrativa instiga o leitor interessado. Ele terá de descobrir (se houver ou não um fecho narrativo tradicional) quem sairá vencedor. Quem está despojando a grandeza da Floresta Amazônica? Como desvelar o Manixi (o Palácio e as terras que o rodeiam) ao longo da narrativa rogeliana? Por que “o sumiço do filho de Pierre Bataillon, um homem que vivia debaixo do ouro no Alto Juruá, permanece encoberto de tal mistério, sempre um acontecimento mitificado na imaginação do povo amazonense e acreano, e todas as hipóteses, levantadas então, não se puderam justificar, nem explicar”? Por que a Cidade de Manaus revela-se, na segunda etapa da narrativa como segundo espaço de mediação ficcional? E os ratos? Por que os ratos? Há ratos na Floresta. Há ratos na Cidade. Há “ratos” entre “as tábuas do chão”, “ratos” como “um traço cinematográfico, contínuo”, um “corroer” que incomoda, ativando a sensibilidade e a inteligência do leitor, demonstrando que, holisticamente, há “ratos” em todas as partes do mundo a abalar os primordiais e puros alicerces da civilização. Não foi o narrador Ribamar (o narrador tradicional das histórias contadas e relidas) que viu os tais ratos, foi o outro narrador (o das histórias lidas, relidas e inúmeras vezes repensadas), porque somente um narrador, capacitado para tal função, poderia formalizar criativamente o início da decadência da época da borracha (aquele que vê “o risco preto no chão” , ou seja, o início da decadência do plano das exigências conceituais a interagir com um discurso saído da própria “consciência fervilhante” (Gaston Bachelard).
Ainda repensando as minhas inferências sobre Euclides da Cunha, em relação à sua escrita sobre o Amazonas, conscientemente distanciada dos juízos substanciais, o engenheiro-escritor do início do século XX não logrou alcançar as dinâmicas peculiaridades do lugar, atuando como escritor-repórter, sintagmaticamente diante dos contrastes que estavam à sua frente (não criativamente e paradigmaticamente ao seu redor), ou seja, miséria versus riqueza. Devo esclarecer que não me refiro ao Euclides, enquanto autor da obra Os Sertões. Em Os Sertões, ele escreveu sob a pressão da autêntica criação literária (não importa aqui a forma genérica). Falo agora do Euclides que recebeu a missão de escrever sobre o Amazonas. Havia um contrato a ser cumprido com o Barão de Mauá. Euclides, apesar de preso a uma incumbência, enquanto escritor, desejava escrever uma grande narrativa sobre o Amazonas, mas, como chefe da Comissão Mista Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Alto Purus (sua função era demarcar a fronteira entre o Brasil e o Peru), ao se defrontar com a realidade daqueles homens que vinham de outros Estados (principalmente, aqueles que fugiam da seca do Nordeste), o ímpar criador de Os Sertões desaparece para oferecer o lugar ao engenheiro-repórter, observando racionalmente o homem da Floresta a trabalhar “para escravizar-se” . Asserto que, naquele momento, a atenção de Euclides estava voltada para as questões lineares que o cercavam. Entretanto, a apresentação do problema em forma de narrativa sintagmática não deixou um intervalo em branco (as entrelinhas do texto-arte) para as reflexões dos leitores exigentes. Os problemas realçados eram do conhecimento de todos, naquele início de século XX, continuam sendo do conhecimento geral. Penso que os “ratos” da escrita de Rogel Samuel, à época, estavam gordos e dominavam o lugar, subjugando a população desvalida, lançando-a na miséria e na doença. Daquele modo, foram eles (os “ratões”) que abalaram os alicerces míticos e sociais da cidade de Manaus e da Floresta (a que vai desaparecendo). E nas páginas do romance, as frestas negras da ambição desmedida favoreceram a decadência do Império da Borracha e o lento desenrolar da ordem e progresso no Brasil.
IV - Ribamar de Sousa: Narrador-Personagem Exemplar?

Um personagem, todo mundo sabe o que a palavra significa. Não é um ele qualquer, anônimo e translúcido, simples sujeito da ação expressa pelo verbo. Um personagem deve ter um nome próprio, composto se possível: nome de família e prenome. Deve ter parentes, uma genealogia. Deve ter uma profissão. Se tiver bens, melhor ainda. Enfim, deve possuir um “caráter”, um passado que tenha modelado este e aquele. Seu caráter dita suas ações, faz com que reaja de uma determinada maneira a cada acontecimento. Seu caráter permite que o leitor o julgue, que goste dele ou o odeie. É graças a esse caráter que, um dia, ele legará seu nome a um tipo humano que aguardava, seria possível dizer, a consagração desse batismo.

Pois é necessário ao mesmo tempo que o personagem seja único e que se eleve à altura de uma categoria. Precisa de muita particularidade para se tornar insubstituível, e suficiente generalidade para se tornar universal. Variando um pouco, a fim de dar uma certa impressão de liberdade, seria possível escolher um herói que parece transgredir uma dessas regras: uma criança achada, um desocupado, um louco, um homem cujo caráter incerto apronta aqui e ali uma pequena surpresa... entretanto, não haverá exageros neste caminho: é o da perdição, aquele que conduz diretamente ao romance moderno.

Com efeito, em relação a este ponto nenhuma das grandes obras contemporâneas corresponde às normas da crítica. Quantos leitores ainda se lembram do nome do narrador em A Náusea ou no Estrangeiro? Há aí tipos humanos? Pelo contrário, não seria o maior absurdo considerar esses livros como sendo estudos de caráter? E Voyage au bout de la nuit descreve um personagem? Por outro lado, acredita-se que foi por acaso que esses três romances foram escritos na primeira pessoa? Beckett muda o nome e a forma de seu herói no decorrer de uma mesma narrativa. Faulkner, de propósito, dá o mesmo nome a duas pessoas diferentes. Quanto ao K. do Castelo, ele se contentará com uma inicial, não possui nada, não tem família, não tem rosto; provavelmente não é nem mesmo agrimensor.

Seria possível multiplicar os exemplos. De fato, os criadores de personagens, no sentido tradicional da palavra, só conseguem nos propor fantoches em que eles mesmos já deixaram de acreditar. O romance de personagens pertence inteiramente ao passado, caracteriza uma época: a que marcou o apogeu do indivíduo. 

Pois que esta narrativa ─ paródia de romance histórico que define com boa precisão esta minha tardia confissão ─ vai-lhe revelar a vida tão surpreendente de Ribamar de Sousa, aquele adolescente que eu era, aparecido num inesperado dia de inverno da Amazônia dentro da chuva compacta de um ostinato extremamente percussivo em comandos de improvisação de uma partitura imaginária, ecológica, de acordes politonais (...) 

Mesmo compreendendo a posição despojada do criador ficcional pós-moderno-pós-modernista de Segunda Geração, ou seja, do próprio escritor de O Amante das Amazonas, a instigar o leitor ao desnudamento de sua obra ficcional, não posso deixar, servindo-me das palavras de Robbe-Grillet, de contrastar-me às suas palavras. Seu personagem-narrador Ribamar de Sousa não imita os escritores amazonenses do período do auge da borracha. Esses escritores certamente imitaram Euclides da Cunha, uma vez que temporalmente ainda estavam próximos dele. O Ribamar, enquanto alter ego do narrador/ficcionista pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração, ultrapassa as barreiras do “semelhante” (característica de plágios mal formulados) e aventura-se no plano das invenções literárias maiores. Como narrador restrito a um determinado momento estético-social diferenciado (final do século XX), inicialmente como voz representativa do imigrante nordestino a fugir da seca e da fome intermitentes, o Ribamar de Sousa jamais poderia “imitar” o estilo ou mesmo o discurso de um narrador que se configurou nos primórdios do século XX. Mesmo que o narrador de Rogel Samuel se apropriasse de frases inteiras, explícitas, de outros escritores que se preocuparam com os assuntos da Grande Floresta Amazonense, de outros momentos estéticos do passado, ainda assim esses pensamentos já se posicionariam renovados, pois os mesmos já estariam submetidos ao imaginário de sua própria contemporaneidade. Se o texto ficcional de Rogel se revelasse como obra sem valor, como reformulações de outros textos (ficcionais ou não) de outros autores, de épocas passadas, não ofereceria espaço para uma fértil mediação crítica.

Pois, se as normas do passado servem para medir o presente, servem também para construí-lo. O próprio escritor, a despeito de sua vontade de independência, está em situação numa civilização mental, numa literatura que só pode ser a do passado. É-lhe impossível escapar de um só dia para o outro dessa tradição em que se originou. Às vezes, mesmo, os elementos que ele mais tentou combater parecerão, pelo contrário, desabrochar mais vigorosamente do que nunca na mesma obra com a qual ele acreditava assestar-lhe um golpe decisivo; e, bem entendido, será felicitado com alívio por tê-los cultivado com tanto zelo. 

As citações ao longo dos textos ficcionais pós-modernistas, inclusive as não nomeadas, sustentam o fluxo narrativo diferenciado do escritor da Era Pós-Moderna. Augusto Abelaira, ficcionista português, revelado para o mundo a partir dos anos cinqüenta do século XX, valeu-se de uns versos de Carlos de Oliveira, intitulado “Bolor”, para escrever o seu diferente romance pós-modernista português, inclusive, apropriando-se criativamente do título. O romance Bolor, publicado em 1968, exibe, na página inicial, o poema de Carlos de Oliveira, colocando-o como parte integrante da ficção. Ali, segundo Theodor Adorno (que faz a apresentação da edição brasileira de 1999 da Editora Lacerda, leia-se Editora Nova Aguillar), observa-se “um livro inteligente” . Para Theodor Adorno, conceituado crítico literário, “Bolor exibe à tona do enredo uma armadilha: quem escreve o diário? Pois de um diário se trata, embora não se paute exatamente pelas convenções do gênero” . O ficcionista mineiro Roberto Drummond, escritor que passou a ser conhecido no início dos anos 70, ao editar a sua coletânea de contos A Morte de D. J. em Paris, contos que procuravam “derrubar padrões pré-estabelecidos”, segundo palavras do autor, inaugura a coletânea com versos de Bob Dylan: Os grandes livros foram escritos / os grandes ditos foram ditos / e eu só quero tentar pintar um quadro / ainda que não entenda bem o que se passa / sei que morreremos algum dia / e que nenhuma morte deterá o mundo. Naquele momento, o Brasil vivia o período da ditadura militar e as mortes políticas não poderiam ser contestadas por meio da palavra. A criatividade ficcional de Roberto Drummond permanecerá dinâmica, graças à sua diferenciada infração narrativa ao se apropriar ativamente dos versos de Bob Dylan, colocando-os de forma duradoura em seu livro e, com esta atitude, denunciando, com arte e sutileza, as “crueldades” das normas ditatoriais de seu momento histórico. E os versos de Bob Dylan se perpetuarão como parte integrante destas nomeadas e diferentes narrativas ficcionais de Roberto Drummond. 
Há outros ficcionistas, conceituados como pós-modernos, que se valeram de influências não reveladas ao longo de suas narrativas. Colocar-se como analista e/ou intérprete da própria obra (desmitificando-as ou defendendo-as), é característica defensiva desses escritores, inclusive os do passado. José de Alencar, escritor que posteriormente se tornou o mais dignificado de nosso período romântico, viu-se envolvido nas malhas dos críticos pré-realistas de sua época, os quais procuravam desmerecer o seu talento literário. Mário de Andrade, ao referir-se ao Macunaíma, se posicionou, afirmando que “copiara” inclusive o modelo discursivo de Rui Barbosa, na “Carta às Icamiabas”, além de se valer do folclore nacional para a elaboração de sua incomum narrativa. Robbe-Grillet, no Prefácio de seu livro Por Um Novo Romance, procura explicar o fato pelo qual se incomodou com as críticas feitas aos seus romances, escritos a partir dos anos cinqüenta. As críticas desfavoráveis induziram-no a desenvolver uma posição de protetor de suas obras ficcionais diferenciadas. Submetido a ataques e poucos elogios, quando da publicação de alguns de seus romances (Lês Gommes, Lê Voyeur, La Jalousie), conscientizou-se de que “o que mais o surpreendia, tanto nas censuras quanto nos elogios, era encontrar por toda a parte uma referência implícita ─ ou mesmo explícita ─ aos grandes romances do passado, que eram apresentados como o modelo para o qual o jovem escritor devia manter os olhos voltados” .
Ao contrário de Robbe-Grillet, que se incomodou com a crítica de seu momento social, surpreendido por críticos adeptos das formas passadistas, os pós-modernistas brasileiros de Segunda Geração, como o escritor Rogel Samuel, procuram explicar suas criações por intermédio de uma atitude desarmada. Antes dos críticos de plantão assinalarem as “semelhanças” com outros escritores, percorrendo apenas a camada visível da obra, nossos ficcionistas pós-modernos-pós-modernistas preferiram/preferem revelá-las. Guimarães Rosa, em cartas e entrevistas, não se furtou a esclarecer, com a simplicidade do mineiro, os meandros de sua criatividade ficcional aos inúmeros estudiosos de sua obra. É evidente que há alguns que se acham replenos de valor, porque a mídia os coloca em uma posição privilegiada, buscando o retorno financeiro imediato. Esses, afirmo, estão distanciados de uma nova e valorizada arte literária. Mesmo assim, tais explicações são valiosas, pois revelam o outro lado do pergaminho. O crítico cuidadoso saberá distinguir o joio do trigo (verbalizando aqui uma expressão conhecida, habilidosamente recuperada por Fernando Namora, em seu livro do mesmo nome). O crítico consciencioso observará que, por trás do explícito pós-moderno-pós-modernista de Segunda Geração, há o valor de uma camada ficcional, implícita, revelando um mundo desconhecido, onde as grandezas e as misérias humanas apresentam suas verdadeiras faces. O artista ficcional, e aqui incluo a criatividade singular de Rogel Samuel, tem o poder de mostrar seus incômodos existenciais através de uma intuitiva e diferente forma literária, mesmo se valendo de seu amplo conhecimento (recebido no âmbito familiar e adquirido, posteriormente, por meio dos estudos), revitalizado em anos e anos de leituras diárias.
Posso afirmar que, há muito, ultrapassei fenomenologicamente a assertiva de Roland Barthes, aquela que todo professor de Teoria da Literatura de base estruturalista se esmera em perpetuar: O Narrador é um personagem como outro qualquer, não se deve confundir o narrador com o escritor. Não colocarei aqui a página da citação (e nem ao menos sei se a traduzi fielmente), porque a mesma já faz parte do universo intelectual dos professores brasileiros, os quais se esqueceram/ esquecem-se de que a crítica literária (sem querer desmerecer absolutamente os críticos do passado, que poderão ser ainda valorizados, com as devidas reservas temporais) segue sempre para frente, acompanhando os textos literários-arte que vão surgindo. Mesmo assim, repus acima a assertiva estruturalista de Roland Barthes porque, conscientemente, sei que o mesmo a repensou (o segundo Roland Barthes), posteriormente, oferecendo-lhe um novo valor, voltado para a interpretação, condizente com o passar do tempo. De tal sorte que não me vejo impedida de fazer uma aproximação teórico-reflexiva do narrador-personagem Ribamar de Sousa com o escritor amazonense Rogel Samuel. Portanto, vamos à semelhança.

Confesso (que todo este livro é a confissão de minha vida) que logo senti naquele momento Genaro e Antônio ansiando em retomar para o sertão, (...) 

Pelo que me consta, Rogel Samuel iniciou a escrita de seu romance o Amante das Amazonas em meados da década de 1980, por volta de seus quarenta anos de idade. Nesse ínterim, já estava ele afastado de sua cidade de nascimento, seu espaço sócio-familiar manauara, aproximadamente, uns quinze anos, pois se transferira para o Rio de Janeiro, para estudar na antiga Universidade de Filosofia e Letras, em princípios dos anos de 1960. Penso que a solidão e a angústia do jovem estudante manauara, longe do aconchego e da proteção da família, jogado em uma violenta realidade citadina, já próxima de uma histórica rebelião militar, ditatorial, marcaram as primeiras diretrizes ficcionais de seu narrador-personagem Ribamar de Sousa.

E eu quis voltar, e não estar ali. E eu não quis ter vindo. Mas não tinha o caminho de volta. E nunca mais voltei. (...) E, lentamente, a partir do seguinte, comecei a fazer aquelas coisas próprias, como cozinhar e limpar o tapiri, pescar e catar frutas para que não se passasse fome. (...) tive de começar a correr, prisioneiro das colocações, (...) 

Na verdade, segundo minhas reflexões, o personagem-narrador Ribamar de Sousa fez/faz o caminho inverso de seu criador. Enquanto o Ribamar (que na verdade é um sobrenome de origem portuguesa e que quer dizer do rio/ribeiro ao mar, ou seja, pelo ponto de vista interpretativo, do rio amazonense ao mar universal) sai de Patos, Pernambuco, em direção ao Amazonas, enfrentando ficcionalmente, obstáculos incomuns, o olhar interativo, ficcional e intelectualizado, do escritor Rogel Samuel refez/refaz o seu próprio, pessoal, itinerário de dor e solidão em direção ao Rio de Janeiro, à universalidade.

O homem que sai fora de seu meio está condenado ao desajustamento. Se retornar ao meio onde foi gerado e criado, não conseguirá jamais readaptar-se. Se permanecer no meio onde está, sentir-se-á sempre cobrado pelos atos ou palavras que não supunha existirem. E de qualquer forma, o seu destino é a solidão. 

Relembro aqui, com a permissão dos leitores de Rogel Samuel, este pensamento de Caio Fernando Abreu, devidamente sublinhado, alhures, quando, por imperativas ordens trabalhistas (estava a escrever um Instrucional de Cultura e Literatura Luso-Brasileira, em nome da Universidade em que trabalho), vi-me na contingência de ler o livro de Caio Fernando, pois se referia à década de 1980, no Brasil. Esta década, como já foi revelado, assinala o início da concepção da obra ficcional de Rogel Samuel. Por tal motivo, recupero-o, pois o posicionamento conceitual de Caio Fernando Abreu, sobre O essencial da década de 1980, possui uma indiscutível ligação com a dinâmica de vida daquelas pessoas que se trasladaram para outras regiões, em busca de melhores condições de vida comunitária, ou mesmo para realizar estudos universitários, como foi o caso de Rogel Samuel. O pensamento filosófico-sociológico de Caio Fernando, de certa forma, condensa alguns de meus próprios pensamentos críticos sobre a desconexão que se estabeleceu entre Rogel Samuel e seus pares intelectuais manauaras. Esses meus julgamentos, registrados nas páginas iniciais deste livro sobre este romance pós-moderno/pós-modernista, são de minha inteira responsabilidade, mas, mesmo assim, penso que a colaboração de Caio Fernando Abreu tornou-se agora indispensável, para que eu pudesse finalizar este capítulo. Afinal, Ribamar é um narrador à moda antiga?
V - Tio Genaro e Antônio: Personagens Mediadores entre o Social e o Mítico

Mas não disse que vinha à procura de Tio Genaro e meu irmão Antônio, aviados no Manixi. Não. Pois eles tinham sido trabalhadores seringueiros do Rio Jantiatuba, no Seringal Pixuna, a 1.270 milhas da cidade de Manaus, onde anos depois naufragaria o Alfredo. Eles freqüentaram o Rio Eiru, numa volta quase em sacado, e dali partiram em chata, barco e igarité até ao Rio Gregório, onde trabalharam para os franceses, e de lá partiram para o Rio Um, para o Paraná da Arrependida, aviados livres que eram, subindo o Tarauacá até o ponto onde dizem foi morto o filho de Euclides da Cunha, que delegado era, numa sublevação de seringueiros. Depois viajaram. E foram para o Riozinho do Leonel, seguiram para o Tejo, pelo Breu, pelo belo Igarapé Corumbam – o magnífico! –, pelo Hudson, pelo Paraná Pixuna, o Moa, o Juruá-mirim até o Paraná Ouro Preto onde, pelo Paraná das Minas entraram pelo Amônea, chegando ao Paraná dos Numas, perto do Paraná São João e de um furo sem nome que vai dar num lugar desconhecido. E lá, foi lá que eles encontraram o barco que seguia para o Igarapé do Inferno e que os deixou no Manixi, onde amansaram, no Acre, aviados do dono do seringal. 

Qual é a importância destes dois personagens no fluxo narrativo rogeliano? O tio Genaro e o irmão Antônio aparecem/apareceram e desaparecem/desapareceram rapidamente, mas, mesmo assim, eles não obstam, em seus rastros, a razão de suas presenças. Por algum motivo, apenas do conhecimento do escritor Rogel Samuel, ali se materializam. Assim é o narrador pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração. A narrativa terá de acontecer ao longo da criatividade de quem escreve. Nesta renovada forma de narrar, não há personagens importantes ou personagens secundários, como nas narrativas das estéticas anteriores. Em verdade, todos os personagens são importantes, mesmo os que aparecem esporadicamente. Por um processo de apreensão ficcional gradativo, o narrador-personagem vai compondo enredadamente a trama. O primeiro narrador, auxiliado pelo segundo, é o personagem-“herói” de uma nova forma ficcional, aquele que jamais se deixará envolver nas malhas do narrar tedioso. Os outros personagens são incontestavelmente adjuvantes, mas nem por isto deixarão de revelar reconhecida importância. Poderão sair da cena, mas, enquanto personagens-atuantes, mesmo por breves momentos, deixarão suas marcas no leitor. É importante esclarecer que todos os personagens rogelianos, independentes de suas atuações, sejam elas permanentes ou breves, continuarão a “incomodar”, indefinidamente, o leitor que se propuser a desvendá-los, seja o leitor do momento ou o leitor do futuro.
Genaro e Antônio são personagens insubstituíveis no fluxo narrativo deste romance de Rogel Samuel. Enquanto personagens adstritos ao plano das probabilidades vitais (o que os teóricos da literatura nomeiam como verossimilhança), eles existiram. São eles os representantes ficcionais de todos os tios e irmãos que saíram da região nordestina da seca, lugar em que os longos períodos de estiagem transformam os sertanejos em retirantes. Mas, são eles também que possuem a chave, para que o primeiro narrador, alter ego do segundo ─ o ficcionista-narrador ─, possa penetrar na misteriosa Floresta Amazonense. O segundo narrador (ou verdadeiro narrador), naquela primeira etapa narrativa, está ali, nas entrelinhas, desde o início, guiando os passos de seu personagem. Não há como se aventurar em terras estranhas sem um precursor. Haverá sempre um pioneiro, para abrir o caminho até ao centro do enigmático ambiente. Por exemplo, Ferreira de Castro, para escrever o seu romance neo-realista A Selva, teve de sair de Portugal para o Brasil, mais precisamente, para o Amazonas, acreditando, com esta decisão, que o tio, um comerciante da borracha que ali residia, o ajudaria a se transformar em um homem rico.
Na primeira seqüência da narrativa rogeliana, os dois personagens (Tio Genaro e Antônio) não poderão ser conceituados como resultado de aparências estereotipadas, ou seja, personagens moldados, reduplicados, robotizados, coisificados, desenhados por meio da palavra (marcas das narrativas pós-modernistas de Primeira Geração). Aliás, é importante esclarecer, desde já, que esta minha proposição afirmativa sobre os personagens Tio Genaro e Antônio se aplica a todos os personagens desta obra ficcional de Rogel Samuel.
Genaro e Antônio poderão ser vistos como mediadores importantes para que o primeiro narrador, auxiliado pelo segundo, possa se aproximar da dimensão mítica da Floresta, uma vez que ambos já se haviam aclimatado àquela realidade cruciante, tornando-se parte inerente do Igarapé do Inferno, conhecedores de todas as minúcias do lugar.

Pois não disseram palavra. Se recolheram em si, e eu ainda durante muito tempo sentado no escuro, escorrendo chuva na mala de amarrado, chorando no abandono e solidão. E eu quis voltar, e não estar ali. E eu não quis ter vindo. Mas não tinha o caminho de volta. E nunca mais voltei. 

E não falavam comigo, e não me ensinavam, como que me ignoravam, não se falavam entre si, os dois. Tinham virado bichos, e não creio soubessem falar. Chegavam de noite, macacos moídos, mudos e sujos, comiam e dormiam fedendo. E de madrugada de novo para a estrada, movidos por um interno aparelho de corda, mecânicos, outra vez, eu não sabia para onde, eu não sabia para quê. 

Mesmo que o narrador os apresente como robôs, “movidos por um interno aparelho de corda, mudos”, não poderão ser avaliados como seres inanimados, reificados. Há muita “animação” em suas presenças, pois se valem do repouso fervilhante (Bachelard) e da linguagem visual de quem escreve. Muito menos poderão ser conceituados como simples cópias de indivíduos da realidade do século XX (marca de algumas narrativas consideradas como pós-modernas). São importantes e ativos, e, mesmo falando pouco, sabem dar ordens ao primeiro narrador, pois possuem a “chave” da interação entre o Mundo do Silêncio (amorfo) e o Mundo dos Conceitos (formas). São eles os guardiões da linha divisória entre as dimensões sócio-substancial e mítico-substancial. Entretanto, Genaro e Antônio só transitam nas duas margens explícitas do Igarapé do Inferno (a afirmativa e a negativa). Nunca se aventuraram na busca de uma insólita terceira margem amazonense (só o narrador-personagem possui esta perspectiva diferenciada), propiciadora de juízos de descoberta, o “salto da novidade”, pelo ponto de vista ficcional de Rogel Samuel.

Cerca de 500 metros acima do tapiri havia um trecho do rio onde o Igarapé do Inferno fechava – ainda que corrida, funda, escura e fria – a Curva do Tucumã, acima da qual nunca ninguém passava adiante, universo regido pela povoação Numa – “Você não passa”, disse tio Genaro, naquela tarde. “Você nunca atravesse o rio”. E na margem se lançavam os limites que se sobrepunham sobre as marcas da significação da vida, alerta e alarme, nos traços insondáveis e infratores (“Não passarás!”), e por isso aquele lugar atraía tanto quanto o Proibido, o Outro, na lâmina de aço da imagem duplicada e interior, aquilo que libertava a atenta direção do salto da novidade. 

Tio Genaro e Antônio são importantes e ativos, pois possuem a “chave” da interação entre a Dimensão Mítica e a Dimensão Social (juízos negativos e juízos positivos). Os juízos de descoberta virão por acréscimo, amparados pelo dilatado imaginário-em-aberto do criador ficcional. Eles não falam porque, temporariamente, estão vigorando na dimensão sobrenatural da obra de Rogel Samuel. Eles não falam porque representam a superfície insólita do imaginário dilatado e silencioso do escritor pós-modernista de Segunda Geração. Não falam porque, nessa dimensão incomum da obra rogeliana, as palavras serão formalizadas gradativamente. Não falam, mas serão os indutores de incríveis acontecimentos, necessários guardiões do limite entre a realidade conceitual e a supra-realidade, também conceitual. Eles deixam o narrador “sentado no escuro, chorando no abandono e solidão, porque ele terá de encontrar, sozinho, por conta própria, singularmente, o rumo do que deseja escrever, mesmo que infrinja as Leis do “Bem Narrar” à moda tradicional. Para “Bem Ver e Escrever” a realidade do século XX, o narrador pós-modernista de Segunda Geração terá de passar pela iniciação do quarto escuro, o que Bachelard nomeia como “repouso ativado” (Dialética da Duração). O narrador, alter ego do escritor, ao se defrontar com os “parentes”, intui a grandeza da empreitada na qual se lançara. Ali, diante do tio Genaro e do irmão Antônio, se percebe “chorando no abandono e solidão”. Ali, “sentado no escuro”, ele sente a água da chuva (forças imaginantes da água, pelo ponto de vista bachelardiano) a escorrer na “mala de amarrado”. E ele “não quis ter vindo, mas não tinha o caminho de volta”. E nunca mais voltou.

O repouso fervilhante do pensamento (repouso ativado, pela ótica de Gaston Bachelard) traduz-se, em princípio, por um esvaziamento da mente em relação aos conceitos usuais, uma reflexão que induz a uma breve imobilidade mental, na qual se acrisolam pensamentos díspares, os quais serão reordenados inversamente em seguida e direcionados para novas e surpreendentes descobertas mentais.  

A partir deste comunicado do ficcionista (“sentado no escuro”), procuro ajuizar a intenção do autor literário ─ criativo ─ do final do século XX, submetido a seus pensamentos díspares, no “escuro” de sua mente esvaziada de conceitos usuais, percebendo sonhadoramente a água da chuva a escorrer na “mala de amarrado” de seu personagem-narrador, ou melhor, a escorrer de seu “repouso fervilhante” (BACHELARD), mas, logo a seguir, se deparando com o inesperado de sua intuição ficcional, uma vez que as águas das chuvas amazonenses e os desacertos existenciais do globalizante cotidiano do final do segundo milênio sempre fizeram parte de sua vida. Naquele instante dinamizado, não é o imprevisto da comum novidade e da variedade de impressões pitorescas que o impulsionaram a escrever o seu diferenciado romance sobre o Amazonas, mas sim as causas já problematizadas, eternais, que se acrisolavam em seu íntimo mobilizado.
Deste modo, olhando a narrativa pelo ângulo do escritor, os personagens tio Genaro e Antônio não falam porque representam o momento de crise da vida amazonense. Representam também a crise da linguagem ficcional. A crise que invadiu e deteriorou todas as dimensões sócio-temporais do ser humano, exigindo-lhe novas veredas nos planos verticais do pensamento. Eis aqui o momento ficcional de Rogel Samuel a exigir-lhe o silêncio e a recomposição. Eis o indivíduo que não aceita escrever por escrever: “Não. Não escreverás um / só texto / mas o que for dito / e luminoso” . O momento histórico deste escritor amazonense exige-lhe a insólita busca de um “lugar sempre em princípios”, mesmo que esse lugar seja “a pátria das más notícias” . Tio Genaro e José foram os pioneiros (no princípio da narrativa foram os representantes dos narradores tradicionais, lineares), mas não foram convidados, ao longo do desenrolar ficcional rogeliano, a se expressarem à moda tradicional. Receberam o “parente”, mas não o reconheceram como tal. Não o compreenderam porque o “parente”, alter ego do escritor verticalizante, já interagia (interage) com os estranhos cogitos do tempo do pensamento, distanciado que estava (está) das limitações impostas pelo tempo vital (o tempo do relógio contando os segundos, os minutos, as horas, os dias e noites, os meses, os anos, os séculos, etc.).
Por este prisma fenomenológico, quem se percebe chorando, “no abandono e solidão”, é o criador ficcional da pós-modernidade, o escritor da narrativa O Amante das Amazonas. Foram dez anos de pesquisa para a elaboração de seu projeto literário. A caminhada foi longa. Ele teve de revolver o passado familiar, buscar as próprias origens nordestinas, peruanas, judaicas e francesas (como herdeiro de sobrenomes ─ nomes familiares ─ notáveis), leu os grandes clássicos, escritores famosos, lecionou em um respeitável curso universitário e produziu literatura técnica de qualidade. Desenvolveu inúmeros talentos além da escrita literária, como pintura e música, reconheceu a validade da computação e aceitou a novidade da Internet pós-moderna como veículo indispensável para a projeção intelectual. A trajetória (de Manaus para o Mundo) não foi um caminho suave. Muitos obstáculos surgiram. E, em sua narrativa extremamente elevada, o seu narrador-alter ego se defronta com “parentes” que não o reconhecem mais como tal, porque esses já não são mais de sua espécie, “tinham virado bichos”, e não lhe poderiam ensinar mais nada . A “mala de amarrado”, no início da narrativa ─ mostrando-se repleta de suas próprias idéias originais, idéias que se entrelaçam, se ajustam, se repelem (repouso fervilhante), em meio a “duas mudas de roupa”  ─ “escorrendo chuva”, teria de ser aberta de qualquer maneira. Seu primeiro narrador Ribamar de Sousa iniciara a viagem em seu lugar, “a família toda” (seus familiares, seus conterrâneos, seus pares intelectuais amazonenses ou não) o deixara sozinho “no horror de Deus”, retomar as regras ficcionais do passado, regras passadistas, naquele início narrativo, seria algo impossível. A “mala de amarrado” teria de ser aberta e re-arrumada várias vezes, por meio de novas e diferentes diretrizes ficcionais.

Pois do lado de cá ficava como um sapo em sua poça, condenado ao que seria a família constituída, dois machos protagonistas do enigma do meu silêncio e angustiosa comunicação gestual, parentes quase mudos bichos, que salvavam a vida no deserto por resmungos monossilábicos, viventes sem mulheres e amizades, existindo na prisão geográfica onde só recordar era possível sob a pressão da materialidade selvagem e da solidariedade de guerra. 

Seus parentes, “os dois machos protagonistas do enigma de [seu] próprio silêncio e de [sua] angustiosa comunicação gestual”, terão de existir, temporariamente, a partir dali, “como um sapo em sua poça, condenado ao que seria a família constituída”, “na prisão geográfica onde só recordar [será] possível sob pressão da materialidade selvagem e da solidariedade da guerra”. Tio Genaro e Antônio são importantes para o desenrolar ficcional, mas são representantes de mundos conceituais, o social e o mítico.

No meio da noite, súbita, acordo: toda a floresta está em chamas! Mas não era sonho não, conforme logo vi, e ouvi os disparos da arma de meu tio. Gritos e gritos. Na claridade aberta e vermelha, entre rolos negros de fumaça, meu irmão na contorcedura da grande dor, especado por flechas feito porco espinho ─ agulheiro de dor! E meu tio atrás das pélas, parecendo mal, morrendo. Os Numas nos atacavam no meio da noite, mas... eu ainda estava vivo e não ferido.

Foi aí que não soube de mais nada do que se passou pois não sei como fugi e mergulhei na invisível água do igarapé de treva fria e rápida, e fui levado e me afastei dali. De longe, os tiros silenciaram de vez, não vi mais o fogo da labareda da serpente, e uma correnteza negra me abraçou, me envolveu, me levou. 

Os dois personagens jamais ultrapassarão as barreiras que separam o mundo conceitual do mundo amorfo (não-dito), e terão de findar suas vidas, socialmente e miticamente, por intermédio do fogo. Mas, como personagens mitificados, representantes da chave para um novo recontar ficcional, poderão renascer ou não, sair das cinzas ou não, a cada leitura, a cada leitor que obtiver o privilégio de interagir com o texto receptivo de Rogel Samuel. Enquanto houver leitores reflexivos, a oferecer-lhes vida ficcional, Genaro e Antônio partirão “para a estrada como para a morte” , e, páginas adiante, “no meio da noite, (...) toda a floresta em chamas, na claridade aberta e vermelha, entre rolos negros de fumaça” , os dois terão de desaparecer (morrer) miticamente, e o personagem-narrador continuará “vivo e não ferido”, para (depois da extinção dos adjuvantes) modificar e amplificar o curso narrativo.

(...) o fogo sugere o desejo de mudança, de forçar o correr do tempo, de chegar imediatamente ao termo da vida, à outra vida. Neste caso, o devaneio é verdadeiramente empolgante e dramático; amplifica o destino humano; liga o que é pequeno ao que é grande, a lareira ao vulcão, a vida de uma acha à vida de um mundo. O ser fascinado escuta o apelo do braseiro. Para ele, a destruição é mais do que uma mudança, é uma renovação. 


Com o fogo tudo se modifica. Quando queremos que tudo se modifique apelamos para o fogo. O fenômeno inicial é não só o do fogo contemplado numa hora de ociosidade em toda a sua vivacidade e brilho, mas também o fenômeno que se passa graças ao fogo. O fenômeno pelo fogo é o mais sensível de todos; é aquele que mais precisamos de vigiar; tem de ser ativado ou retardado; temos de captar a ponta do fogo que marca uma substância como o instante do amor que assinala uma existência.  

“O fogo sugere o desejo de mudança”. A morte dos dois personagens pelo fogo (arma-de-fogo, flechas incandescentes, fogo na floresta) possibilita a alteração no rumo da primeira seqüência narrativa (sedimentada em princípio pelo arcabouço histórico) para uma segunda etapa ficcional (“a outra vida” gerenciada pela forma do narrar mítico). Com esta atitude, o proprietário da arte de narrar orienta o primeiro narrador para uma segunda dimensão ficcional (auxiliado pelo conhecimento do mito). Submetido à fervura ígnea de seu cogito diferenciador, percebe-se impelido à uma significação calamitosa (tio Genaro e Antônio consumidos pelo fogo) que anime o desenrolar do narrado. O fogo mítico, circunstancial, promove uma espécie de liberdade transitória, em busca das inovações do imaginário-em-aberto da consciência singular, interativa, porque o elemento rigorosamente indispensável ao escritor da pós-modernidade, propulsor de renovados juízos de descoberta, é o ar. O Manixi, a Cidade de Manaus e todos os personagens rogelianos que por ali transitam exalando dinamismo, se refortaleceram ao longo daqueles muitos anos de pesquisa (revelados nas Entrevistas do escritor amazonense), e se animam de um jeito incomum pela “força de elevação psíquica”  do escritor.


VI - Paxiúba: Personagem-Míto (inicial)  X  Personagem-Ficção (final)

E chega que alguém diz: “Bons dias” (a voz como era?) – sim, quem se introduz nesta estória e então fala é o enorme bugre caboclo Paxiúba, naquela época com cerca de dezenove anos, mas já bem dotado de grande, de fama, de alto, de um metro e noventa e dois de altura, ah, bem me lembro inteiro dele sim, a gente fica velho mas, antes de morrer, a memória a gente aviva, e nela vive, até o tampo do tempo nos apagar, gatão lustroso que passa sua língua, nada, no parado esquecido, tal que logo desaparecemos que vai ser como se nunca tivéssemos existido, nem mesmo como personagem de ficção que é o que é. 

O fogo é um elemento mítico e será, nesta segunda seqüência, a marca da renovação ficcional rogeliana. A partir da morte dos dois personagens-chave, o primeiro narrador Ribamar de Sousa, auxiliado pelo segundo, que ainda não se manifestou, terá de buscar o verdadeiro personagem-auxiliar desta alternada dimensão ficcional, possuidor da outra chave mágica, para que possa penetrar seguramente no recinto mítico do Manixi, apresentando-se à moda dos lendários heróis do passado. Seu nome é Paxiúba.
Manifestado à moda dos lendários heróis de misteriosas histórias de cerimônias e cultos diversos, Paxiúba é a encarnação mítico-ficcional de antigos guardiões extravitais (de qualquer arcabouço esotérico da humanidade, humanidade esta quase sempre conduzida por elementos das forças sobrenaturais), os quais povoaram, ao longo do tempo, a poderosa imaginação reduplicada, sintagmática, do mundo dos conceitos veneráveis. Paxiúba se configura como o símbolo das forças da natureza selvagem do Amazonas (no caso, o estrato mítico-substancial da sociedade indígena amazonense), e, acima de sua aparência exterior, a matéria épica (substância épica; não confundir com Gênero Épico) se faz presente no relato ficcional, realçando o prestígio prosopopaico de sua natureza humana.
Sobre esta questão dos gêneros literários, especificamente em relação a terminologia aqui empregada ─ substância épica  (matéria épica) ─, será de sumo interesse uma explicação. O romance de Rogel Samuel, pelo ponto de vista dos conceitos teóricos cientificistas esclarecedores dos Gêneros Literários, não poderá ser renomeado como narrativa épica, uma vez que não foi escrito em versos e não apresenta os fenômenos estilísticos que caracterizam o gênero em questão. Por este ponto de vista, o personagem Paxiúba não poderá ser avaliado como herói de narrativa épica (narrativa em versos). No entanto, como no todo do texto ficcional de Rogel Samuel ─ O Amante das Amazonas ─ há substância (matéria) épica em estado ininterrupto, o personagem, quando de sua apresentação aos leitores, adquire, por transação (ajuste) ficcional, a aura dos grandes heróis do passado.
A respeito deste assunto, ainda polêmico, nos meus Apontamentos de Teoria Literária e Crítica Literária , procuro explicar esta discussão controvertida, sobre a mimese na poesia épica e gênero narrativo em prosa, incluindo também um esclarecimento em relação à questão dos Gêneros Literários nestes anos iniciais de século XXI (Terceiro Milênio).
Mimese no texto ficcional:

A mimésis na poesia épica (ou narrativa em versos) só poderá ser reconhecida pelos postulados platônicos, ou seja, a mimésis como reprodução (cópia) das duas realidades conhecidas pelos antigos gregos: a histórica e a mítica (ambas lineares). A idéia de mimésis como recriação da realidade, ou de realidades ─ conceito moderno ─, só começou a ser entrevista a partir do surgimento do Gênero Narrativo Ficcional, um fenômeno da Era Moderna. 


Gêneros Literários:

Atualmente, estamos envolvidos por diversas idéias sobre os Gêneros Literários. Estamos vivendo o momento dos estudos voltados para a interdisciplinaridade. Cada linha teórico-crítica desse nosso hodierno universo cultural (2007), deseja que as suas idéias sejam as mais valiosas. Se o nosso momento mundial é o momento do Caos (dos desencontros sociais e existenciais), nada mais peculiar do que também o Caos no que se refere aos estudos da literatura. Aliás, os textos pós-modernos (de ficcionistas e, também, dos poetas dos anos quarenta do século XX para cá) refletem este Caos que nos envolve. São textos de difícil compreensão, os quais merecem novíssimos posicionamentos teórico-críticos, ou mesmo a invenção de uma nova denominação genérica para eles. Enquanto esses posicionamentos não aparecem, vamos empurrando o nosso barco teórico brasileiro com as idéias estrangeiras do século anterior (século XX), mas, no que nos diz respeito, em especial,  estamos em expectativa por novas definições. 

Se me encontro aqui como apreciadora da obra ficcional de Rogel Samuel, envolta em minhas próprias teorizações analítico-fenomenológicas sobre um assunto no qual eu mesma me alterco constantemente, confirmo que em O Amante das Amazonas há um altíssimo grau de entropia no sistema de narração (ausência da ordem narrativa à moda tradicional). Para explicitar o seu personagem mítico-ficcional Paxiúba, o criador pós-modernista de Segunda Geração Rogel Samuel se vale dos enclaves narrativos, tão do gosto dos escritores pós-modernos/pós-modernistas da Primeira Geração. Entretanto, enquanto autor-criador de um novo direcionamento estético-ficcional, mais de acordo com a vivência do homem do século XXI, objetivou abandonar o estereótipo (lugar comum) do personagem reificado (inacreditável, fantasioso) da primeira fase, procurando descortiná-lo por meio de um olhar diferenciado (o ser mítico a se transformar em humano), circunscrito a insólitos acontecimentos dinamizados. (Preciso esclarecer que os escritores do final do século XX, dos anos 80 para cá, perceberam as qualidades intrínsecas das regras sócio-culturais do século XXI, e Rogel Samuel, por sua vez, como participante ativo daquele momento, enxergou criativamente a mudança que já se avizinhava).
A entropia narrativa, no século XX, surgiu das novas modalidades sócio-culturais capitalistas, intermediárias de uma novíssima ciência, baseada em um conjunto de métodos científicos, de novas modalidades existenciais que visavam resolver os problemas do homem pós-moderno. Fundamentado-se em normas predominantemente científicas e em transmissões de notícias generalizadas oferecidas pelos meios de comunicação em evidência naquele momento (rádio, televisão e cinema), as mensagens saíam de uma realidade cotidiana, poderosa, mas que já chegavam descaracterizadas aos destinatários, propiciando espetáculos insólitos. Assim, a técnica discursiva da propaganda impôs suas diretrizes no universo ficcional da pós-modernidade, naquela Primeira Geração de escritores ficcionistas, obrigando-os a “criar” seus textos ─ sintagmáticos ou paradigmáticos ─ pelo ponto de vista de uma realidade liquidificada, reduzida a diversas cópias (ou colcha-de-retalhos, ou patchwork quilt) de conceitos vitais diversificados e entrelaçados, conceitos esses vistos pelos críticos da literatura do final do século XX como simulacros de uma realidade há muito despojada de suas características fundamentais.
No entanto, mesmo existindo entropia narrativa em O Amante das Amazonas, ou seja, os enclaves se entrelaçando e se justapondo, ao longo dos parágrafos, não há trechos inacabados e indefinidos, como vários críticos observaram em algumas narrativas ficcionais de alguns escritores da Primeira Geração Pós-Moderna/Pós-Modernista. Nas duas dimensões ficcionais sintagmáticas do Manixi ─ histórica e mítica ─, além da linguagem da comunicação visual, comumente sempre detectada nas narrativas do pós-modernismo da primeira fase, há, no decorrer narrativo, uma razão diferenciada que busca um final compensador, equilibrado, ou seja, ressalta-se a provocação subjetiva, verticalizante, do intelectual e professor universitário que conhece bem o que sabe e o que faz, e, como tal, já vigorando no terceiro cogito da consciência individualizante. 

E chega que alguém diz: “Bons dias” ─ ele-mesmo se aproximando assim, remando silencioso e feroz pela face da manhã, no luxo de frente do porto do Laurie Costa, que ficava na margem esquerda do Igarapé do Inferno, submerso e distribuído pelo prestigioso vale. 

O bugre Paxiúba, que chega dizendo “Bons dias” à lavadeira Zilda (nesta segunda etapa da narrativa), não é um simples personagem reificado. Ele possui um nome que o dignifica. Em seus domínios míticos, ele é Pati’ ïwa que, em tupi, significa “palmeira dos igapós”, uma planta palmácea, das regiões amazonenses alagadas pela chuva (igapós), que mede cerca de dez a quinze metros de altura. A dimensão ficcional do Manixi (o Palácio e as terras que o cercam) pertence à matéria mítica. O bugre Paxiúba traduz a heroicidade dos lendários habitantes de um lugar de pura maravilha (e a palavra maravilha aqui não possui sentido telúrico). Aquele índio mestiço ─ filho de uma índia caxinauá e de um negro barbadiano ─ jamais poderá ser conceituado como um personagem sem nome, o que caracterizou as narrativas do Primeiro Momento Pós-Moderno/Pós-Modernista. (Aqui, eu não me refiro às narrativas de Guimarães Rosa, as quais, pelo meu exclusivo ponto de vista, pertencem a uma fase de transição, ou mesmo, um interregno que se localizou entre a segunda etapa do Pós-Moderno/Modernismo ao início da Primeira Fase do Pós-Moderno/Pós-Modernismo no Brasil, dos anos 40 aos anos 60). Paxiúba não poderá ser avaliado como um personagem menor, sem qualidade literária, a se debater no Caos das chamadas narrativas insólitas, porque sua grandeza mítica se solidifica até ao final narrativo, mesmo quando o núcleo ficcional rogeliano se traslada para a Cidade de Manaus.

Pois se aproximava somente para dizer: “Bons dias”, e assim se referia a uma certa e acocorada Zilda, esposa do Laurie Costa, lavadeira das roupas, agachada sobre a prancha lisa, lixiviada, de Itaúba, tabuão de sabão, Paxiúba na montaria, espetáculo bom de ver, mas literário, enorme tetrápode, que já o conheci assim, escuro caboclo e tigre, grandão, desenvolto, olho de cobra, de bicho, poderosamente selvagem, no vivo, no ensolarado do olho amarelo, luminoso, feroz, sobre musculatura nobre de dar inveja às estátuas do Louvre, erguida a cabeça sobre o pescoço grosso, sólido, de muito, e guerreira, assassina, arisca subjetividade. 

No máximo, se me predisponho a avaliá-lo somente pelo ponto de vista das regras estruturais da ficção (analise cientificista), uma vez que o próprio autor concedeu-me esta incursão teórico-crítica, ao revelá-lo como “espetáculo bom de ver, mas literário”, ou seja, índio-bugre “enorme tetrápode”, aventuro-me a dizer que o caboclo Paxiúba se presentificou, na ficção rogeliana, por meio da narração simbólica, passada de geração a geração, como demonstrativo do valor das origens do homem amazonense. Assim, aqui, por intermédio da palavra do escritor, nomeando-o como “literário”, apresenta-se uma diferenciada força da matéria mítico-ficcional. Todos os adjetivos qualificativos, utilizados pelo ficcionista, impelem o leitor a concebê-lo como um ser extraordinário. E o extraordinário jamais significará a realidade vital sedimentada no racionalismo cientificista. A perfeição mítica, dos primeiros segmentos narrativos, o coloca em uma posição privilegiada: Paxiúba, o “poderosamente selvagem”, possui uma “musculatura nobre de dar inveja às secularmente conceituadas estátuas do Louvre, pois possui a cabeça erguida sobre o pescoço grosso, sólido, de muito, e guerreira, assassina, arisca subjetividade”. E quem confirma a grandeza de Paxiúba, sabe o por quê de tal afirmação. As estátuas do Museu do Louvre foram, muitas vezes, analisadas, ou mesmo interpretadas pelo escritor, um homem que nunca se recusou às aventuras das viagens internacionais, um conhecedor inconteste das reverenciadas obras dos grandes artistas de todos os tempos, obras estas destacadas nas famosas paredes e galerias do Museu francês.

─ sim, que quem se introduz nesta estória e então fala é o enorme bugre caboclo Paxiúba, naquela época com cerca de dezenove anos, mas já bem dotado de grande, de fama, de alto, de um metro e noventa e dois de altura, ah, bem me lembro inteiro dele sim, a gente fica velho mas, antes de morrer, a memória a gente aviva, e nela vive, até o tampo do tempo nos apagar, gatão lustroso que passa sua língua, nada, no parado esquecido, tal que logo desaparecemos que vai ser como se nunca tivéssemos existido, nem mesmo como personagem de ficção que é o que é. 

─ ele-mesmo se aproximando assim, remando silencioso e feroz pela face da manhã, no luxo de frente do porto do Laurie Costa, que ficava na margem esquerda do igarapé do Inferno, submerso e distribuído pelo prestigioso vale. 

“A água doce é a verdadeira água mítica” , assim falou Gaston Bachelard. Paxiúba “se introduz na história e então fala” porque, para criar o espaço tridimensional do Manixi ─ sócio-mítico-ficcional ─, patrocinado pelo elemento água (garantindo-lhe perenidade), e para, posteriormente, lançá-lo no imaginário-em-aberto do leitor reflexivo, o escritor pós-modernista de Segunda Geração percebeu a necessidade de uma outra renovada e poderosa chave, para abrir-lhe a porta da dimensão mítica, sobrenatural, de uma terra desconhecida. Na primeira etapa da narrativa rogeliana, a chave resguardada pelos “parentes” possibilitou ao narrador Ribamar de Sousa a interação com os aspectos históricos visíveis daquela realidade diferenciada. O tio Genaro e o irmão Antônio, possuidores da primeira chave, conheciam somente as duas margens conceituais do Igarapé do Inferno e umas poucas trilhas terrestres do Manixi. Não eram natos do lugar e, portanto, não poderiam propiciar ao narrador um incomum reconhecimento das peculiaridades mítico-ficcionais, ainda não nomeadas, daquele fabuloso espaço sócio-substancial. Por conseguinte, urgia encontrar uma solução que o levasse a interagir com as aquáticas sinuosidades desconhecidas da narrativa, ou seja, intuir uma novíssima chave transcendental. E eis que Paxiúba se introduz na história, diferenciado dos “parentes” do narrador, revelando o poder de fala dos antigos narradores de tempos heróicos.
“A voz como era?”, indaga o primeiro narrador, maravilhado com a sua nova direção ficcional. Paxiúba, o bruto, possui o poder da voz que representa o herói mítico. Assim, como uma divindade semi-humana, possui voz tonitruante. Somente os heróis mitificados possuem voz poderosa. Este “herói” é o possuidor da chave simbólica que fará o primeiro narrador, agora também mitificado, a percorrer com o próprio olhar diferenciado, a mão dinamizada e o imaginário fantasticamente iluminado, os limites mágicos do Manixi. “Ah, bem me lembro inteiro dele sim, a gente fica velho, mas, antes de morrer, a memória a gente aviva, e nela vive, até o tampo do tempo nos apagar”, revela o primeiro narrador. As lembranças fazem parte da memória, e na memória se concentra o poder mítico. A memória mítica só resguarda tempos heróicos e seres extra-reais, mesmo assim, não se pode duvidar de sua verdade. A verdade mítica será sempre renovada, revestida por novas roupagens. Neste intervalo narrativo-ficcional, o narrador de Rogel Samuel terá de passar pela iniciação do conhecimento primordial e sobrenatural. Páginas adiante, o segundo e verdadeiro narrador entrará ficcionalmente e vitoriosamente no “quarto escuro” do repouso fervilhante, para de lá sair renovado. Neste segundo momento ficcional, Paxiúba é o representante da chave mítica (chave mágica). A terceira chave, transcendental (oriunda do plano da consciência dinamizada), aquela que vigorou/vigora no imaginário-em-aberto do escritor Pós-Moderno/Pós-Modernista de Segunda Geração, desde o início da narrativa, só será percebida e interpretada pelos leitores-eleitos “incomodados” quando o segundo narrador se predispuser a aparecer no fluxo interativo do recontar renovado.
No entanto, este narrador da pós-modernidade, alter ego do escritor do final do século XX e princípio do século XXI, querendo ou não, pois se vê envolvido pelas diferenciadas normas ficcionais de seu momento social, terá de se valer da técnica do olhar simulador para apresentar o Manixi, o espaço sócio-ficcional de sua narrativa. Assim, o Palácio do Manixi e as terras que o rodeiam terão de aparecer em toda a sua grandiosidade e imponência, à moda dos simulacros televisivos e cinematográficos que imperaram (imperam) em sua atualidade. Por enquanto, a saída digna, irrepreensível, para que, posteriormente, o verdadeiro narrador possa desmistificar a sua própria realidade vital e a sua outra diferenciada realidade sócio-ficcional, é buscar nos domínios do mito uma diretriz qualificada que apresente, aos leitores do momento e aos leitores do futuro, a suntuosidade exigida pelo hodierno momento histórico das grandezas simuladas. O arcabouço mítico será sempre uma dimensão que em todo tempo satisfará tais requisitos. Paxiúba é o guardião da chave. O narrador terá de elevá-lo à categoria de herói mítico-ficcional. No entanto, como semi-humano, o seu aparecer glorioso, ao longo da segunda etapa da narrativa, não representará um simulacro. A verdade da ficção-arte do Pós-Moderno/Pós-Modernismo de Segunda Geração ultrapassa os limites da simulação do fingir depreciativo (simulacro), para, em seguida, alcançar a glória do fingir da literatura-arte (recriar). E convenhamos: são poucos os escritores eleitos para tal missão, neste tempo presente de incomuns calamidades.

Mas o olho burro tudo vê, e registra ele-mesmo se aproximando assim, remando silencioso e feroz pela face da manhã, no luxo de frente do porto do Laurie Costa, que ficava na margem esquerda do Igarapé do Inferno, submerso e distribuído pelo prestigioso vale. 

“Mas o olho burro tudo vê, e registra (...)”. O teórico da literatura de orientação fenomenológica, neste início de século e de milênio, não poderá desprestigiar as expressões ficcionais que o “incomodam”. Por que “olho burro”? Será que este “olho burro” representa o olhar do primeiro narrador, um ser híbrido, resultante do cruzamento entre o telúrico e o espetaculoso, aquele representante dos narradores que vêem em demasia? Mas, a realidade ficcional do século XX e início do século XXI está ali a exigir-lhe (ao narrador rogeliano da primeira fase ficcional) um cenário grandioso para apresentação do personagem mítico que se aproxima. Então, quem tem consciência desse “olho burro” é o segundo narrador, possivelmente, alter ego de um terceiro narrador, o qual intui, por sua vez, uma possível quarta chave (imaterial), propiciadora de uma insólita condução para o quarto cogito, onde se percebe o Tempo Espiritual. (Esse terceiro narrador se encontra muito bem camuflado nas tramas ficcionais do romance, nesses primeiros capítulos da narrativa). Ou será que “olho burro” representa outra expressão já conhecida, ou seja, “dar com os burros n’água”, o que, em outras palavras, significaria a perda momentânea do poder narrativo singular, exclusivo da ficção paradigmática. O olho do escritor-artista paradigmático não “registra”, recria a realidade que o cerca. No entanto, continuo aqui a resistir às assertivas ficcionais rogelianas. Se me atenho à idéia de uma afirmação diferenciada, consciente da capacidade criativa do escritor, infiro que o “olhar” esclarecido, intelectual, do segundo narrador, acompanha por sua vez a perspectiva visual do primeiro narrador. O “olho burro tudo vê, e registra ele-mesmo” a aproximação de Paxiúba, “remando silencioso e feroz pela face da manhã, no luxo de frente do porto do Laurie Costa”, criativamente secundado pelo olhar talentoso do escritor ficcional da pós-modernidade. Os narradores sintagmáticos não possuem tal visão diferenciada. Assim, o “olho burro”, explícito na narrativa rogeliana, sublinearmente e paradoxalmente, se transforma em “olho inteligente”, se for avaliado pelo ponto de vista do crítico fenomenológico. Por meio de um narrar paradoxal, o incomum ficcionista de O Amante das Amazonas revelou (revela e revelará), aos “incomodados” leitores de seu romance, a indiscutível qualidade de sua ficção.
O “olhar inteligente” do narrador rogeliano, nesta segunda fase de sua criação ficcional, se sustentará pela ligação da forma de expressão da linguagem mítica com as inovações registradas na linguagem ficcional de seu momento histórico. Assim, o nomear enigmático colabora com o ficcionista, oferecendo-lhe, nesta segunda etapa de seu romance, um princípio narrativo ficcional à moda do narrar mítico-lendário, mas, paradoxalmente, imbuído de expressões dialetais familiarizadas. “Pois sim. Que diz-que Paxiúba era filho de um negro barbadiano da Madeira-Mamoré com uma índia Caxinauá que não conheci, e se tornou lendário e eterno”. 
Na primeira fase, a busca de conhecimento histórico ofereceu-lhe também um princípio ficcional. Ribamar de Sousa começa a sua trajetória diferenciada, de Patos, Pernambuco (realidade histórica), ao Manixi Amazônico (realidade ficcional), assinalando a data do início de suas peripécias existenciais em busca do extraordinário: “madrugada do Natal de 1897” . O princípio assinalado denuncia a caminhada do homem do século XX: aquele que não pode mais se estabelecer em seu meio comunitário, pois, adulto, sujeito a uma vida de mendicância, terá “de começar a correr, prisioneiro das colocações, e a seguir estrada com tigelinha de flandres” .  Este princípio, á moda tradicional, nesta ficção de Rogel Samuel, só se tornou possível, em plena pós-modernidade entrópica, graças ao auxílio da História. As chamadas narrativas de estruturas inovadoras da pós-modernidade, principalmente as da Primeira Fase, não se atêm ao tempo vital (tempo linear, do relógio), são narrativas de acontecimento, visualizando apenas o presente e não preocupadas com um clímax que as leve a um fecho à moda tradicional.
No entanto, se atento para os enclaves que superexcedem no todo desta criação ficcional de Rogel Samuel, recupero uma terceira fase, autenticamente reveladora das imposições respeitantes às inovadoras formas estruturais de narrar da pós-modernidade. No capítulo sete, o arcabouço mítico desaparece para oferecer o espaço ao narrador da fase final do século XX. O próprio título do capítulo já é por si uma revelação peculiar: “SETE: DESAPARECE”. Quem desaparece? Do desaparecido, falarei depois. Por ora, a palavra desaparece se projeta como um referente (um sinal) de finalização da narrativa mítica e de nova mudança narrativa: do mítico para o plano da ficção-arte (a anterior sinalizou a caminhada do histórico para o mítico). No capítulo seguinte (capítulo Oito), há um “ponto” indefinido direcionando a mudança de estilo narrativo, revelando a decadência da realidade sócio-substancial amazonense, apresentada inicialmente pela maneira de narrar grandiosa da linguagem histórico-lendária.
Contudo, ainda não me desenredei de Paxiúba. O arcabouço mítico-ficcional de Rogel Samuel exige-me novas reflexões sobre este poderoso personagem. Ele, neste momento em que o reflito, está vindo ao encontro de Zilda, a “esposa do Laurie Costa,” (...) “lavadeira pessoal do Palácio, das roupas brancas, exceto as lavadas em Lisboa” . Ele está vindo também ao encontro de minhas reflexões teórico-críticas. Vejo-me em expectativa: assim como a outra energética Zilda, a da mitologia germânica, a poderosíssima guerreira da vitória, a guerreira de ferro, terei de vencê-lo teoricamente e reflexivamente ─ pela razão, pelo conhecimento, pela ponderação inovadora ─, terei de vencer suas guardas míticas e seus desafios existenciais. Não posso deixar-me seduzir teluricamente pelo seu fabuloso porte, descomunal, colocando-me em perigo diante das já insuficientes e, ainda, exigidas análises significativas (cientificismo dogmático), as quais estão aqui a digladiarem-se com as minhas inferências fenomenológico-interpretativas.

 ─ era assim que ele vinha, cínico, atravessador, a ninguém poupando ou aturando, nem a juiz, como se dissesse: “te conheço: sei quem és”. 

Paxiúba surge no desenrolar ficcional como personagem “cínico, atravessador”, anunciando que, mesmo possuidor de uma aura mítica (que, pelo ponto de vista épico, deveria ser de autêntica pureza), ele não será concebido como tal. Seu papel, nesta narrativa ficcional, é o de “atravessador”, de intermediário entre as três dimensões da ficção de Rogel Samuel: a sócio-substancial, a mítico-substancial e a ficcional-arte. Desde o seu surgimento até ao final da escrita rogeliana, ele atuará com desenvoltura nestes três planos da criação literária. Seu poder será atuante. Pari passu com o primeiro personagem-narrador, a sua importância se revelará sempre ativada. 

─ seu poder vinha do cheiro de camaru que arrancava da vítima fácil confissão antecipada, sim, enfraquecia e anestesiava a gente, nos dando um sono sob seu pulso,  o certo da culpa, gesto indecente e ameaçador, de assustar policial ─ impondo mole aquilo que o sustentava nos seus sangrentos desígnios e poderes, saberes e prazeres, o que encontrava no fundo de nós-mesmos, arrancados e submetidos à acessibilidade, ah, o bruto, mas fundamental, da impressão fugidia para a certeza, correta e culposa, que coage, que oprime, na lógica da nossa tenebrosa região infantil, a revelar-se, impelida, à força hipnótica, para fora, para novas submissões, e sorrisos, se infiltrando nas fendas do poder de onde imperava, ardiloso e interno, na interseção vazia e na interdição da resposta, na inversão das forças a ré, malandragem desmascarada, única nobreza, qualquer dignidade sobrevivente: “Diga sua verdade”. 

“Seu poder vinha do cheiro de camaru”. Em volta da Alta Palmeira dos Igapós (Paxiúba), com seus três caules indivisos (o social, o mítico e o ficcional) e sua mítica coroa de flores (o cocar), manifesta-se a interferência do cheiro do camaru, uma pequena árvore de flores aromáticas, de fruto indeiscente (que não se abre espontaneamente ao atingir a maturação). O cheiro agradável, afrodisíaco, verbenáceo, impregna criativamente todos os capítulos referentes a Paxiúba. Ao longo da leitura, o cheiro vai anestesiando inclusive o leitor. Eis o poder indiscutível do herói ficcional. Eis o poder indiscutível desta narrativa de Rogel Samuel. Seu personagem não é apenas um simples simulacro, como os personagens representantes das ficções paraliterárias (os representantes dos textos de novela televisiva e cinema, ou mesmo das novelas paraliterárias ─ lineares, sintagmáticas ─, produzidas para a massa). Paxiúba terá vida ficcional permanente, enquanto o romance existir e houver leitores-eleitos. A Ficção-Arte não se materializa apenas para o entretenimento do leitor. A Ficção-Arte exige do escritor (incluindo posteriormente o leitor) a plena-atenção, como recomenda com encômio a filosofia budista (normas filosófico-religiosas que, não por acaso, administram a vida espiritual do escritor Rogel Samuel).
Paxiúba, o bruto, o fundamental, o da impressão fugidia para a certeza, correta e culposa, aproxima-se do porto do Laurie Costa, porque o semi-humano (o semideus) interessou-se por uma mortal, uma comum lavadeira do Palácio Manixi. Ele terá de tomá-la sexualmente do Laurie Costa, o marido, para, assim, transitar livremente na dimensão humana. (Assim se comportou Júpiter, ao se relacionar com Alcmena, esposa de Anfitrião; assim se comportaram os Anjos do único Deus dos Hebreus, nos Evangelhos Apócrifos, ao se relacionarem com as “filhas dos homens”). Entretanto, é o cheiro do camaru (camará, cambará) que vigora “na interseção vazia” entre o dito e o não-dito desta obra ficcional de Rogel Samuel. Paxiúba, graças ao perfume do camaru, ultrapassa as regras do narrar mítico, “fundamental”, para vigorar na “lógica da tenebrosa região infantil”, energeticamente ficcional, de quem escreve. Ele se revela não apenas pelo poder do mito, mas por meio da “força hipnótica (do pensar efervescente, do repouso ativado), para fora, para novas submissões”. Ele é o somatório de todos os indígenas, bugres e caboclos que povoaram o arcabouço mítico-infantil do escritor nascido ali, naquelas paragens amazonenses, a manifestarem-se, exigindo do escritor que, mesmo saindo de seu lugar de origem, não poderá deixar de revelar as suas impressões primeiras, as suas particularidades e as particularidades de seus conterrâneos.

“Diga a sua verdade” ─ era a linguagem da ordem de seus olhos no risco do seu sorriso sensual e perverso, sublinhado por esboço de pecado que nos fotografava, que nos dizia no espelho avaliado das baixezas. 

O discurso mítico é a oratória da “ordem”, é a explanação (oral ou escrita) de fatos e seres grandiosos (humanos ou não), estruturalmente inseparáveis da tradição de um povo. Paxiúba possui a chave da verdade mítica de quem escreve, mas, quem terá de manuseá-la é o primeiro narrador (alter ego do segundo), enquanto personagem principal das ocorrências narradas. Paxiúba possui o poder de mando, assim como os grandes guerreiros e personalidades notáveis do passado. E os legendários heróis do passado mítico (passado que se perde nas fendas do tempo, anterior aos severos dogmas do cristianismo) não conheceram a natureza íntima da bondade. A “ordem” dos olhos e o “sorriso sensual perverso” caracterizam a face reduplicada do personagem Paxiúba. O ser mítico é selvagem, primitivo. Possui o que Max Weber classificou como “poder do ontem eterno” ou “poder do carismático-guerreiro”. A “ordem” dos olhos é para que o narrador diga somente verdades (apreciáveis ou não), mesmo que o narrar mítico da pós-modernidade seja a edificação intelectual de uma narrativa em prosa, idealizada. A Floresta Amazônica, revista ficcionalmente pelo escritor nascido ali, em suas imediações, concentra a essência do mito de antigas eras, mas, aqui, insolitamente revestido pela roupagem do arcabouço mítico-lendário dos índios daquela localidade. A pureza mítica poderá ser classificada como a integridade vivencial do ser primitivo, aquele que não foi maculado por exigências ideológicas (sociais ou religiosas). O ser primitivo não conheceu (não conhece) o ônus do pecado cristão. Paxiúba não é cristão. É um ser original. Então, quem reconhece o “sorriso sensual e perverso, sublinhado por esboço de pecado” a fotografá-lo, é o narrador rogeliano. A “ordem” mítica dos olhos de Paxiúba possui a pureza do primitivismo heróico. O bugre não sabe o que seja pecado, e não creio extra-texto que Frei Lothar (um outro personagem importante) o tenha catequizado. Quem se percebe avaliando o “sorriso sensual e perverso” de Paxiúba é o narrador. Quem avalia o olhar do “pecado” o fotografando é o narrador, aquele que, historicamente, conhece os dogmas do cristianismo, no que tange a relacionamentos sexuais. As “baixezas” do olhar de Paxiúba saíram do “espelho” simbólico-ficcional duplicado e “sublimado” de quem narra, não da pureza primitiva do mito.

Paxiúba era bom de não se encontrar de repente, na estrada deserta. Exigia prudência, medo e prática muda da obscura familiaridade com a ternura se via na transmissão de seu segredo. Em uma palavra: explícito. Quando se retirava, a gente se persignava. Porque se efetivava guerreiro de épocas irregulares, de tempo inverso, remotíssimos mecanismos ardilosos, das possibilidades do corpo, privilegiadas, inusuais, capazes de muito realizar, sedimentando o músculo vivo e assumido. 

Paxiúba “se efetivara guerreiro de épocas irregulares, de tempo inverso” (invertido), possuidor dos “remotíssimos mecanismos ardilosos, das possibilidades do corpo”, ou seja, “remotíssimos mecanismos ardilosos” da urgência sexual. O guerreiro de épocas contrárias às regras (de civilidade), nesta dimensão da narrativa ficcional rogeliana, é a personificação do ser mitológico. Este ser em especial (o Paxiúba) conhece as normas e os preconceitos sexuais do ser civilizado, por isto é “capaz de muito realizar sexualmente, pois sabe sedimentar (endurecer), a partir de seu apetite carnal fabuloso, “o músculo vivo e assumido”. Seu poder é o da força bruta. Se há algo que deseja, ele o toma. Por isto, “era bom de não se encontrar de repente, na estrada deserta”. Por isto, a exigência da cautela, da precaução. Por isto Zilda, a esposa do Laurie Costa, “uma certa e acocorada lavadeira das roupas (roupas brancas do Palácio Manixi), agachada sobre a prancha lisa do tabuão de sabão” , se assusta com o “regular da urgência daquele olhar” .

“Paxiúba, emblema da Amazônia amontoada e brutal, sombria, desconhecida, nociva”.  Por que o narrador rogeliano visualiza “Paxiúba (como) emblema da Amazônia amontoada e brutal, sombria, desconhecida, nociva”? Paxiúba é o símbolo do guerreiro mítico, gerado por seres excepcionais: a índia caxinauá e o negro barbadiano. O pai de Paxiúba, para o projeto mítico-ficcional de Rogel Samuel, teria de ter uma ascendência diferenciada, notável. Ele teria de ser oriundo da fusão do lendário indígena com o fantástico do imaginário africano. Há poucos negros no Estado do Amazonas. O “pai” teria de se constituir diferente dos outros pais das miscigenações usuais da realidade dos costumes amazonenses. O caboclo, originário da mistura entre o índio e o branco, não possui o porte, o vigor deste personagem. Paxiúba é o “emblema”, o símbolo dos poucos “bugres”, representantes da raça forte que por ali transita. Para a “Amazônia amontoada e brutal, sombria, desconhecida, nociva”, o autor reserva os símbolos depreciativos. “Amazônia amontoada”: todos os estratos sociais (brasileiros e universais) que para ali vão, em busca de riqueza fácil. “Amazônia brutal”: espaço geográfico onde se digladiam, em prol do rendimento pecuniário, seres grosseiros e violentos, já maculados pelas regras insanas do capitalismo selvagem. “Amazônia sombria”: receptáculo de seres tristes, lúgubres, despóticos, capazes de quaisquer ações de conseqüências desagradáveis para alcançarem seus intentos progressistas. “Amazônia desconhecida”: espaço geográfico ignorado politicamente (pelo menos, durante a ocasião do desenvolvimento do projeto ficcional rogeliano), “terra de ninguém” onde se faz presente a lei do preferencialmente forte, social e miticamente apresentada. “Amazônia nociva”: Amazônia em que todos estes danos, apresentados pelo narrador, ameaçam destruir a hegemonia da nação brasileira. Paxiúba é o “emblema” (símbolo) porque, por intermédio de sua face sócio-substancial, duplicada pela ficção, o narrador o coloca como “pistoleiro do rei”, o capanga profissional, o assecla do poderoso dono do Manixi. E, para ser o “emblema” do Amazonas e sustentar a honraria, o candidato ao cargo e ao título teria (terá) de ostentar (mesmo que não fosse / que não seja imortal) a poderosa face do mito.

Paxiúba, pistoleiro do rei. Bastava olhar, soldado policial, que ia cobrar algo, investigar, abatê-la e acuá-la, sub-reptício, excessivo, cínico, obsedante, poderoso, provocante, pornográfico, hipnótico. Perigo maior: olhava-a! 

“Paxiúba, pistoleiro do rei”. A partir desta assertiva, inicia-se a transformação dimensional do personagem. O semi-humano Paxiúba foi apresentado aos leitores, anteriormente, à moda dos lendários heróis mitificados, mas, como assecla do poderoso dono do Manixi, vigorará, daqui para frente, como personagem da dimensão sócio-substancial. A proposta ficcional do escritor amazonense não lhe concedeu o direito de gloriosamente retornar à (retomar a) dimensão mítica, uma vez que Paxiúba não é herói de narrativa épica. Mesmo assim, até aqui, os adjetivos abonadores caracterizam o herói lendário, e os adjetivos que não combinam com a aura do mito saem da perspectiva diferenciada do escritor da segunda fase do pós-modernismo brasileiro de Segunda Geração. Neste interregno mítico-ficcional, Paxiúba caracteriza o “soldado”, o assecla, o jagunço, o matador profissional, o lugar-tenente dos antigos e poderosos donos-de-terra do Brasil, regidos até há bem pouco tempo por normas políticas imperiais.

“E naqueles mesmos dias ocorreram grandes fatos em outros lugares e horas, históricos e decisivos para a sucessão desta ficção e que relatarei no momento oportuno, mais que para tanto ainda tenho de revelar surpresas de muitos outros ocorridos” . O desenrolar narrativo de “grandes fatos (...) históricos e decisivos” e as “surpresas de muitos outros ocorridos” ficcionais, daqui para frente, serão relatadas pelo segundo e principal narrador, estrategicamente fortalecido pelo incomum imaginário-em-aberto do escritor Rogel Samuel.
Nos capítulos da terceira fase da ficção rogeliana (do capítulo oito em diante), os quais, pelo meu ponto de vista, explicitam com maior vigor o já mencionado imaginário-em-aberto de Rogel Samuel, Paxiúba reaparecerá como personagem simplesmente ficcional. Em uma narrativa autenticamente ficcional (fenômeno da Era Moderna) o poder mítico se fragiliza. Se, como exemplo, recupero, aqui, o Quixote de Miguel de Cervantes, a minha explicação se produzirá sem custo teórico. A partir da Era Moderna, a postura ideológica do herói característico de um passado épico não mais se adequava às novíssimas exigências sócio-culturais que estavam a comandar aquela realidade. Por isto, a nomenclatura diversificada para significar o personagem central de Cervantes: herói da triste figura. Por esta razão, a renovada necessidade de descaracterizar o mito (e finalizá-lo), no desenrolar narrativo ficcional rogeliano (a supremacia pura / mítica / significativa do personagem, mesmo nas urgências sexuais). A partir do capítulo dez, Paxiúba desenvolverá mais os atributos animalescos instintivos do homem da realidade sócio-substancial, a violência dos sentidos, excesso dos propósitos, o inconsciente imperando sobre a razão, em detrimento dos genuínos e transparentes arroubos sexuais que caracterizaram, no segundo segmento narrativo, a sua personalidade mítica. A decadência do Manixi (a sócio-substancial somada ao mítico-substancial) proporcionou o esboroamento da fantástica força do personagem (a redução da importância mítica do bugre em pequenos fragmentos ficcionais, o lento desmoronar de sua imponência, levando-o para um estado de velhice e morte, de acordo com as normas vitais). Por exemplo, por ocasião da agonia do Manixi (op. cit.: 102), ainda no auge de sua força sexual, Paxiúba se aproxima perigosamente de Maria Caxinauá, dominando-a sexualmente. As “mãos enormes” e os “braços do ser monstruoso” que a agarraram, já não refletiam a posse sexual do ser puramente mítico. Quem agarra Maria Caxinauá é o “mulo” Paxiúba, “a besta selvagem” já maculada por instintos da energia telúrica, originária da matéria primordial.

A Caxinauá olhou aquelas margens [as margens de um dos igarapés do Manixi]. Ali viveram seus antepassados. Ali estivera entre os seus. A Caxinauá gostava de visitar aquele lugar histórico. Do passado não havia traço. (...)

Súbito pressentiu o perigo.

De repente sentiu que, de dentro, do fundo da mata, se aproximava algo ameaçador. Ela sabia que aquilo vinha muito rápido ─ nada o tinha denunciado, mas ela rapidamente saiu de dentro d’água.

Mas era tarde: Foi agarrada por mãos enormes, por enormes braços de um ser monstruoso, por trás, e ela sentiu o cheiro de cumaru e o forte calor daquele corpo e soube de imediato de quem se tratava, que seria ela mais uma das vítimas de Paxiúba, o Mulo.

Avaliou a situação: um dos braços do Mulo podia quebrar o seu pescoço, ela ia começar a sufocar, sabia daquela força insuperável besta selvagem. Ficou imóvel. Deixou-se levar. Sabia o que ele queria. O corpo do monstro estremecia, de prazer, era quente, o desejo roçava pelas costas da índia, arfando, como um cão. 

O personagem lendário de Rogel Samuel, o Paxiúba, nos últimos capítulos, passa a interagir (pela ótica interativa do segundo narrador rogeliano) com as induções visíveis e invisíveis do capitalismo desenfreado (benéficas ou maléficas), intrínsecas no plano sócio-substancial relativo à decadência do aparato capitalista do Manixi (o Manixi mítico permaneceu/permanece intacto, pois o ficcionista, por intermédio de seu narrador-auxiliar, na página 103, afirma que “a floresta vencera”). Posteriormente, envolvido por tais induções, disseminadas na maneira de pensar dos personagens relacionados com o aparato empresarial amazonense, Paxiúba começa a perder a sua aura guerreira ─ o brilho mítico, explícito, que o dignificava ─, terminando sua existência de uma forma diferente do narrar fabuloso, ou seja, pela forma exigida pelo tempo vital, acionada pelo dinamismo cíclico da ficção.
É bem verdade que a dimensão ficcional do Manixi, o lugar onde o poder mítico de Paxiúba se fez / se faz visível, já estava maculado por valores capitalistas, desde o início da trajetória ficcional do primeiro narrador Ribamar de Sousa (e isto será decodificado nos próximos capítulos desta minha apreciação fenomenológica da obra de Rogel Samuel), entretanto, nas duas primeiras fases do romance, o espaço de concepção da obra se projetou por meio da fusão do sócio-substancial com o mítico-substancial (o que os teóricos da literatura em prosa denominam como realismo-mágico). Na primeira etapa, reinou o narrador Ribamar, como representante da dimensão sócio-substancial. Na segunda etapa, o (verdadeiro) narrador, criativamente, cedeu o privilégio ao bugre Paxiúba, pois se percebeu motivado a reclamar a aura lendária do gigantesco personagem, para iluminar e revigorar o seu desenrolar narrativo. Eis aqui a razão crítica (fenomenológica) da imponência do personagem. No entanto, a aura de Paxiúba não permanecerá visível nos capítulos subseqüentes da terceira fase ficcional (e final). E a nova face (ficcional) de Paxiúba começa/começará a aparecer a partir da decadência exterior do Manixi, sustentada e assinalada por ocasião de seu encontro voluptuoso com a Caxinauá.
No capítulo intitulado DEZESSETE: A RUA DAS FLORES, o bugre Paxiúba reaparece como homem “original” (ser primitivo), ao aproximar-se de Conchita Del Carmen, “uma mulher gorda, muito gorda e muito sexy”, “a dona da Rua das Flores”, “o mais belo jardim humano” da prostituição bem-educada da cidade de Manaus, uma Transvaal incrustada nos domínios do Mito Indígena e recriada pela arte ficcional rogeliana (de uma forma nunca vista em outros escritores da pós-modernidade).

Conchita Del Carmen esperou que o homem se voltasse.

Não havia ninguém naquela rua. Rua estreita, na Vila de Transvaal. Ladeira. Exuberância de plantas e flores. Do Rio Jordão, que ali passava, no fim da descida. Dois gatos se lambiam na calçada. Conchita, sentada numa cadeira de embalo, olhava o homem e lixava as unhas. Fernandinho de Bará, nervosamente, sorriu para ela quando o homem se voltou. Fernandinho estava de pé, ao lado dela, sob as begônias. Antes que o homem se voltasse, ela não tinha reparado bem, distraída, examinando as unhas, a revista francesa caída sobre o colo. Conchita Del Carmen uma mulher gorda, muito gorda e muito sexy. 

Conchita Del Carmen já era a dona da Rua das Flores. (...)

Mas Conchita não acreditava no que estava vendo quase à sua frente. Aquilo nunca tinha sido visto antes, que Fernandinho, sempre atento às observações daquele tipo, lhe tinha chamado a atenção. (...)

Era um bugre alto e escuro, quanto à fortaleza dos músculos e dos membros, monstruosamente enorme, meio índio meio negro, mal vestido e descalço. Porém, tinha, a seu modo, certa simpatia.

Conchita Del Carmen vivia ainda sonhando com o filho do lendário Coronel Pierre Bataillon, que tinha sido o oposto daquilo que estava na sua frente. 

Pois o monstruoso homem era o contrário do que tinha sido o príncipe perdido. (...) Olhando aquilo, enojou-se. O monstro se afastava em direção do fim da ladeira da Rua das Flores, o chapéu na mão com que os cumprimentara. Tinha chegado do Rio Jordão..

Mas voltou.

Voltava! ele passava em revista as portas das casas. Como era de manhã, elas dormiam. A princípio, o Mulo. Depois ... se decidiu por ela.

Mas Conchita não se sentiu lisonjeada por aquela cortesia, mesmo fosse outro. 

Mas homem não queria. Principalmente um índio daqueles ─ via-se ali um assassino, um homem mau, com quem deveria desenvolver logo umas evasivas amáveis mas firmes falas. Aquilo era um bandido, ela conhecia bem.

Mas o homem se aproximava.

Meio envergonhado, como convinha tratar a uma senhora-dama, ele veio dizendo uns “bons dias...”.

Foi quando De Bará deu um grito, olhando o homem de perto:

─ D. Conchita, este é o Paxiúba, do Manixi. 

Paxiúba se “afigurou”  como homem ─ primitivo ─ diante de Conchita Del Carmen. Transitando dentro dos limites poderosos de um complexo populacional urbano, calcogênico, repleto de emanações terrestres, Paxiúba perde a aura lendária, aquela aparência miticamente iluminada que o caracterizou, quando de sua atuação como ser extraordinário, o “emblema da Amazônia amontoada e brutal, sombria, desconhecida, nociva”. 
 “Meio envergonhado, como convinha tratar a uma senhora-dama, ele veio dizendo uns “bons dias...”. Aquele que, “meio envergonhado”, se aproxima dizendo uns “bons dias” à senhora-dama Conchita Del Carmen, não é o mesmo Paxiúba que “assustou” a lavadeira Zilda, mulher do Laurie Costa, com a urgência de sua mítica necessidade sexual.
Nesta seqüência da narrativa rogeliana, Paxiúba perde a sua primazia heróica, pois penetrou no Olimpo telúrico da prostituição do recinto de Transvaal, e quem se coloca em evidência agora é o narrador da fase final do século XX, oferecendo aos leitores de seu romance a possibilidade de alcançarem o reverso da medalha da narrativa em prosa que caracteriza a escritura literária da era pós-moderna. A partir do capítulo oito, a sensibilidade criativa de Rogel Samuel, já distinguida desde as primeiras linhas de seu romance, alcança um reanimado pódio ficcional. Nesta seqüência, já não há lugar para as ações engrandecidas de Paxiúba, ou mesmo dos outros personagens (brancos ou índios) situados nas fronteiras do Manixi. Em princípio, o ficcionista amazonense se mobilizou em função de uma vigorosa retomada dos valores históricos do Estado do Amazonas, seu lugar de nascimento, espaço geográfico brasileiro de onde se originaram os créditos culturais que sedimentaram sua caminhada vivencial. O escritor, no início de sua narrativa, retoma ficcionalmente o grandioso passado histórico do Amazonas (em sentido positivo e negativo), para reagir paradoxalmente contra as injustiças, sócio-políticas, que, gradativamente, propiciaram a decadência do lugar. O amoroso descendente de um povo mitificado, o amante (cultural, intelectual) das lendárias guerreiras amazonenses, o admirador inconteste da grandiosidade histórica de seus irmãos naturais, percebe que há mistérios a serem revelados. Esses mistérios, ao contrário das regras oficiais da narrativa ficcional, terão de ser engendrados ficcionalmente por sua sensibilidade ímpar, e esta sensibilidade de ficcionista incomum não se enquadra (não se encaixilhará jamais) em padrões pré-estabelecidos. Depois da grandiosa extensão territorial do Manixi, inédita e diferenciada, (com o seu “magnífico, supremo, inominável, majestoso”  Palácio), surgem “ratos” na cidade de Manaus. Os “ratos” se manifestam depois da decadência e “morte do Manixi” , ativados pelo terceiro cogito do escritor-testemunha do crepúsculo da era da borracha, surpreendido agora pela necessidade de contemplar para a posteridade, mesmo que seja por intermédio de fragmentos narrativos, as frestas dessa decadência (contrária às regras e aos bons costumes das puras e antigas sociedades mitificadas, reverenciadas pelas gerações posteriores).
Revela-se, nos capítulos finais de O Amante das Amazonas, a autêntica documentação (pelo ponto de vista ficcional) do que não se pode avaliar, porque a presente história sócio-cultural do escritor amazonense ainda não se completou. Urge fazer justiça aos seus naturais (ao seu povo, que sentiu na própria pele os estragos da decadência); urge encontrar um justiceiro que aceite a co-participação em seus atos de autoridade judicial. Urge eliminar o mito do grandioso em proveito do pequeno, do incompreensível, das migalhas de pão que caem da mesa dos antigos poderosos, agora, decadentes.
Gaston Bachelard, em A Terra e os Devaneios do Repouso , cita Tristan Tzara: “Aumentadas no sonho da infância, vejo de muito perto as migalhas secas de pão e a poeira entre as fibras de madeira dura ao sol”. A Manaus da ficção rogeliana saiu de seu arcabouço vivencial infanto-juvenil. O escritor, enquanto criança e adolescente, foi testemunha dos últimos estilhaços do esplendor da borracha, do que restou da grandeza capitalista. Ele foi testemunha da decadência. Foi ele que viu, por intermédio de sua sensibilidade provinda da infância em Manaus, os “ratos”, como “um traço cinematográfico, contínuo”, se infiltrando “entre as frestas da construção carcomida”  de sua anterior realidade sócio-existencial. Assim, percebe-se a urgência em causar a morte do mito (autoritário, alegórico, exemplar), adotando ficcionalmente o descontínuo existencial do momento, em prol de uma futura nova ordem fundamental. Por este ângulo interpretativo, Paxiúba terá de morrer, “afigurado” como homem primitivo (Paxiúba, o Mulo). Alguém terá de apertar o gatilho e eliminar o mito, agora transmutado em ser primitivo, da face do Amazonas. Para tanto, o narrador delega esse poder a um outro personagem, o Benito Botelho. “Benito atirou no meio do tórax, matando-o. Benito o matou, sim. O morto era Paxiúba, o Mulo.” 
Pela ótica da crítica literária cientificista-estruturalista, terá de existir uma razão para a morte do bugre. Por enquanto, fica a pergunta à moda da crítica fenomenológica: Qual foi o motivo (real ou ficcional) que levou o personagem Benito Botelho a matar Paxiúba? Sobre este assunto secreto, indagarei no capítulo a ele reservado.

VII - Ribamar de Sousa: A Máscara Ficcional do Segundo Narrador

A fenomenologia do ser efetivamente mascarado, inteiramente travestido, é então pura negatividade de seu próprio ser. Pode adormecer nessa negatividade e mesmo perder a consciência de sua vontade de máscara. Tudo é feito de um só golpe: mascarar-se ou ser desmascarado é uma nítida alternativa lógica sem qualquer valor existencial.

A fenomenologia do ser que dissimula, mesmo do ser que desejaria alcançar a segurança total da máscara, somente poderá ser determinada em suas nuanças por intermédio das máscaras de algum modo parciais, inacabadas, fugidias, incessantemente tomadas e retomadas, sempre incoativas. A dissimulação é então uma conduta intermediária, uma conduta oscilante entre os dois pólos do oculto e do mostrado. Não há dissimulação hábil sem ostentação.

É necessário, portanto, penetrar na zona onde os acordos são incessantes, no próprio centro de uma verdadeira dialética da simplificação e da multiplicidade, juntar de alguma maneira a máscara inerte e o rosto vivo. O rosto visto nas manchas de tinta [nas palavras escritas] deve fornecer os traços decisivos da fisionomia. A máscara virtual é então um verdadeiro esquema para a análise. Interpretar a máscara virtual é penetrar na própria zona em que a ideação e a imagética permutam indefinidamente suas ações. Como diz justamente Georges Buraud em seu livro As Máscaras: “As máscaras são sonhos fixados” e, correlativamente, “os sonhos são máscaras fugazes em movimento, máscaras fluidas que nascem, representam sua comédia ou seu drama, e morrem”.(...). O psiquiatra deve viver a máscara do doente, como deve viver os sonhos do doente. Se o psiquiatra se adaptar à máscara que o paciente extrai da mancha, ele lerá, nessa máscara esquemática, pensamentos secretos do enfermo, os pensamentos que querem se esconder sob a máscara. Lerá, por assim dizer, no interior da máscara. 

Nestas modificadas deduções reflexivas, a partir do capítulo intitulado SEIS: JÚLIA (alusão à entrada de um novo personagem no fluxo narrativo), e reconsiderando inclusive as diversas vozes narrativas recônditas que se interligam no todo da ficção rogeliana (em verdade, há outras vozes narrativas no romance, vozes ocultas, pari passu com os dois narradores visíveis), não distingo mais o personagem Ribamar de Sousa como narrador repleto de força e autoridade concretamente representativa, aquela face histórico-ficcional em primeira pessoa, exteriorizada (aquela diferente máscara narrativa ficcional pós-moderna de narrador exemplar à moda tradicional) dos primeiros capítulos. No início, o Ribamar de Sousa representa ficcionalmente e historicamente o imigrante nordestino, fugindo da seca e da fome, buscando uma nova perspectiva existencial no Amazonas, lugar de muita água e, conseqüentemente, pelo ponto de vista da gratuidade da natureza, de muita fartura alimentar. Posteriormente, ainda em primeira pessoa, a voz narrativa apresenta-se como um ex-imigrante que alcança o podium requisitadíssimo da burguesia manauara pós-borracha. Pelo fim do romance, o Ribamar-narrador se submeterá a um segundo narrador, para que este conte a sua trajetória vitoriosa até alcançar, politicamente, o cargo de Senador da República do Brasil. Respaldada pelo segundo narrador (em terceira pessoa) e seguindo o desenrolar desta ficção que me movimenta, avançando em meus exames reflexivos, percebo-o, na terceira fase do romance, como personagem ativado, poderoso, submetido às induções criativas de outro narrador, porta-voz do escritor-ficcionista dos anos finais do século XX, Rogel Samuel. A partir dali, um outro narrador (de onisciência ficcional) contará o trajeto existencial do primeiro narrador Ribamar de Sousa: da lama do Manixi, da primeira fase do “capitalismo selvagem” (exploração do trabalho diário em horas a mais, inumanas), à riqueza sem freios, pessoal (sem estruturas confiáveis), de um capitalismo em fase de transição, simplesmente político, para uma segunda etapa do próprio capitalismo, aquele conhecido também por “capitalismo selvagem” (o domínio das grandes empresas estrangeiras com o consentimento dos poderosos da região).
Mesmo supondo que um narrador onisciente, um demiurgo ficcional, estivesse sempre presente, desde o início, assessorando a fala do primeiro senhor do procedimento narrativo, reconhecido pelos leitores pelo nome de Ribamar de Sousa, posso adiantar que o segundo só se manifestou/manifestar-se-á explicitamente no capítulo seis.
Anteriormente, no capítulo intitulado: CINCO: FERREIRA, os dois narradores se vincularam dinamicamente, pois necessitavam da união em seus interesses ficcionais (distanciados dos registros históricos), das forças criadoras do ato de narrar em defesa do prosseguimento do relato. E o relato ficcional rogeliano, para a manifestação de suas idéias diferenciadas sobre o espaço epo-social-ficcional do Seringal Manixi e a respeito dos personagens-agentes que por ali transitaram/transitam, não se desenvolveu e não se desenvolverá pelas vias normais do tempo vital.
Dialeticamente, pois me vejo instigada pelo tempo do pensar criativo de Rogel Samuel, dou um passo atrás, para descobrir o nó da questão que me orienta. No capítulo intitulado QUATRO: PAXIÚBA, no qual o personagem mítico se presentifica, em pleno século XX desestabilizado, século determinante de mudanças temporais, o primeiro narrador, comprometido com a sua atuação de sinalizador das exigências conceituais do histórico-ficcional e do mítico-ficcional, é temporariamente o dono do ato de narrar. Ribamar de Sousa, neste capítulo e nos próximos, sofre/sofrerá uma transformação em seu modo de vida, adquirindo gradativamente uma nova atitude ficcional, como ativado personagem submetido a um outro narrador. Mas, por enquanto, continua/continuará a se construir visivelmente como poderoso auxiliar do narrador pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração (porta-voz do escritor Rogel Samuel) em sua diferente proposta de criação literária. Neste caso específico (no quarto capítulo), sua presença se fez/se faz necessária, como uma espécie de intermediário das narrativas tradicionais exemplares, para que o segundo páginas adiante possa interagir, com a chamada narrativa insólita, uma variegada e entrópica inovação ficcional da Era Pós-Moderna, respaldada pelos desordenados e inúmeros modelos sócio-históricos e literários do final do segundo milênio das inevitáveis incertezas existenciais.
Se os leitores de Rogel Samuel acompanharam até o momento o meu raciocínio interpretativo, lembrar-se-ão do primeiro personagem-narrador Ribamar de Sousa, logo depois do fogo mítico, agente ígneo providencial ao desaparecimento dos personagens tio Genaro e Antônio, a mergulhar “na invisível água do igarapé de treva fria e rápida” e “[sendo] levado e se [afastando] dali”. Foi nesse momento que a apresentação do arcabouço histórico-ficcional se “dissolveu” para ceder o espaço ao mediador do relato mítico, onde se sobressaiu/se sobressai, conforme já foi refletido, a poderosa figura do bugre Paxiúba, iluminado pelo interregno simbólico do rogeliano relato pós-moderno da Segunda Geração. Esta segunda fase de O Amante das Amazonas, relacionada ao bugre Paxiúba, resguardada, como já foi assinalado, pela construção do recontar mítico indígena, também revelará, seguidamente, um novo momento de impasse ficcional, na busca dos valores ficcionais da pós-modernidade. Para referendar minhas deduções reflexivas, auxiliadas pela Crítica Cientificista Analítica, retomo o trecho da página 35 (op. cit.), no qual o narrador fundamental (oculto, disfarçado de Ribamar de Sousa) anuncia reptadoramente, sublinearmente, por intermédio de seu próprio sonho (“sonho de meia-noite psíquica, onde germinam virtudes de origem” ), que, dali por diante, a narrativa não prosseguirá pelo mesmo procedimento inicial. 

Foi aí que não soube de mais nada do que se passou pois não sei como fugi e mergulhei na invisível água do igarapé de treva fria e rápida, e fui levado e me afastei dali. De longe, os tiros silenciaram de vez, não vi mais o fogo da labareda da serpente, e uma correnteza negra me abraçou, me envolveu, me levou. Eu batia em paus e pedras, mas prosseguia e prossegui, noite a dentro, breu a fora, sem pesar, por dentro, extasiado e sem pensar, com as estrelas, como se tudo aquilo fosse o prosseguimento do meu sonho na noite velada e muito burra e muito cega, hipnótica, horrorosa, continuando assim por muitas horas entre sombras, segredos e lágrimas de tudo se dissolvendo... Sim. 

O sonho do narrador Ribamar de Sousa, aqui, é um importante referente, pois, por meio dele, o verdadeiro dono do narrar ficcional, o segundo narrador, à moda deleuziana, está temporariamente oculto, distanciado da propagação cultural burra, e processará o seu ato de narrar, estruturando sublinearmente a edificação intelectual-espiritual de um Seringal Manixi idealizado, mitificado, sem evidências exercidas. A partir do “sonho na noite velada”, “muito burra e muito cega”, “entre sombras, segredos e lágrimas”, o escritor Rogel Samuel procura revelar a seus leitores a verdadeira e primitiva história do Estado do Amazonas, cujos vestígios foram consumidos pelos relatos oficiais ou reduzidos em frações simplificadas pela veemência do código. A narrativa O Amante das Amazonas poderá ser classificada futuramente como a história de uma representação/criação mental, valiosamente ficcional (não é épica) do arquétipo poderoso e sensível da Grande Mãe associado ao poder bélico do Grande Pai (o poder feminino/masculino do mito andrógino), bem sinalizado por intermédio do mito das amazonas guerreiras.
Por meio das normas dos Estudos Semiológicos de Segunda Geração, agrupadas à colaboração filosófica de Gaston Bachelard, desvelo as palavras e frases referenciais que iluminam o momento do impasse narrativo que levará o segundo e verdadeiro narrador rogeliano a interagir, posteriormente, com os outros “grandes fatos” (relativos aos poderes femininos e masculinos), ocorridos “em outros lugares e horas, históricos e decisivos para a sucessão” (da ficção) que seria/será relatada “no momento oportuno, mas que para tanto ainda [teria/terá] (o primeiro narrador) de revelar surpresas de muitos outros ocorridos” . De tal sorte que, foi a partir da citação acima que o primeiro narrador “não soube de mais nada do que se passou”, pois não [entendeu] como conseguiu fugir da “floresta em chamas”, mergulhando “na invisível água do igarapé de treva fria e rápida, e [como foi] levado e [como pode se afastar] dali”. A continuação deste episódio se tornará visível aos leitores no início da página 48 (no capítulo 5: CINCO: FERREIRA). Por enquanto, o Ribamar, mergulhando no igarapé e enfrentando os obstáculos da correnteza, imerge no prosseguimento do sonho de seu criador ficcional, para chegar ao Palácio Manixi e se transformar em secretário da esposa de Pierre Bataillon, D.Ifigênia Vellarde (“─ E onde está Ribamar? ─ ouço a voz de D. Ifigênia que me procura. Fecho a porta e sigo para atendê-la. Durante a noite estou de serviço.”) . Em verdade, quem bate “em paus e pedras”, quem procura prosseguir “noite a dentro, extasiado e sem pensar, como se tudo aquilo fosse a [continuação de] um sonho”, é o escritor amazonense Rogel Samuel. Entretanto, não haverá explicações racionais, pois o primeiro narrador, alter ego do segundo, “não viu mais o fogo da labareda da serpente”, ou seja, da labareda conceitual e mítica que impõe regras discursivas lineares (o já conceitualmente familiar). O primeiro narrador, temporariamente, terá de visualizar um fogo mítico, que proporcione ao seu senhor, o narrador principal, uma espécie de interrupção provisória, e este segundo, por sua vez, terá de harmonizar-se ao verdadeiro proprietário do regulamento narrativo pós-moderno-pós-modernista de Segunda Geração, o criador ficcional, buscando um momento de descanso (um momento de sonho ativado), para que, páginas adiante, ele possa pôr em evidência a ilimitação de seu interior férvido (para, com isto, apresentar o poder feminino e masculino, naturais, o poder das amazonas guerreiras, em seu Estado de nascimento). No momento, na página trinta e seis do romance, quem sonha “na noite velada e muito burra e muito cega”, reafirmo, é o escritor do final do século XX, impossibilitado de narrar os acontecimentos relativos ao mergulho no invólucro onírico aquático de sua consciência singular. Assim, dando prosseguimento às ordens privativas da ”meia-noite psíquica [repito: do escritor amazonense Rogel Samuel], onde germinam virtudes de origem” , quem assume a interrupção ficcional transitória é o primeiro narrador, representante de narrativas exemplares, o Ribamar de Sousa.
A palavra sonho assinalada pelo narrador, como ele mesmo já informara linhas atrás, indica que “a vida não é de caminhos retos ─, mas na iniciação às Parcas, esboço de serpentes, nome de demônio” . Mesmo que a narrativa O Amante das Amazonas fosse/seja apresentada como proveniente de uma insólita vida ficcional, teria/terá de corresponder à “verdade” de quem narra: “Última verdade a ser implantada, cabeça a dentro, no elenco das melhores e das mais remotas profundezas, na subversiva imaginação do terror e da violência” . Por tudo isto, à moda exemplar, o primeiro narrador (juntamente com o segundo, indiscutivelmente pós-moderno, e, conseqüentemente, com o próprio escritor) necessitou temporariamente das trevas míticas (o “espaço noturno” bachelardiano) para que, no capítulo cinco , pudesse readquirir os puros “liames” de seu verdadeiro modo de narrar, para manifestar, ficcionalmente e criativamente, aos poucos próximos e aos inúmeros e pósteros leitores, os verdadeiros motivos da decadência do Império Amazônico.
Sobre o sonho do narrador rogeliano e o interregno que propiciou a manifestação do mítico Paxiúba, no capítulo quatro, busco um novo esclarecimento teórico-crítico, pela via filosófica de Gaston Bachelard, quando este tematiza sobre “o espaço onírico”:

Mal entramos no sono e o espaço se amortece ─ adormece um pouco antes de nós mesmos, perdendo suas fibras e seus liames, perdendo suas forças de estrutura, suas coerências geométricas. O espaço onde vamos viver nossas horas noturnas não possui mais lonjura. É a síntese muito próxima das coisas e de nós mesmos. Ao sonhar com um objeto, entramos nesse objeto como em uma concha. Nosso espaço onírico tem sempre um coeficiente central. Algumas vezes, em nossos sonhos de vôo, acreditamos ir bem alto, mas somos então apenas um pouco de matéria volante. E os céus que escalamos são céus inteiramente interiores ─ desejos, esperanças, orgulhos. (...). Permanecemos o próprio centro da experiência onírica. Se um astro brilha, é aquele que dorme que se estrela: um pequeno brilho sobre a retina adormecida desenha uma efêmera constelação, evoca a confusa lembrança de uma noite estrelada.

Nosso espaço adormecido torna-se logo a autonomia de nossa retina, na qual uma química minúscula desperta mundos. Assim, o espaço onírico tem por fundo um véu, um véu que se ilumina por si mesmo em raros instantes ─ em instantes que se tornam mais raros e mais fugidios à medida que a noite penetra mais profundamente nosso ser. 

Em seu “sonho de origem” (proximidade do arcabouço mítico, orientado, em um plano superior, pelo bugre Paxiúba), o primeiro narrador, secundado interlinearmente pelo segundo, e este, por sua vez, pelo criador ficcional, percorre a “correnteza negra” (amorfa) da intuição fértil, “extasiado e sem pensar, com as estrelas” , submetido ao próprio ser estrelado (corpo estrelado) do criador ficcional. Nesse momento, o que está em pauta é o presente mítico do fecundo escritor amazonense, suas “horas noturnas” sublimadas (engrandecidas), suas “muitas horas entre sombras”, seus “segredos e lágrimas” se dissolvendo em meio às próprias angústias imponderáveis. Entretanto, esta matéria de sonho (ar) terá de ser temporariamente ativada pela magia do fogo revigorante (um fogo mítico extraordinário), para iluminar os gaseificados instantes (“raros instantes”) do “espaço adormecido” do próprio escritor. Para que o narrador Ribamar não se perdesse “em confusas lembranças “de uma noite estrelada, com segredos e lágrimas se dissolvendo”, a matéria ígnea (o fogo) foi ativada incondicionalmente, para imolar “os parentes”, em benefício do comparecimento do bugre Paxiúba.
Da página trinta e sete a quarenta e sete, o conhecimento do arcabouço mítico amazonense ─ indígena ─ se iluminará em favor do segundo narrador (avatar do escritor), o qual, sonhadoramente, como explica Bachelard, buscará as mil lembranças de seu próprio passado. Nas páginas do romance, estão todas as gravuras, existenciais e/ou míticas que marcaram a solidão reflexiva do escritor Rogel Samuel. “O verdadeiro espaço do trabalho solitário é dentro de um quarto pequeno, no círculo iluminado pela lâmpada” , afirma Gaston Bachelard.
Sobre os relatos subsidiados pelo fogo, Bachelard orienta-me:

Com o fogo tudo se modifica. (...). Segundo afirma Paul Valéry, nas artes do fogo “nem abandono, nem descanso, nem flutuações de pensamento, de coragem ou de humor. Elas impõem, sob o aspecto mais dramático, o combate cerrado entre o homem e a forma. O seu agente essencial, o fogo, é também o pior dos inimigos. É um agente de precisão temível cujo efeito maravilhoso sobre a matéria que apresenta ao seu redor é rigorosamente limitado, ameaçado, definido por certas constantes físicas ou químicas difíceis de observar. Qualquer desvio pode ser fatal: a peça fica arruinada. Se o fogo esmorece ou se ateia de mais, o seu capricho redunda em desastre”... 

A criação ficcional de Rogel Samuel, no instante do impasse narrativo, necessitou do auxílio do elemento fogo, principalmente do fogo mítico em sua forma destrutiva, para que, posteriormente, auxiliado pelo elemento água, pudesse realçar a imagem de uma Amazônia lendária e selvagem (feminina e masculina), ameaçada de extinção por obra e graça do poder do capitalismo selvagem. O fogo que iluminou o cogito reflexivo do escritor não esmoreceu e nem se ateou de mais. Foi contemplado numa hora de ociosidade [ociosidade = repouso ativado] em toda a sua vivacidade e brilho para que o escritor, a partir da página 48, pudesse revelar aos pósteros os grandiosos, inacreditáveis, e, posteriormente, extintos segredos capitalistas do Manixi.
De qualquer forma, a partir do incêndio transformador, a água será o elemento de condução criadora da narrativa ficcional rogeliana, substância esta já anunciada (no primeiro capítulo) como imprescindível para o desenrolar do relato. Depois do “fogo da labareda da serpente” ─ uma indicação de que o plano mítico se avizinhava/avizinha-se ─, o narrador Ribamar de Sousa [mergulhou] “na invisível água do igarapé de treva fria e rápida, e [foi] levado e [se afastou] dali”. “Uma correnteza negra” [o abraçou, o envolveu, o levou]. O fogo, segundo Paul Valéry (citação de Bachelard), “é um agente essencial”, mas “de precisão temível” cujo “efeito maravilhoso é limitado” . Portanto, referendando a fase de transição para o plano mítico-ficcional, a consciência singular deste autor amazonense, conhecedor das limitações ígneas, exige a distinção de uma substância que possa se tornar também propulsora de “surpresas de muitos outros ocorridos” .
Nesse impasse narrativo, há a incomum “aproximação” do fogo com a água, enquanto elementos naturais da extensão geográfica amazonense. Para tanto, para explicitar o repouso ativado (o sonho) e a necessidade de um interregno estimulante (representado pelo arcabouço mítico-ficcional da heroicidade ativada do bugre Paxiúba), a água se tornou/se torna “uma correnteza negra”, indício de que as lembranças dos caudalosos rios da terra natal, no momento, são “um convite à morte” (morte mítica), como explica Gaston Bachelard, em seu livro A Água e os Sonhos . As lembranças da terra natal não são alentadoras ao escritor, são pesarosas. A “correnteza” aquática, cogitativa, ainda não se desprendeu dos “rolos negros da fumaça” do pensamento interativo, operador de incêndios literários grandiosos. O criador ficcional (tão somente ele, apesar de Roland Barthes, o da primeira fase estruturalista, continuar, fantasmagoricamente, a contaminar-me com a sua assertiva: o narrador é um personagem como outro qualquer, não se deve confundir o autor com o narrador) se encontra às voltas com a “dipsomania (impulso mórbido) da morte” .
Nesse instante criativo de Rogel Samuel, a substância essencial para o “ócio” dipsomaníaco (repouso fervilhante a impulsionar o criador ficcional para a representação dramática da morte) é a água negra, e, para este tipo de água, “que permite penetrar num dos refúgios materiais elementares” , não existem palavras consoladoras. Por tal razão, percebe-se um veto contra a chamada explicação linear (exemplar), instaurando-se o vazio ficcional (ou espaço em branco), sobre o qual o leitor terá de se debruçar e preenchê-lo com o seu próprio imaginário. Esta forma pós-moderna de narrar, no parágrafo em questão, está perceptível. O ficcionista-narrador, submetido por sua vez ao seu próprio repouso fervilhante, enquanto seu primeiro personagem-narrador se debatia/se debate na milenar água do histórico-ficcional, logo a seguir, desvendou o caminho secreto que o levaria a interagir com o plano mitificado da realidade amazonense. Por esse ângulo interpretativo-reflexivo instaura-se o interregno fabuloso de Paxiúba, pois o personagem-narrador Ribamar de Sousa “não soube de mais nada do que se passou, “não [soube] como [fugiu e mergulhou] “na invisível água do igarapé de treva fria e rápida, e [como foi] levado e [afastado] dali”. Os “parentes” morreram, “mas... [ele] ainda estava vivo e não ferido”.  No caso, a água de “treva fria”, mitificada, não permitiu a morte do primeiro narrador rogeliano, dignificando-o também como o narrador decisivo da segunda seqüência mítico-ficcional.
As narrativas de acontecimento não se submetem à delimitação do narrar tradicional. Se não há explicação para o acontecido, o episódio será classificado como essencial para o reconhecimento da narrativa fantástica, uma vez que o personagem-atuante Ribamar de Sousa se recuperou, de uma forma diferenciada, diga-se de passagem, no plano das probabilidades existenciais. O narrador rogeliano duplicado teria ainda muito o que viver, para que, depois da aparição do bugre Paxiúba, pudesse narrar, à moda do escritor ficcional do século XX, a decadência sócio-substancial do Amazonas, o seu lugar de nascimento.
Entretanto, para o prosseguimento de minha reflexão sobre o ativo exercício de escrita ficcional do primeiro narrador, logo depois da morte dos “parentes” e da ascensão narrativa ao plano mítico, plano este reservado para a inserção do “lendário e eterno”  Paxiúba, continuo a exigir aqui o auxílio filosófico de Gaston Bachelard:

O ser é antes de tudo um despertar, e ele desperta na consciência de uma impressão extraordinária. O indivíduo não é a soma de suas impressões gerais, é a soma de suas impressões singulares. Assim se criam em nós os mistérios familiares, que se designam em raros símbolos. Foi perto da água e de suas flores que compreendi ser o devaneio um universo em emanação, um alento odorante que se evola das coisas pela mediação de um sonhador. 

“O ser é antes de tudo um despertar, e ele desperta na consciência de uma impressão extraordinária”. O primeiro narrador, alter ego do segundo, despertou, primeiramente, por intermédio de uma consciência ativada, extraordinariamente impressionada com a descoberta ficcional do plano mítico amazonense, constituído a partir da insígnia do bugre Paxiúba. Se ele, enquanto um sobrevivente do ataque dos Numas, ataque este que ocasionou o incêndio da floresta, e, por conseqüência, a morte dos “parentes”, levado pela correnteza do “igarapé de treva fria e rápida”, não se lembra de como se salvou, em contrapartida, tem a certeza de que “uma correnteza negra [o abraçou, o envolveu, o levou]. Ele também tem o conhecimento de que [bateu] “em paus e pedras”, mas que [prosseguiu], “noite a dentro, breu a fora, sem pesar, por dentro, extasiado e sem pensar, com as estrelas, como se tudo aquilo fosse o prosseguimento de [seu] sonho na noite velada e muito burra e muito cega, hipnótica, horrorosa, continuando assim por muitas horas entre as sombras, segredos e lágrimas”, sentindo tudo a se dissolver ... Sim”.
Bachelard diz: “O indivíduo não é a soma de suas impressões gerais, é a soma de suas impressões singulares. Assim se criam em nós os mistérios familiares, que se designam em raros símbolos”. O narrador de O Amante das Amazonas (o primeiro, o segundo, o terceiro; quantos forem) concentra em si as impressões vivenciais, singulares, de seu criador. Os “mistérios familiares”, cerceadores, realçados na filosofia bachelardiana, acenam as suas presenças incomodantes na ficção extraordinária de Rogel Samuel (extraordinária aqui não possui sentido encomiástico; o meu propósito para exibi-la é interpretativo-reflexivo). Assim, os raros símbolos (os símbolos importantes que povoaram/povoam/povoarão o amplo imaginário-em-aberto do escritor), restritos a esses mistérios familiares convertem-se em arcabouço heróico, porque as “verdades” da mitologia indígena brasileira, “verdades” oriundas dos conceitos vivenciais exemplares, adquiridos desde a infância e adolescência na cidade de Manaus, sempre fizeram parte da vida do escritor. E permanecerão com ele, enquanto vigorar o seu itinerário existencial como cidadão do mundo.

Eu deixei o Amazonas, mas meu coração ficou lá, na margem do Rio Negro.

A floresta, naquele tempo dos anos 1949 e 1950, era imensa, feita de árvores seculares enormes, imensas, pré-históricas. A floresta verdadeira era impenetrável. Não, não posso mais falar, pois me emociono, (...). não sei falar da Amazônia de minha infância com racionalidade. 

“Foi perto da água e de suas flores que melhor compreendi ser o devaneio um universo em emanação, um alento odorante que se evola das coisas pela mediação de um sonhador” , reflete Gaston Bachelard, no capítulo “Imaginação e Matéria” de seu livro A Água e os Sonhos. Por este prisma, foi assim que, às margens dos igarapés ou mesmo ladeando os largos e caudalosos rios amazonenses, manifestou-se, por meio da quentíssima aragem manauara (vento), proveniente da Floresta, o “cheiro do camaru”, anunciando ao escritor Rogel Samuel a presença do mítico personagem, o bugre Paxiúba, por intermédio da íntima e distinta compreensão do devaneio de “um universo em emanação” .
Repensando a matéria ar como um renovado elemento condutor para a alteração do exterior narrativo, é como se no capítulo seguinte, destinado à elevação do fantástico Paxiúba, o “cheiro do camaru” “fosse o prosseguimento do sonho [do escritor] na noite velada”, dissolvendo e “anestesiando” as lembranças ruins e, ao mesmo tempo, reanimando o fluxo narrativo por meio de uma novíssima “impressão extraordinária”.

O dia está nascendo. (...). Estou no cais, trazido pela correnteza. Entorpecido, meu corpo quase morto, toco os degraus da escada, não os sinto. Não me vêem, mas os vejo. Ali está o rei, o construtor do império amazônico, (...). Apareço trazido pelas águas, como Moisés do Egito. Flashes fracos, aparecem e desaparecem. A imagem de meu irmão morto se projeta e se apaga em minha mente. Mas não dói. É imagem vaga, frouxa. 

O narrador principal, neste capítulo, ainda necessita de seu primeiro narrador, o Ribamar de Sousa, para revelar aos leitores de seu presente histórico (aos realmente interessados em sua recriação ficcional sobre a glória e decadência do Império Amazônico) e aos leitores do futuro (aqueles que inequivocamente irão julgar o valor de sua ficção-arte) as diversas realidades ─ sócio-míticas e sócio-políticas ─ do Manixi, incluindo também o seu deslumbrante apogeu e melancólico declínio. Nos capítulos finais, o Ribamar de Sousa se transformará e passará o comando do proceder narrativo ao segundo (e principal) narrador. Contudo, enquanto personagem significativo, ao longo do romance, nas páginas finais, mesmo ostentando a fisionomia do poder capitalista em declínio, a sua presença será de régia importância.
VIII - Pierre Bataillon: O Representante do Capitalismo Primitivo do Império Amazônico em Oposição aos Limites Ilimitados do Manixi

Primeiramente avisto o Palácio.

O dia está nascendo. (...). Estou no cais, trazido pela correnteza. Entorpecido, meu corpo quase morto, toco os degraus da escada, não os sinto. Não me vêem, mas os vejo. Ali está o rei, o construtor do império amazônico, (...). Apareço trazido pelas águas, como Moisés do Egito. Flashes fracos, aparecem e desaparecem. A imagem de meu irmão morto se projeta e se apaga em minha mente. Mas não dói. É imagem vaga, frouxa.

Pierre Bataillon é homem mais baixo e magro do que eu pensava. Bem vestido, empertigado, gestos largos, modos aprumados, nervosos, uma dignidade, uma cortesia à antiga. Nariz aquilino. Cabelos finos. Bigodinho negro. A cabeça levantada, nobre, tem aura. A gravata borboleta, o paletó de linho branco, abas e calças largas, sapatos de verniz. Parece suportar, nas costas retas, as barbatanas retiformes de um manequim retígrado, que tudo vê, tudo olha. O gesto, o olhar com que, altaneiro, superior, soberbo, se dirige aos demais, soberanamente, por concessão real. Atrapalha. Representa. Apesar da estatura baixa, é como se olhasse de cima, de um patamar superior. Ouço-o falar um português erudito, postiço, livresco, clássico e impostado, mas fluente. (...) o terno branco brilha. Bem talhado. Camisa de seda, suspensórios, colete, um John Bull de ouro maciço atravessado, preso por uma corrente de aros duplos, pesada, platina e ouro. Ele é um homem de vitrine, de museu, arrumado. Na cintura há um Smith de níquel e prata, cabo de marfim. Dizem que ele atira bem, como um militar, que coleciona armas, revólveres, carabinas, arcabuzes que entulham a Sala de Armas da sua tropa de choque.

Não sei por que Pierre Bataillon quis que eu ficasse, trabalhasse com ele. Gostou de mim. 

O narrador rogeliano, nesta fase de seu romance, apresenta o personagem Pierre Bataillon, aos leitores de seu presente histórico e aos leitores do futuro, por meio de uma escrita que se constitui agregando à linguagem ficcional a técnica da linguagem visual cinematográfica. O desenrolar narrativo propulsor de sua ressurreição pela água, ao nascer do dia (sinal de que as trevas ígneas que protegeram/protegem os mistérios familiares e os raros símbolos começam a desvanecer-se), movimentar-se-á, de ora em diante, em favor de uma querela íntima que o incomoda, enquanto alter ego do escritor Rogel Samuel: a perda dos puros valores míticos da tradição amazônica em confronto com os valores degradados da modernidade (últimos alvores da Era Moderna já em decadência). O incômodo se faz visível, uma vez que uma das questões centrais do romance, em suas duas partes iniciais (a forma de economia do Manixi ficcional/Amazônia real do início do século XX em confronto com a perda de antigos valores mítico-sociais), relaciona-se com a economia pré-zona franca da cidade de Manaus. Os pensamentos da pura estética do ar, como já expliquei anteriormente (elemento condutor para a alteração do exterior narrativo), aqui, acoplou-se à água revitalizante em benefício de um renovado direcionamento ficcional. À moda dos flashes cinematográficos, ou à moda dos desenhos em quadrinhos oriundos das artes plásticas, os quais revitalizaram a priori as imaginações juvenis do século XX, o Ribamar de Sousa sai do rio-conducente renovado, pronto para futuras peripécias ficcionais (pós-modernas). O narrador-personagem se apropria do olhar intelectual e da mão trabalhadora e do imaginário-em-aberto sui generis de seu criador, elementos próprios da escrita pós-moderna, descontínua e fragmentada, para assinalar a ocasião do encontro. O escritor pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração, através de seu avatar ficcional, está, no momento, vivenciando o rico passado da Amazônia (vivenciando o seu próprio rico passado cronológico-familiar) por intermédio de um presente histórico transfigurado. Por meio da dialética temporal (Bachelard) e do conhecimento da técnica da apresentação narrativa (essência épica), as cenas (“de vitrine”) oriundas de íntimas ondas elétricas e de especialíssimos raios de luz, se vão revelando, intermitentes (“flashes fracos, aparecem e desaparecem”), primeiramente diante dele e, posteriormente, diante do compenetrado leitor, para, paradoxalmente, revelarem o apogeu e declínio do poder imperialista-capitalista no Amazonas.

Se queremos que o pensamento de pura estética se constitua, será necessário transcender, pelas formas, através do apelo às formas, a dialética temporal. Se mantivéssemos ligação com a vida e com o pensamento corriqueiros, a atividade de estética pura seria puramente ocasional. Ela não teria coerência, não teria "duração". Para durar na terceira potência do cogito, é preciso pois procurar razões para restituir as formas vislumbradas. Não se poderá chegar até lá sem aprender a formalizar atitudes psicológicas bastante diversas. 

Neste capítulo intitulado CINCO: FERREIRA, especialmente, o escritor amazonense Rogel Samuel alcançou o que Bachelard denomina de “pensamentos de pura estética”, pensamentos situados no terceiro cogito da consciência singular, em outras palavras, pensamentos de transcendência formal. Rogel Samuel transcendeu os limites impostos pelas diversas leituras (foram dez anos de pesquisa, segundo suas palavras), “pelas formas, através do apelo às formas”, por intermédio de uma intrigante “dialética temporal”. A apresentação de Pierre Bataillon não é uma simples identificação e qualificação de um personagem importante ao decurso narrativo. Pierre Bataillon é o símbolo dos primeiros capitalistas estrangeiros que povoaram a região amazonense, inclusive, símbolo das raízes estrangeiras do autor. Em sua pessoa ficcional se concentra, além da exuberância dessas antigas figuras políticas, a questão de uma passada economia oriunda da extração da borracha, anterior ao momento culminante da Zona Franca de Manaus.
O capítulo intitulado CINCO: FERREIRA é uma referência ao personagem Antônio Ferreira, advogado, “agente e sucessor dos negócios do riquíssimo velho” [Comendador Gabriel Gonçalves da Cunha, seu sogro], (...) “um menino”, um “meninão branco, mãos delicadamente tratadas, cabelos anelados, negros, caindo aos cachos sobre os aros de ouro dos óculos”. Antônio Ferreira aglutina em si todos os aventureiros-espertalhões que transitaram por Manaus nos anos iniciais do progresso amazônico, e ali enriqueceram (muitos, por intermédio de casamentos por conveniência).

Ferreira foi o maior propagandista de si. Não eram as mulheres o que ele deveras amava, mas a Glorinha, e todos o fazem por diversos motivos a seu dispor. Suas ambições nela se concentravam. E apesar de filho de uma família de classe média humilde, foi erguido ao podium, casou-se com a Lambisgóia, ou melhor, com a mais sólida fortuna da terra, que o jovem soube como ninguém se fazer amar pelo sogro, que viu nele a personificação da inteligência, lealdade, valor, que o igual entende o igual, e quanto mais corrupto mais leal ao tipo de capitalismo ali praticado, na época, e o velho o amou durante toda a vida, como a um filho, mesmo depois que ele se separou da filha, conforme vai-se ver. 

O capítulo processa-se por meio do discurso da duração atuante (o que os críticos, avaliadores de grandes epopéias, denominam como presente histórico). O advogado Ferreira é/será um elo importante para o desenrolar do relato ficcional rogeliano, porque, por exigências do narrar pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração, sua figura fará parte dos personagens/“corruptos” mais leais “ao tipo de capitalismo ali praticado, na época”. Somente este personagem, aparentemente passageiro ao longo do romance, ofereceria matéria importante sobre o assunto que ora está a movimentar-me, neste meu capítulo sobre o Capitalismo Primitivo do Império Amazônico em oposição aos Limites Ilimitados do Manixi ficcional. Entretanto, o personagem de valia às minhas reflexões é Pierre Bataillon, inserido, por sua vez, no reduto dilatado do personagem maior da ficção rogeliana: o Seringal Manixi.
O crítico literário brasileiro Eduardo Portella, em meados dos anos setenta do século passado (século XX), criou a expressão “Limites ilimitados da Teoria Literária” , para caracterizar o impasse teórico-crítico (e, conseqüentemente, a nova abordagem interpretativa) destinado ao desvelamento das camadas ocultas do texto literário, impasse este instaurado no Brasil, com o advento dos renovados Estudos Hermenêuticos do Texto Literário. A abordagem teórico-literária defendida, naquele instante, por Eduardo Portella, se constituía em oposição à delimitação e domínio estruturalista dos dogmáticos conceitos analíticos que por aqui se alastravam (e restringidamente continuam imperando, até o momento). Retomo a nomenclatura portelliana porque, neste meu capítulo sobre o personagem Pierre Bataillon e o espaço ficcional do Manixi (o estupendo Palácio e as terras que o rodeiam), decidi-me pela expressão (confiando que o proprietário de fato desta significação teórico-crítica veja nesta minha adequação um reconhecimento reflexivo da Teoria de Inclusão do Silêncio, uma ciência da literatura, fenomenológica por ele dignificada). A determinação em utilizar a expressão de Eduardo Portella aqui se justifica, visto que, por meio da denotação paradoxal dos dois termos justapostos, e ainda como testemunha desse impasse teórico-doutrinário ocorrido nos meios intelectuais brasileiros nos anos setenta, permiti-me compreender a dilatada consciência interativa, de Rogel Samuel (aqui realçada). Ao idealizar ficcionalmente o personagem Pierre Bataillon, o senhor das terras do Manixi (a ilimitada, inominável, espetacular dimensão ficcional deste primeiro espaço geográfico de O Amante das Amazonas), o ficcionista de origem manauara o colocou em uma realidade extra-vital, oriunda de um imaginário-em-aberto dimensionado, caracterizando assim o pano de fundo das narrativas da pós-modernidade, propensas à manifestação de cenários grandiosos (aquilo que os críticos atuais chamam de simulacro ficcional).
Sobre esta minha adesão a um ponto de vista crítico abrangente, interdisciplinar (recuperado de diretrizes fenomenológicas, para interagir com a representação do poder político de Pierre Bataillon e com a dimensão extraordinária do Manixi, enquanto espaço geográfico ficcional diferenciado e, ao mesmo tempo, submisso às regras do Capitalismo Primitivo de base familiar do início do século XX, que por ali imperava, exercendo, por conseguinte, poderes de vida e de morte), será válido lembrar, aqui, a indução teórico-crítica de Roberto Machado, em sua “Introdução: Por uma genealogia do Poder”, sobre a “teoria geral do poder” de Michel Foucault, percebida como importante na nona edição brasileira de Microfísica do Poder.

A questão do poder não é o mais velho desafio formulado pelas análises de Foucault. Surgiu em determinado momento de suas pesquisas, assinalando uma reformulação de objetivos teóricos e políticos que, se não estavam ausentes dos primeiros livros, ao menos não eram explicitamente colocados, complementando o exercício de uma arqueologia do saber pelo projeto de uma genealogia do poder.

Qual a grande inovação metodológica assinalada, em 1961, pela História da Loucura? A resolução de estudar ─ em diferentes épocas e sem se limitar a nenhuma disciplina ─ os saberes sobre a loucura para estabelecer o momento exato e as condições de possibilidade do nascimento da psiquiatria. Projeto este que deixou de considerar a história de uma ciência como o desenvolvimento linear e contínuo a partir de origens que se perdem no tempo e são alimentadas pela interminável busca de precursores. Mas que também se realizava sem privilegiar a distinção epistemológica entre ciência e pré-ciência, tendo no saber o campo próprio de investigação. O objetivo da análise é estabelecer relações entre os saberes ─ cada um considerado como possuindo positividade específica, a positividade do que foi efetivamente dito e deve ser aceito como tal e não julgado a partir de um saber posterior e superior ─ para que destas relações surjam, em uma mesma época ou em épocas diferentes, compatibilidades e incompatibilidades que não sancionam  ou invalidam, mas estabelecem regularidades, permitem individualizar formações discursivas. (...)

O Nascimento da Clínica, de 1963, retoma e aprofunda uma questão presente, mas pouco tematizada, no livro anterior: a diferença entre medicina moderna e medicina clássica. O estabelecimento e a caracterização desta ruptura são os principais objetivos desta nova investigação. E a mutação não se explica por um refinamento de noções, que puderam ser mais rigorosamente definidas, nem pela utilização de instrumentos mais poderosos, que tornaram possível conhecer algo até então desconhecido. (...)

As Palavras e as Coisas, de 1966, radicaliza este projeto. Seu objetivo é aprofundar e generalizar inter-relações conceituais capazes de situar os saberes constitutivos das ciências humanas, sem pretender articular as formações discursivas com as práticas sociais. Tese central do livro: só pode haver ciência humana ─ psicologia, sociologia, antropologia  ─ a partir do momento em que o aparecimento, no século XIX, de ciências empíricas ─ biologia, economia, filologia ─ e das filosofias modernas, que têm como marco inicial o pensamento de Kant, tematizaram o homem como objeto e como sujeito de conhecimento, abrindo a possibilidade de um estudo do homem como representação. Isso pode parecer enigmático, mas o que interessa aqui é assinalar que o propósito da análise arqueológica, tal como foi realizada neste livro [As Palavras e as Coisas, de Michel Foucault], consistia em descrever a constituição das ciências humanas a partir de uma inter-relação de saberes, do estabelecimento de uma rede conceitual que lhes cria o espaço de existência, deixando propositalmente de lado as relações entre os saberes e as estruturas econômicas e políticas. 

Por este prisma foucaultiano, percebo atualmente o inter-relacionamento teórico-crítico dos diversos saberes analítico-interpretativos do momento, os quais promovem o entendimento do texto ficcional dos ficcionistas da pós-modernidade. Neste meu tempo de pluri-atividade intelectual, por certo submetida a pluri-rotatividade criativa do ficcionista pós-moderno-pós-modernista de Segunda Geração, não há como fugir à regra. Para pensar a atuação do personagem Pierre Bataillon, senhor do Seringal Manixi, e repensar os limites ilimitados que confirmam o seu fabuloso poder, enquanto espaço extravital, não poderei observar apenas a sua efetiva localização geográfica na região amazonense. Pelo ponto de vista dos tratados descritivos, sobre o local (de fato) desta ímpar recriação ficcional, a ilimitação não existe. O Manixi natural não poderá conter o (competir com o) Manixi ficcional rogeliano. Se me adéquo às regras analíticas, subservientes aos cientificistas conceitos críticos cerceadores (oriundos de antigas normas estruturalistas, ou da já ultrapassada Teoria de Exclusão do Silêncio ), criticada alhures por Eduardo Portella, o espaço geográfico em questão se reduzirá a um trecho da Floresta Amazônica, onde se localiza uma região propícia ao plantio de mandioca e um lago, que foi chamado de Manisi Avani pelos antigos habitantes indígenas do lugar, o qual, posteriormente, sofreu assimilação vocabular com o nome de Manixi. Se pesquiso, no mapa do Brasil, o Amazonas de Rogel Samuel e os Estados adjacentes, buscando o nome do lugar (lugar que me embaraça reflexivamente, por não conhecê-lo internamente) e as diversas denominações dos rios caudalosos e igarapés ostensivos, que aparecem, em grande quantidade, atravessando o relato, acharei, com certeza, vestígios esclarecedores, sem custo teórico, como costumo dizer. Existe realmente esta sugestiva nomeação geográfica, habilmente recriada por Rogel Samuel, em seu diferenciado romance sobre a glória e declínio do Amazonas, seu Estado de nascimento. O Manixi de lá (o geográfico) é um local que abriga um lago piscoso (Lago Manixi), situado na Bacia do rio Solimões, submisso ao Município de Iranduba. O nome do local se notabiliza pelo fato de existir ali, entre a variegada flora equatorial, o armazenamento de uma árvore (ou arbusto) chamada manixeiro, cujos frutos saborosos são conhecidos por manixi (espécie de mandioca), além da planta chamada maniva ou maniwa (espécie de amendoim). Manixi, segundo outras fontes, provém de Manibí (maniibí), que quer dizer, em sentido lato, Terra da Mandioca. A deusa indígena Mani era, por exemplo, cultuada como a deusa da mandioca, o que, no caso, simbolizava a divindade indígena protetora da fartura, da prosperidade. Além disto, segundo informações governamentais, existe ainda (atualmente sem esplendor) o Seringal Manixi, sobredito ficcionalmente e distinguidamente por Rogel Samuel. Entretanto, o Seringal Manixi que anima minhas reflexões poderá ser interpretado reflexivamente por intermédio da filosofia de Gaston Bachelard, quando este interage filosoficamente com a poética da casa primordial, em seu livro A Poética do Espaço, ou mesmo, ainda reflexivamente, por intermédio dos pensamentos foucaultianos, sobre o poder.

O excesso de pitoresco de uma morada pode ocultar a sua intimidade. Isso é verdade na vida; e mais ainda no devaneio. As verdadeiras casas da lembrança, as casas aonde os nossos sonhos nos conduzem, as casas ricas de um fiel onirismo, rejeitam qualquer descrição. Descrevê-las seria mandar visitá-las. Do presente pode-se talvez dizer tudo; mas do passado! A casa primordial e oniricamente definitiva deve guardar sua penumbra. Ela pertence à literatura em profundidade, isto é, à poesia, e não à literatura eloqüente, que tem necessidade do romance dos outros para analisar a intimidade. Tudo o que devo dizer da casa da minha infância é justamente o que preciso para me colocar em situação de onirismo, para me situar no limiar de um devaneio em que vou repousar no meu passado. 

O Manixi, o que me acena provocativamente, não é o Manixi real dos manuais geográficos da região amazonense. Encontro-me, aqui, acanhada pelo mítico-ficcional Seringal Manixi, do escritor Rogel Samuel, e por seu Palácio magnificente, “supremo, inominável, majestoso” ; por seu dono extraordinário, cuja alcunha reputada é Pierre Bataillon, “um homem que vivia debaixo do ouro no Alto Juruá” ; além de deparar-me enlaçada nas inúmeras questões pós-modernas deste diferenciado romance. Entretanto, para deslindá-lo reflexivamente, com convicção teórico-interpretativa, buscando o plano do silêncio fenomenológico à moda dos pensamentos do crítico brasileiro Eduardo Portella, ou do filósofo francês Gaston Bachelard, ou pela poderosa lente genealógica de Michel Foucault, não me furtarei a um cotejamento com a realidade histórico-geográfica do Amazonas, confrontando-a com o sistema mítico-social da ficção rogeliana, em benefício de esclarecimentos interpretativos. Por conseguinte, buscarei, no texto de Rogel Samuel, as informações proveitosas ao meu interativo e reflexivo pensamento analítico-interpretativo.

Pois que esta narrativa ─ paródia de romance histórico que define com boa precisão esta minha tardia confissão ─ vai-lhe revelar a vida tão surpreendente de Ribamar de Sousa, aquele adolescente que eu era, aparecido num inesperado dia de inverno da Amazônia dentro da chuva compacta de um ostinato extremamente percussivo em comandos de improvisação de uma partitura imaginária, ecológica, de acordes politonais sobre o que sentado estava num banco de madeira no alpendre do tapiri ao som do suporte de compassos 5/4 do Igarapé do Inferno, que sai no Rio Tarauacá, que sai no Rio Juruá, afluente do Rio Amazonas, o Solimões, aonde estamos retornando. 

O Manixi da narrativa rogeliana poderá ser visto pelo mesmo prisma que revelou aos leitores universais o Sertão ficcional de Guimarães Rosa. Assim como o Sertão roseano, oriundo do sertão de Minas Gerais, que “está em todo lugar”, como diz Riobaldo (o personagem-narrador de Guimarães Rosa), do mesmo modo percebo o Manixi ficcional de Rogel Samuel. Assim como o Sertão de Guimarães Rosa foi visto, por mim, em meu livro (que ainda não foi publicado), Do Pensamento Contínuo à Transcendência Vital (do cogito(1) ao cogito(3)), como um reflexo da casa primordial, repensada a partir da ciência filosófica de Gaston Bachelard, da mesma forma o espaço ficcional do Manixi rogeliano será aqui interpretado. A narrativa revelou-me, e revelará aos futuros leitores, as íntimas lembranças (memória) e recordações (matéria poética) do escritor amazonense Rogel Samuel, sobre a sua “casa primordial” inesquecível. Os sentidos vitais (auditivos, visuais, nasais, táticos, gustativos), provindos da infância e adolescência, vividos ali, na terra natal, permaneceram/permanecem intensos e persistentes nas lembranças poetizadas do escritor, mesmo que ele esteja hoje distanciado geograficamente de seu lugar de nascimento, e são percebidos liricamente (matéria lírica interferindo no relato ficcional) ao longo da narrativa. Quem se lembra (recorda ficcionalmente) do Igarapé do Inferno (por que “do Inferno”?) e de toda aquela paisagem dantesca, é o escritor. O personagem-narrador Ribamar de Sousa apenas se coloca como o porta-voz de suas reminiscências (ou o duplo, ou a máscara ficcional do criador amazonense atavicamente preso às lembranças e recordações do passado, fossem elas boas ou más).

Lembro-me de que, naquele Igarapé do Inferno, mas logo mais abaixo na última linha que riscava o horizonte daquela tarde ─ (...) ─ como num recorte de uma cena de um escrupuloso sonho histórico, soberanamente saltou sobre meus olhos o vulto belo e art-nouveau do Palácio Manixi ─ (...) ─ , sede do Seringal e residência de Pierre Bataillon, pois nós retornávamos em busca daquele passado interdito, pois nós chegávamos no fim daquela era, quando o Palácio transparecia com deslumbramento nos seus múltiplos reflexos das quinquilharias de cristal, janelas e bandeiras das portas transformadas em lúcidas placas de ouro reluzente e vívido e muito louco. 

“Pois nós retornávamos em busca daquele passado interdito, pois nós chegávamos no fim daquela era, quando o Palácio transparecia com deslumbramento nos seus múltiplos reflexos das quinquilharias de cristal, janelas e bandeiras das portas transformadas em lúcidas placas de ouro reluzente e vívido e muito louco”, afirma(m) o(s) narrador(es) rogeliano(s). O primeiro narrador, Ribamar de Sousa (reduplicado por uma pluralização pessoal) chega ao Palácio Manixi quando este já começava a apresentar-se em seu processo de decadência. Para revelá-lo reflexivamente aos leitores de Rogel Samuel, buscarei reforço analítico-interpretativo na Poética da Casa de Gaston Bachelard e em outras interferências filosóficas (citações), valiosas, retiradas dos diversos livros de sua fase noturna. O Palácio, a Floresta, a Cidade de Manaus, todos os planos desta obra diferenciada de Rogel Samuel se distinguem a partir de um único princípio, ou seja, refletem a “casa inesquecível” de que nos fala Bachelard, com seus recantos secretos aninhados no mais profundo dos pensamentos. Por isto, o “Igarapé do Inferno” (por que Igarapé do Inferno?) se revela a sinalizar íntimas lembranças infernais, lembranças que obrigam o primeiro narrador a revelá-las. Quem está buscando o “passado interdito” é o escritor Rogel Samuel, porque foi ele, enquanto singularidade ativa de seu núcleo social primitivo, que chegou ali, pelo nascimento, já no final de uma era de glórias capitalistas, já no início da decadência do esplendor da borracha.
O Palácio Manixi como reflexo das ruínas da casa natal inesquecível. O Palácio como reverberação das perdas existenciais de um homem que poderia ter nascido, crescido e permanecido na opulência, por ser herdeiro de nomes notáveis (perdidos, por interferência de durações mal administradas), mas que se viu na contingência de sair pelo mundo (assim como o Ribamar de sua história), “a criar [suas] próprias pélas” . O escritor, oriundo de famílias destacadas daquele passado de glórias, poderia ter sido, naquelas paragens de nascimento, um Zequinha Bataillon bem edificado. A crise da borracha decidiu o contrário. Seu avô Maurice Samuel, rico judeu-francês, figura de destaque na cidade de Manaus do princípio do século XX, perdeu toda a sua fortuna, quando da recessão econômica da borracha, ficando na bancarrota. Foi, talvez, a partir da imagem do avô Maurice (possivelmente, sempre destacada com reverência e respeito pelos familiares), metaforicamente assimilada (somatório) às antigas figuras dos chefes políticos manauaras, que houve surgir a representação/ recriação do poderoso personagem Pierre Bataillon.
Recuperando as informações bachelardianas, contidas no capítulo “A dialética do energismo imaginário” , do livro A Terra e os Devaneios da Vontade, e se as comparo com as informações contidas no texto ficcional de Rogel Samuel, a delineação de grande efeito, poderosa, do personagem Pierre Bataillon, se tornará mais transparente.

A vontade de poder inspirada pela dominação social não é nosso problema. Quem quiser estudar a vontade de poder é fatalmente obrigado a examinar primeiro os signos da majestade. Ao fazer isso, o filósofo da vontade de poder entrega-se ao hipnotismo das aparências; é seduzido pela paranóia das utopias sociais. A vontade de trabalho que queremos estudar (...) nos desembaraça imediatamente dos ouropéis da majestade, ultrapassa necessariamente o campo dos signos e das aparências, o campo das formas.

A vontade de trabalho não pode ser delegada, não pode usufruir o trabalho dos outros. Prefere fazer a mandar fazer. Então o trabalho cria as imagens de suas forças, anima o trabalhador por meio das imagens materiais. O trabalho põe o trabalhador no centro do universo e não mais no centro de uma sociedade. E se o trabalhador precisa, para ser vigoroso, das imagens excessivas, é da paranóia do demiurgo que vai tirá-las. O demiurgo do vulcanismo e o demiurgo do netunismo ─ a terra flamejante ou a terra molhada ─ oferecem seus excessos contrários à imaginação que trabalha o duro e àquela que trabalha o mole. O ferreiro e o oleiro comandam dois mundos diferentes. Pela própria matéria de seu trabalho, na proeza de suas forças, eles têm visões de universo, as visões contemporâneas de uma Criação. O trabalho é ─ no próprio fundo das substâncias ─ uma Gênese. Recria imaginativamente, mediante as imagens materiais que o animam, a própria matéria que se opõe a seus esforços. 

Bachelard diz: “A vontade de poder inspirada pela dominação social não é nosso problema”, quer dizer, não é problema do filósofo (não é problema dele, do Gaston Bachelard). E continua: “Quem quiser estudar a vontade de poder é fatalmente obrigado a examinar primeiro os signos da majestade”, e isto é um problema do ficcionista-criador, e neste caso específico, do ficcionista manauara Rogel Samuel. Quem terá de se deixar seduzir momentaneamente pelo instante metafísico pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração, pelo “hipnotismo das aparências”, dos simulacros cotidianos que imperam em seu momento histórico, e quem terá de se embaraçar nos “ouropéis da majestade” de um personagem ímpar, poderoso, é o “demiurgo do vulcanismo”, conectado indissoluvelmente e indistintamente ao “demiurgo do netunismo” ─ o demiurgo da terra flamejante acoplado ao demiurgo da terra molhada ─ [oferecendo] “seus excessos contrários à imaginação que trabalha o duro e àquela que trabalha o mole”. “A vontade de trabalho não pode ser delegada, não pode usufruir o trabalho dos outros”, explica Bachelard. Então, a “vontade de trabalho” ficcional de Rogel Samuel, extremamente diferenciada, ao revelar a grandeza e declínio da Era da Borracha, no Amazonas, não poderá ser avaliada como subproduto de suas inúmeras leituras (históricas ou não) sobre o assunto. Sua “vontade de trabalho”, ao intuir a sua ficção singular, ultrapassou os limites do explicitamente oferecido. Sua “vontade de trabalho” criou “as imagens de suas forças” narrativas, forças que o animaram “por meio das imagens materiais”, ficcionistas, de um Manixi esplendoroso e de um Pierre Bataillon repleto de um supremo poder (o poder capitalista selvagem que grassou no Amazonas, a partir do século XIX até meados do século passado ─ século XX ─, e que se enfraqueceu, posteriormente, retirando do lugar o esplendor de outrora).
“O trabalho põe o trabalhador no centro do universo e não mais no centro de uma sociedade. E se o trabalhador precisa, para ser vigoroso, das imagens excessivas, é da paranóia do demiurgo que vai tirá-las”. Paranóia do demiurgo: o “trabalhador” ficcional Rogel Samuel necessitou do seu primeiro narrador Ribamar de Sousa (o demiurgo à moda dos ficcionistas do período de transição do pós-moderno/modernismo de Terceira Geração para o pós-moderno/pós-modernismo de Primeira Geração) para  recuperar a paranóia (delírio de grandeza) de uma pequena sociedade provinciana (sua sociedade de origem), sociedade que já perdeu há muito a ostentação do passado, mas que insiste ainda em cultuá-la, apesar da pobreza e do abandono, dos desníveis sociais visíveis nas populações ribeirinhas.
Por este aspecto, o Manixi rogeliano é uma “Gênese”, como afirma Gaston Bachelard (ou se quiserem, é a “Fênix” ressurgindo das cinzas), porque “a vontade de trabalho” do escritor (acrescido de seu ilimitado imaginário-em-aberto, já interagindo com cogito(3) da consciência revigorada) assim determinou. As “visões diferentes” do “ferreiro” e do “oleiro” (as “visões” diferenciadas, submetidas às matérias diferenciadas, tais como terra, água, fogo e ar) sedimentaram um novo universo ficcional em expansão: o Manixi rogeliano. (Assim como o diferente “Sertão” de Guimarães Rosa,  a mítica “Macondo” de Gabriel Garcia Marques, e a fantástica cidade de “Santa Maria” de Juan Carlos Onetti, escritor uruguaio).
Ainda, retomando a proposta inicial deste meu capítulo sobre o poderoso Pierre Bataillon e o seu Império monumental ─ o Manixi rogeliano ─, sem abandonar as diretivas portellianas e bachelardianas que me estimulam por ora a interagir reflexivamente com o romance de Rogel Samuel, para refletir sobre o poder capitalista primitivo (dimensão sócio-substancial, sintagmática, linear) de Pierre Bataillon em seu dilatadíssimo e ficcional Império Manixi (dimensão mítico-ficcional paradigmática), imponho-me um repensar à moda foucaultiana, entrelaçando-o com os conceitos fenomenológicos dos dois pensadores (o brasileiro e o francês) já assinalados.
No início, registrando a proveitosa intervenção de Eduardo Portella, nos anos setenta do século XX, em prol da “teoria de inclusão do silêncio” , para o entendimento das camadas ocultas do texto literário, comentava ali a minha adesão (provinda de ordens teórico-críticas temporais) a uma interação analítico-interpretativa, para desvendar os subterrâneos criativo-ficcionais do romance O Amante das Amazonas. Continuo com o mesmo propósito, uma vez que na Microfísica do Poder, de Michel Foucault, há induções parecidas com as de Eduardo Portella. Em “Verdade e Poder” , há um diálogo entre Michel Foucault e Alexandre Fontana (seu entrevistador, na ocasião), no qual o pensador francês esclarece as diversas mudanças teóricas que impregnaram seus pensamentos, ao longo de sua produção filosófica técnico-intelectual. Uma vez que Foucault as vivenciou, também, em plena crise dos paradigmas teórico-críticos sobre o texto literário, paradigmas esses realçados, posteriormente, por Eduardo Portella em meados do século XX, estas mesmas idéias foucaultianas ainda são e serão, por um razoável período da dimensão temporal do desenvolvimento teórico-crítico deste início de século XXI, importantes para o meu próprio impasse interpretativo. Tal impasse, interdisciplinar, continua a atuar aqui nestas plagas tupiniquins, uma vez que ainda não se conhecem teorias autenticamente brasileiras que dêem conta das análises e interpretações pertinentes aos textos dos escritores-criadores, notáveis recriadores de nossa própria realidade. Ainda estamos presos às teorias estrangeiras, em nossos cursos de Ciência da Literatura, graças à nossa incapacidade de formularmos teorias literárias e críticas significativas que possam interagir produtivamente e conscientemente com os textos de nossos escritores. O “servilismo” intelectual, aqui, em nosso reduto intelectivo, ainda é uma realidade. Ainda batemos palmas para as idéias teórico-críticas estrangeiras (não que não sejam boas); aplicamo-las (as contribuições teórico-críticas estrangeiras) aos textos de nossos artistas literários, esquecidos de que um país como o Brasil, com um cabedal de escritores superfavorecidos criativamente, desde o advento da história de sua própria literatura, deveriam existir também idéias teórico-críticas condizentes com os textos aqui produzidos. Enquanto não, como assim exige o meu presente momento de intelectualidade globalizada, a contribuição filosófica, daqui e de lá, fará parte de minhas reflexões. Assim, depois deste meu excurso intelectivo, retomo Michel Foucault e seus “regimes” cognitivos-filosóficos “diferentes”, para repensar este segmento criativo do romance O Amante das Amazonas de Rogel Samuel, inserido, entre os outros segmentos também criativos de sua escrita.

Michel Foucault: São estes regimes diferentes que tentei delimitar e descrever em As Palavras e as Coisas, esclarecendo que no momento não tentava explicá-los e que seria preciso tentar fazê-lo num trabalho posterior. Mas o que faltava no meu trabalho era este problema do “regime discursivo”, dos efeitos do poder próprios do jogo enunciativo. Eu confundia demais com a sistematicidade, a forma teórica ou algo como o paradigma. No ponto de confluência da História da Loucura e As Palavras e as Coisas, havia, sob dois aspectos muito diversos,  este problema central do poder que eu havia isolado de uma forma ainda muito deficiente.

Alexandre Fontana: Deve-se então recolocar o conceito de descontinuidade no seu devido lugar. Talvez haja um outro conceito mais importante, mais central no seu pensamento: o conceito de acontecimento. Ora, a respeito do acontecimento, uma geração ficou durante muito tempo num impasse, pois, depois dos trabalhos dos etnólogos e mesmo dos grandes etnólogos, estabeleceu-se uma dicotomia entre as estruturas (aquilo que é pensável) e o acontecimento, que seria o lugar do irracional, do impensável, daquilo que não entra e não pode entrar na mecânica e no jogo da análise, pelo menos na forma que tomaram no interior do estruturalismo.

Michel Foucault: Admite-se que o estruturalismo tenha sido o esforço mais sistemático para eliminar, não apenas da etnologia, mas de uma série de outras ciências e até da história, o conceito de acontecimento. Eu não vejo quem possa ser mais anti-estruturalista do que eu. Mas o importante é não se fazer com relação ao acontecimento o que se fez com relação à estrutura. Não se trata de colocar tudo num certo plano, que seria o do acontecimento, mas de considerar que existe todo um escalonamento de tipos e acontecimentos diferentes que não têm o mesmo alcance, a mesma amplitude cronológica, nem a mesma capacidade de produzir efeitos.

O problema é ao mesmo tempo distinguir os acontecimentos, diferenciar as redes e os níveis a que pertencem e reconstituir os fios que os ligam e que fazem com que se engendrem, uns a partir dos outros. Daí a recusa das análises que se referem ao campo simbólico ou ao campo das estruturas significantes, e o recurso às análises que se fazem em termos de genealogia das relações de força, de desenvolvimentos estratégicos e de táticas. Creio que aquilo que se deve ter como referência não é o grande modelo da língua e dos signos, mas sim da guerra e da batalha. A historicidade que nos domina e nos determina é belicosa e não lingüística. Relação de poder, não relação de sentido. A história não tem “sentido”, o que não quer dizer que seja absurda ou incoerente. Ao contrário, é inteligível e deve poder ser analisada em seus menores detalhes, mas segundo a inteligibilidade das lutas, das estratégias, das táticas. Nem a dialética (como lógica de contradição), nem a semiótica (como estrutura de comunicação) poderiam dar conta do que é inteligibilidade intrínseca dos confrontos. A “dialética” é uma maneira de evitar a realidade aleatória e aberta desta inteligibilidade reduzindo-a ao esqueleto hegeliano; e a “semiologia” é uma maneira de evitar seu caráter violento, sangrento e mortal, reduzindo-a à forma apaziguada e platônica da linguagem e do diálogo. 

No segmento narrativo-ficcional do capítulo CINCO: FERREIRA,  (não confundir com narrativa épica), a chamada narrativa de acontecimento (marca das narrativas do século XX), diferente das narrativas de personagem do romantismo e das narrativas de espaço do realismo-naturalismo, se faz visível. Para penetrar no Palácio de Pierre Bataillon, o narrador-personagem Ribamar de Sousa utiliza-se da técnica ficcional do acontecimento fantástico, uma vez que não há nada que explique como Ribamar se salvou, depois do incêndio da Floresta, onde pereceram seus “parentes”, o tio e o irmão. Pelo ponto de vista dos estudos semiológicos do texto ficcional (de segunda geração), tal impasse narrativo é denominado como narrativa de acontecimento, modalidade fantástica, justamente porque não há as tais explicações lineares, e o personagem se recupera no plano das probabilidades existenciais sem se lembrar dos detalhes do acontecimento insólito. Entretanto, ainda de acordo com a semiologia de segunda geração (Greimás, Roland Barthes, Anazildo Vasconcelos), o personagem se restaura de uma forma diferente da anterior, ou seja, o Ribamar não mostrará mais a face do retirante nordestino, assumindo, por outro lado, as feições do político manauara. Recuperando aqui as diretivas foucaultianas: se antes faltou ao estudioso francês o “regime discursivo”, dos efeitos do poder próprios do jogo enunciativo, para teorizar sobre as palavras e as coisas, em seu livro do mesmo nome, preso que estava, à época, às normas do poder estruturalista, atualmente, já há como desenvolver um pensamento interpretativo, mesmo que este se volatilize a partir do próprio estruturalismo. Para repensar este capítulo do romance de Rogel Samuel, não há como sistematizá-lo em um só paradigma teórico. A própria escrita telegráfica do primeiro parágrafo assim o impõe. São períodos curtos, são flashes instantâneos, como bem explica o narrador Ribamar de Sousa: “Flashes fracos, aparecem e desaparecem. A imagem de meu irmão morto se projeta e se apaga em minha mente. Mas não dói. É imagem vaga, frouxa” . Nestes aparentes flashes fracos (flashes fortes), o narrador-personagem sintetiza uma cena cinematográfica que poderia preencher páginas e páginas de escrita paraliterária. No entanto, com poucas e criativas palavras, o alter ego ficcional do narrador pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração conduz os leitores a uma cena ímpar: o aparecimento de Ribamar, depois da interseção ígnea, no cais fluvial de Pierre Bataillon, trazido pelas águas, como Moisés do Egito.
Sobre a questão do poder das diretrizes analíticas, daquele momento, questão mobilizada aguerridamente por Michel Foucault, Alexandre Fontana interroga:

Alexandre Fontana: Creio que se pode dizer tranqüilamente que você foi o primeiro a colocar ao discurso a questão do poder; colocá-la no momento em que reinava um tipo de análise que passava pelo conceito de texto, pelo texto com a metodologia que o acompanha, isto é, a semiologia, o estruturalismo, etc. 

Eis a resposta de Michel Foucault:

Michel Foucault: Não acho que fui o primeiro a colocar esta questão. Pelo contrário, me espanta a dificuldade que tive para formulá-la. Quando agora penso nisto, pergunto-me de que podia ter falado, na História da loucura ou no Nascimento da Clínica, senão do poder. Ora, tenho perfeita consciência de não ter praticamente usado a palavra e de não ter  tido este campo de análise à minha disposição.  Posso dizer que certamente houve uma incapacidade que estava sem dúvida ligada à situação política em que nos achávamos. Não vejo quem ─ na direita ou na esquerda ─ poderia ter colocado este problema do poder. Pela direita, estava somente colocado em termos de constituição, de soberania, etc., portanto em termos jurídicos; e, pelo marxismo, em termos de aparelho do Estado. Ninguém se preocupava com a forma como ele se exercia concretamente e em detalhe, com sua especificidade, sua técnicas e suas táticas. Contentava-se em denunciá-lo no “outro”, no adversário, de uma maneira ao mesmo tempo polêmica e global.: o poder no socialismo soviético era chamado por seus adversários de totalitarismo; no capitalismo ocidental, era denunciado pelos marxistas como dominação de classe; mas a mecânica do poder nunca era analisada. Só se pode começar a fazer este trabalho depois de 1968, isto é, a partir das lutas cotidianas e realizadas na base com aqueles que tinham que se debater nas malhas mais finas da rede do poder. Foi aí que apareceu a concretude do poder e ao mesmo tempo a fecundidade possível destas análises do poder, que tinham como objetivo dar conta destas coisas que até então tinham ficado à margem do campo da análise política. Para dizer as coisas mais simplesmente: o internamento psiquiátrico, a normalização mental dos indivíduos, as instituições penais têm, sem dúvida, uma importância muito limitada se se procura somente sua significação econômica. Em contrapartida, no funcionamento geral das engrenagens do poder, eles são sem dúvida essenciais. Enquanto se colocava a questão do poder subordinando-o à instância econômica e ao sistema de interesse que garantia, se dava pouca importância a estes problemas. 

Se Michel Foucault se viu embaraçado, lá pelos anos sessenta do século passado, pelo “regime discursivo” de seu momento histórico-intelectivo, o meu excurso teórico-crítico anterior continua válido. Para falar do “capitalismo selvagem” (horas dilatadas de trabalho escravo) introduzido aqui no Brasil no século XIX, e que permaneceu atuante até depois de meados do século XX, camuflado sob a aparência de um progresso galopante, não condizente com a realidade atrasada de um país de terceiro mundo, necessito do apoio da filosofia bachelardiana firmemente acoplada a foucaultiana. Sem querer igualar-me e já me igualando aos filósofos franceses, aqui realçados, afirmo: falta-me hoje o “regime discursivo” teórico-crítico adequado, regime único e próprio, uma vez que me vejo prisioneira dos “efeitos dos poderes próprios do jogo enunciativo” intelectivo, da pós-modernidade globalizada, prisioneira dos diversos jogos enunciativos teórico-críticos que se digladiam em nosso interno e pretensioso meio intelectual.
Entretanto, colocando a questão do poder do capitalismo selvagem e de seu chefe supremo, em O Amante das Amazonas, percebo a majestade de Pierre Bataillon como oriunda da forma de governo familiar que prevaleceu aqui no Brasil no final do século XVIII e em todo o século XIX. O capitalismo de então ensaiava por aqui seus primeiros passos para a implantação dos grandes latifúndios, os quais se espalharam, à moda de ilhas sociais, em cada cantinho da Nação Brasileira. A supremacia do dinheiro era um privilégio de poucos e, assim, entre esses poucos surgiram os poderosos troncos familiares.

Até o advento da problemática da população, a arte de governar só podia ser pensada a partir do modelo da família, a partir da economia entendida como gestão da família. A partir do momento em que, ao contrário, a população aparece como absolutamente irredutível à família, esta passa para um plano secundário em relação à população, e portanto não mais como modelo, mas como segmento. E segmento privilegiado, na medida em que, quando se quiser obter alguma coisa da população ─ quanto aos comportamentos sexuais, à demografia, ao consumo, etc. ─ é pela família que se deverá passar. De modelo, a família vai tornar-se instrumento, e instrumento privilegiado, para o governo da população e não modelo quimérico para o bom governo. Este deslocamento da família do nível de modelo para o nível de instrumentalização me parece absolutamente fundamental, e é a partir do século XVIII que a família aparece nesta dimensão instrumental em relação à população, como demonstram as campanhas contra a mortalidade, as campanhas relativas ao casamento, as campanhas de vacinação, etc. Portanto, aquilo que permite à população desbloquear a arte de governar é o fato dela eliminar o modelo de família. 

Mas, repensando a questão pelo prisma foucaultiano, “a problemática da população” e “a arte de governar”, naquelas paragens amazonenses próximas às fronteiras da Bolívia e Peru, nos séculos XVIII e XIX, não se originaram do governo familiar de modelo colonial português, ao contrário, o modelo familiar amazonense, principalmente o da capital do Estado, até aos dias de hoje, reflete o modelo familiar francês e uma certa influência alemã, herdada naturalmente, do convívio da população citadina e ribeirinha com os padres alemães e prussianos, das congregações católicas que por ali se aclimataram. Influências marcantes, também, poderão ser diagnosticadas, levando-se em consideração as grandes expedições de estudiosos franceses e germânicos da fauna e flora da região amazonense e adjacências, e do domínio centralizador e familiar de muitos desses estrangeiros que se colocavam como donos (e se colocam ainda) de extensões e extensões da Grande Floresta, desmatando-a implacavelmente, além de subjugar a população nativa e os retirantes nordestinos, que para ali se deslocaram, nas épocas das grandes secas, em busca de melhores meios de vida. O próprio romance de Rogel Samuel oferece-me pistas reveladoras:

Eles [o tio Genaro e o irmão Antônio] freqüentaram o Rio Eiru, numa volta quase em sacado, e dali partiram em chata, barco e igaraté até o Rio Gregório, onde trabalharam para os franceses, (...) 

Lembro-me de que, naquele Igarapé do Inferno, mas logo mais abaixo na última linha que riscava o horizonte daquela tarde (...) como num recorte de uma cena de um escrupuloso sonho histórico, soberanamente saltou sobre meus olhos o vulto belo e art-nouveau do Palácio Manixi (...), sede do Seringal e residência de Pierre Bataillon, (...) 

Sim, porque tudo a fortíssima codificação daquilo tem a ver com a experiência do retorno, da construção, que aquilo era uma edificação (...) de dois andares mais porão de procedimento art-nouveau, cingida de finos gradis de ferro torneado, em convulsionadas e violentas volutas de gavinhas de elegante e efeminado contorno, travestidas, descomedidas, decorando a escadaria de mármore torto e enfático, escura e em pleno gozo das réplicas vilas européias. 

Eu não sou. Sou de outra época. Sou do tempo de um capitalismo primitivo, arcaico, luxuoso, feito tricotado em ouro e pedras preciosas, de um outro modo, daquele tempo em que o Palácio era a imagem em busca de sua natureza profunda. Ali se dispunha de uma sala de música onde se ouvia principalmente Beethoven, de um piano Pleyel, a vitrine onde Pierre Bataillon ostentava sua coleção de violinos (o Guarnerius, o Bergonzi, o Klotz, o Vuillaume), as gravuras representando Viotti, Baillot, David, Kreuzer, Vieuxtemps, Joachim; a máscara mortuária de Beethoven, laureado em bronze, de Stiasny. A Biblioteca, em que alguém uma noite leu em voz alta versos de Lamartine. 

E salas e salas se interrogando para quê, salões e galerias e cômodos se intercomunicando por portas sucessivas que se abriam em galerias e corredores restritos, que se fechavam em si mesmos, ao som do piano de Pierre Bataillon dialogando com o violino de Frei Lothar uma sonata Mozart, como alguém que se concentra em si mesmo, de um poder mortal, ágil e terrível que se expressava nas paredes de estuque pintado, por irisações de um ouro esverdeado e escuro, na entrançadura de seus ritmos de galhadas e folhagens, de uma vegetação alucinada e japonesa que subia por aquelas formas pelo teto multirefletido nos bisotados espelhos de cristal, e nas flores dos lustres de modo a evocar a lembrança de exótico prazer. Sim, sou um velho de um outro século, e ali vivi, observando, aprendendo e comendo durante o longo daqueles anos todos, no círculo e em torno daquela povoação de objetos e móveis antigos, que descreviam monstros consumidores: como na cômoda veneziana a visão da atividade sexualizada da imagem; no armário de Boulle cenas de caça com javalis do consumo e cães mastigando sangrentas aves abatidas a tiros pelo Duque de Chartres e outros cavaleiros fidalgos na idiotia de vistosas calças vermelhas e botas pretas; no silêncio rigoroso do gabinete inglês, na dinâmica, na morfologia prostituta do divã de Delanois; na unidade e variante elíptica do canapé ─ e nos cipós, íris, cardos, insetos estilizados, poliformes, incorporando-se aos móveis e às linhas dos painéis franceses num delírio neo-rococó como não quis a natureza: estátuas sobre lambrequins, rocalhas e rosáceas ecléticas, urnas nas cimalhas dos balcões simbolizando a energia, a ontologia e o desejo do capitalismo de tudo consumir, de tudo gastar, de tudo produzir, de tudo poupar e de tudo faltar e apropriar-se, tranbordando e abortando na loucura, na miséria e na morte 

(...) o pequenino Pierre Bataillon comeu e consumiu e fez em detritos toda a sua imensa fortuna na degustação de suas mobílias suntuosas e amontoadas e sem uso, no processo de esquizofrenia desejante e reprodutora, no fluxo de sucção de sua fina boca desumanizada, para por fim ao exagerado dos seus lucros surpreendentes, no autofágico prazer do mínimo consumo diário de seu capital miraculoso, sangrento e luxuriante, ao transplantar ali a qualquer custo todo o espírito do humanismo europeu que se deslocava em navios fretados, trazidos, no embaraço dos seus belos e artísticos objetos inúteis, de uma arte vã, fútil e suicida porque improdutiva, insaciável e escrota. 

No decorrer do século XX, o capitalismo primitivo, originário da Revolução Industrial do século XVIII, conhecido por “capitalismo selvagem” (dezesseis horas de trabalho por dia, ou mais), foi se modificando gradativamente, e, já nos anos finais do referido século passado, conheceu uma nova forma de ser entendido em termos mundiais. Antes, no Brasil especialmente, era a escravidão explícita ou camuflada do trabalhador assalariado: horas de trabalho além do normal e dívida permanente para com o empregador, uma vez que o “patrão” era também o dono dos postos de venda de mercadorias necessárias à sobrevivência de seus empregados (carne-seca, farinha de mandioca, açúcar, sal, etc.). Eis o que diz Rogel Samuel, sobre a fortuna de seu personagem, Pierre Bataillon:

Aquela fortuna tinha uma fonte, que era o trabalho escravo da inteira nação Caxinauá, que produzia a alimentação que Pierre trocava pela produção de seringueiros que raramente recebiam dinheiro. 

Posteriormente, o “capitalismo primitivo” passou a ser reconhecido mundialmente como o capitalismo da “selvagem” rivalidade entre poderosas multinacionais, provenientes dos vários mercados internacionais e, principalmente, dos chamados “países progressistas”. No Brasil, esta praga capitalista alastrou-se, ao longo da segunda metade do século XX (incluindo também os vinte anos de Ditadura Militar, de 1964 a 1984) com a conivência dos governantes afiliados aos chamados Partidos de Direita, submissos às decisões das políticas estrangeiras do Primeiro Mundo. Entretanto, neste início de século XXI, as diretivas políticas brasileiras tendem para uma saudável forma mediadora entre o capitalismo e o socialismo, ou seja, uma orientação governamental firmada em conceitos socialistas, mas que não abomina as boas coisas públicas herdadas do capitalismo já em vias de decadência. A grande verdade é que, neste início de século e de milênio, os grandes troncos políticos familiares, os quais direcionaram por anos e anos a política brasileira, já estão vivenciando o momento do declínio. Os herdeiros políticos destes antigos “coronéis” invencíveis já não têm a mesma força de seus antecessores. Neste aspecto, repenso as palavras de Michel Foucault: Se a “população desbloquear a arte de governar”, à moda do século XVIII, e “eliminar o modelo de família”,

A população aparecerá como o objetivo final do governo. Pois qual pode ser o objetivo do governo? Não certamente governar, mas melhorar a sorte da população, aumentar sua riqueza, sua duração de vida, sua saúde, etc. E quais são os instrumentos que o governo utilizará para alcançar estes fins, que em certo sentido são imanentes à população? Campanhas, através das quais se age diretamente sobre a população, e técnicas que vão agir indiretamente sobre ela e que permitirão aumentar, sem que as pessoas se dêem conta, a taxa de natalidade ou dirigir para uma determinada região ou para uma determinada atividade os fluxos da população, etc. A população aparece, portanto, mais como fim e instrumento do governo que como força do soberano; a população aparece como sujeito de necessidades, de aspirações, mas também como objeto na mão do governo; como consciente, frente ao governo, daquilo que ela quer e inconsciente em relação àquilo que se quer que ela faça. O interesse individual ─ como consciência de cada indivíduo constituinte da população ─ e o interesse geral ─ como interesse da população quaisquer que sejam os interesses e as aspirações individuais daqueles que a compõem ─ constituem o alvo e o instrumento fundamental do governo da população. Nascimento portanto de uma arte ou, em todo caso, de táticas e técnicas absolutamente novas. 

Penso que, nos anos finais do século XX, no Brasil, os governantes de direita se viram obrigados, historicamente, mesmo atrelados às formas governamentais do capitalismo selvagem, a agirem (talvez inconscientemente ou, quem sabe, propensos à chamada egolatria) submetidos às exigências da população (do povo), ansiosa por desbloquear a arte de governar capitalista primitiva, respaldada aqui pelos troncos políticos familiares. As novas exigências do capitalismo selvagem ─ para sobreviver e progredir ─ propiciaram a transformação em nível nacional, pois estavam necessitadas do combustível da troca monetária. Se o poder monetário, um poço mais alargado, pode favorecer o ressurgimento de novos apelidos, os quais originaram/originarão novíssimos troncos familiares, isto prova uma retomada consciente do povo ante seus “interesses individuais” e “gerais”. Ante ao nascimento de uma nova tática e técnica administrativa governamental, as anteriores ondas capitalistas tiveram/terão certamente de se curvar.
E se houver o “nascimento de uma nova arte” de governar ou “de táticas e técnicas absolutamente novas”, afirma Michel Foucault:

A população será o ponto em torno do qual se organizará aquilo que nos textos do século XVI se chamava de paciência do soberano, no sentido em que a população será o objeto que o governo deverá levar em consideração em suas observações, em seu saber, para conseguir governar efetivamente de modo racional e planejado. A constituição de um saber de governo é absolutamente indissociável da constituição de um saber sobre todos os processos referentes à população em sentido lato, daquilo que chamamos precisamente de “economia”. A economia política pode se constituir a partir do momento em que, entre os diversos elementos da riqueza, apareceu um novo objeto, a população. Apreendendo a rede de relações contínuas e múltiplas entre a população, o território, a riqueza, etc., se constituirá uma ciência, que se chamará economia política, e ao mesmo tempo um tipo de intervenção característico do governo: a intervenção no campo da economia e da população. Em suma, a passagem de uma arte de governo para uma ciência política, de um regime dominado pela estrutura da soberania para um regime dominado pelas técnicas de governo, ocorre no século XVIII em torno da população e, por conseguinte, em torno do nascimento da economia política .

Pelo prisma foucaultiano, e neste caso, reconsiderando o poder político no Brasil, na segunda metade do século XIX, repenso o poder inicial, ficcional, do personagem rogeliano Pierre Bataillon sobre a população indígena do Alto Juruá, região que se localiza próxima à fronteira entre o Brasil e o Peru. Recuperando, diacrônica e sincronicamente, o processo histórico daquela já passada parte intransitável da região amazônica, próxima às fronteiras dos países que ficam ao norte da América do Sul, em princípio, o poder governamental da localidade estava (e sublinearmente sempre esteve) em poder das famílias estrangeiras que ali residiam e prosperavam, adeptas que eram dos regimes governamentais familiares. Nas páginas iniciais do romance, o poder capitalista do personagem Pierre Bataillon seguiu as regras de uma economia entendida como gestão de família.

(...) são diferentes as manhãs de domingo, no Seringal: os coletores vêm, por princípio, por necessidade, por nada, por mecanismo de corda para a Sede ─ que é o barracão, saiba bem, não o Palácio, residência isolada da família Bataillon, de onde ninguém se aproxima ─ vêm eles aviar as pélas, trocar a produção por víveres, pois poucos vêem a materialidade do dinheiro, buscar um quarto de cachaça fiada para o beber solitário. Sinistros, pesadamente armados, passam homens do Coronel. (...) Duas prostitutas peruanas chegam, de canoa. O movimento dos homens, dos barcos e das máquinas dão vida ao lugar, que transborda de agitação domingueira, que esta é uma manhã de domingo, apesar de tudo. 

Entretanto (não obstante a comparação histórica), estou a referir-me ao apogeu e declínio do Manixi amazônico ficcional, um lugar isolado ante o “novo” direcionamento do capitalismo mundial, naqueles anos iniciais do século XX. Graças a esse “isolamento” familiar, posteriormente, o poder político de Pierre Bataillon (a face ficcional dos antigos políticos manauaras) sofreu/sofre sérias derrotas, a partir das novas regras financeiras que já se avizinhavam. As multinacionais estrangeiras, construtoras da idéia de galopante progresso para a região, propiciaram a derrota do governante do Manixi, assentado que estava em uma arte de governar dominada pela estrutura da soberania individualista do poder patriarcal familiar.

Estamos a 3.100 km de Manaus. Gabriel Gonçalves da Cunha comprara o rio Jordão e toda a margem esquerda do Igarapé Bom Jardim, até o Igarapé São João e um furo do Igarapé Cruzeiro do Sul. Isolava o Seringal Manixi. A cotação da borracha amazonense sobe na Bolsa de Londres. Aumenta a produção dos pneumáticos. O Amazonas, único produtor de látex do mundo. Manaus rica, copia Paris. Comerciantes enriquecem. Ostenta o Teatro Amazonas os seus espelhos de cristal. Os milionários jogam cartas com anelados dedos pesados de diamantes, arriscando fortunas no Hotel Cassina, no Alcazar, no Éden, no Cassino Julieta. Telhas de Marselha ao luar na Rua dos Remédios, na Rua da Glória. Arquitetura art-nouveau do Palácio de Ernest Scholtz ─ depois Palácio Rio Negro, sede do Governo. (...) Pequena Manaus, grande Paris! Lojas, magazines, charutarias, livrarias, alfaiatarias, ourivesarias, Bissoc. Pâtisserie. (...) a bela Villa Fany, luxuosíssima. O Cais dos Bares, a Biblioteca Provincial (que incendiou fraudulentamente, para destruir os Arquivos Públicos, nos fundos). (...) em 1919 ao Amazonas já tinham chegado 150 mil emigrantes. A borracha naqueles anos foi tão importante quanto o café. O Amazonas exportou 200 mil contos de réis em borracha, contra 300 mil contos do café paulista na mesma época. Em 1908 é fundada a mais antiga universidade do Brasil, em Manaus, com cursos de Direito (o único que sobreviveu), Engenharia, Obstetrícia, Odontologia, Farmácia, Agronomia, Ciências e Letras. Nessa época 12 milhões de francos franceses sumiram, roubados no Governo de Constantino Nery. Encampa-se, fraudulenta e inultilmente, a Manaos Improvements, por 10.500 contos de réis ─ o preço do Teatro Amazonas. 

A história do Amazonas é um acúmulo de loucuras corruptas. Lembremo-nos de que foi o poder político do Barão de Mauá (dominado pelas técnicas de governo à moda do século XVIII, oriundas da Revolução Industrial) que propiciou o progresso daquela região da Floresta Amazônica nos anos iniciais do século XX. O século XVIII foi o momento da passagem do regime dominado pela estrutura da soberania para um regime dominado pelas técnicas de governo, e a “novidade” política européia, daquele século, atingiu a forma de governo dos séculos XIX e XX no Brasil. As populações indígenas e caboclas do Alto Juruá, naqueles anos finais, já republicanos, do século XIX e início do século seguinte, tornaram-se, se me adéquo às palavras de Foucault, o ponto em torno do qual se [organizou] aquilo que nos textos do século XVI se chamava de paciência do soberano, no sentido em que a população [seria] o objeto que o governo [brasileiro] [deveria] levar em consideração em suas observações, em seu saber, para conseguir governar efetivamente de modo racional e planejado, uma vez que, a partir de então, o povo iria começar a exercer (?) a sua soberania por meio de seus representantes legais. (Entretanto, sabemos que o chamado “voto de cabresto” vigorou por aqui, durante vários anos, no decorrer do século XX). Então, a paciência do soberano [do governo republicano brasileiro], à época, valeu-se do conhecimento técnico do Barão de Mauá e de seus engenheiros, capacitados que estavam para levarem adiante as propostas republicanas de um governo racional e planejado. A segunda parte do romance de Rogel Samuel, quando, no capítulo oito, aparecem “ratos” na narrativa, propiciando as indagações do leitor atento (Quem está despojando a grandeza da Floresta Amazônica? Por que o sumiço do filho de Pierre Bataillon?), surge para denunciar, sublinearmente, as frestas negras da ambição desmedida (familiar) que proporcionou o declínio do imperialismo da borracha, a partir de seu representante ficcional, Pierre Bataillon.

Revelo que isso se passou naqueles anos, depois. Quando presenciei o processo de decadência e morte do Manixi. Para tudo descrever do que então vi direi que os ratos, atrevidos, vorazes, famintos, se multiplicavam, agressivos. (...) os ratos não desapareciam e aumentavam, dia a dia, não havia como salvar nada, nem quando conseguiu gatos, os gatos nada puderam fazer, acabaram mortos, os cadáveres dos gatos saqueados e comidos por ratos famintos, ávidos, múltiplos, como se fosse o Juízo Final. 

A “economia política”  do Manixi, constituída a partir do momento em que, entre os diversos elementos da riqueza, apareceu um novo objeto, a população mestiça, oriunda do acasalamento entre brancos, negros e índios, ao longo do século XX, conheceu o impasse da gritante desigualdade social (ratos/população versus gatos/famílias poderosas). A “arte de governo” do imperador Pierre Bataillon, tradicional, não suportou as inovações políticas da pós-modernidade em andamento. O que ocorreu por ali, será relatado na terceira parte (ficcional e pós-moderna) do romance de Rogel Samuel, a partir do momento em que o segundo narrador, trasladando o espaço narrativo para Manaus, passa a falar do fim do apogeu capitalista no Amazonas. Entretanto, antes, buscarei retomar o plano mítico do Manixi.
IX – Os Brancos Europeus, os Mestiços, os Caxinauás e os Numas: O Sócio-Substancial Capitalista em confronto com o Mítico-Substancial Ficcional

Quando, em 1876, Pierre Bataillon chegou naquelas partes, primeiramente encontrou uma pequena aldeia Caxinauá no temor dos Numas quase sujeita, na exterioridade e mobilidade do poder Númico. Poder-se-ia dizer que os Numas os toleravam, temporariamente, e a qualquer momento, resolvessem vir, para os supliciar e exterminar. A aldeia Caxinauá se esprimia entre os Numas imprevisíveis e a parte civilizada e conhecida do Rio Juruá, lá onde só era possível encontrar seringueiros perdidos, gente ficada da expedição de 1852. os Caxinauás tiveram contato com Romão de Oliveira. Os Numas não. Reagiram violentamente desde 1847, quando o sábio Francis de Castelnau por ali passou e os descreveu na Expedition dans lês parties centrales de l’Amerique du Sud, raro exemplar na biblioteca de Pierre Bataillon. Também Travestin, em Le fleuve Juruá, se refere àquelas lutas que tiveram contra os Numas. Em 1854, João da Cunha Correa, no cargo de Diretor dos Índios, subiu o Tarauacá, descobrindo o Gregório e o Mu, sem contato. Pierre Bataillon chegou em 1876. É o que digo. Naqueles anos os Numas não estavam. Passaram-se vários anos sem eles. Pierre estabeleceu o seu domínio com facilidade, sobre as terras dos Caxinauás pacíficos .

Recupero o parágrafo acima do capítulo TRÊS: NUMAS, para referendar, ou seja, assinar, por minha vez, as anteriores premissas de Michel Foucault, sobre as suas teses referentes ao capitalismo primitivo de modelo familiar, da qual se originaram (realçadas no capítulo anterior destas minhas reflexões teórico-interpretativas, sobre este romance em especial) todas as questões de domínio político-familiar do capitalismo selvagem, determinador de regras trabalhistas desumanas, referentes ao Manixi da primeira etapa ficcional do romance O Amante das Amazonas de Rogel Samuel. A retomada do parágrafo será necessária, uma vez que, para repensar o conflito entre o sócio-substancial (os brancos, os mestiços e os Caxinauás domesticados) e o mítico-substancial (a singularíssima Nação Numa: nação indígena idealizada ficcionalmente e miticamente por Rogel Samuel), situado no entroncamento reflexivo-imaginativo de uma região fronteiriça ao Peru e Bolívia (Amazonas e Acre), inacessível nos anos finais do século XIX, faz-se necessário uma retrospectiva mítico-reflexiva (para a dimensão mítico-substancial do Manixi) e histórico-reflexiva (para a dimensão sócio-substancial do mesmo Manixi), por novas vias teóricas, evidentemente, mas nem por isto distantes das induções político-filosóficas de Michel Foucault, sobre o capitalismo em estado inicial e de base familiar, anterior ao século XX.
Instigada pela (e intrigada com a) criatividade ficcional de Rogel Samuel (lembremo-nos do trecho: “Os Numas. Reagiram violentamente desde 1847, quando o sábio Francis de Castelnau por ali passou e os descreveu na Expedition dans lês parties centrales de l’Amerique du Sud. (...). Também Travestin, em Le fleuve Juruá, se refere àquelas lutas que tiveram contra os Numas”) e pelo meu limitado conhecimento pessoal e teórico da realidade manauara (uma vez que ali me estabeleci, no decorrer do ano de 1996, como professora-substituta convidada de Teoria Literária, Literatura Brasileira e Literatura Amazonense, na Universidade Federal do Amazonas), procurei repensar fenomenologicamente o título do romance, buscando uma ligação do mesmo com a mítica Nação Numa, brilhantemente realçada nas certamente (e futuramente) imortais páginas rogelianas desta diferenciada narrativa ficcional pós-moderna/pós-modernista de Segunda Geração.
Nestes termos reflexivo-interpretativos, a partir daí, surge uma pergunta: Castelnau descreveu miticamente os Numas Indomáveis (possivelmente, uma das tribos ainda hoje isoladas, desconhecidas) ou descreveu realmente mulheres índias belicosas, comparadas com as lendárias amazonas guerreiras da Grécia Antiga? A verdade é que, ao longo da busca teórico-histórica restrita à época assinalada pelo escritor, não distingui nenhuma informação quanto à possibilidade de existência desta aludida tribo indígena e o encontro da mesma com os aventureiros citados, entre as muitas nações silvícolas da localidade apontada, inclusive, em relação às tribos originárias dos Andes, tribos estas oriundas da dominação espanhola (anos iniciais da Era Moderna) fronteiriça à região amazônica brasileira (Peru e Bolívia). No entanto, sobre o mito de um grupo de índias brasileiras de ânimo aguerrido, também conhecidas como amazonas guerreiras (inseridas no título do romance de Rogel Samuel), existem muitas informações mítico-históricas. Por conseguinte, depois das reflexões teórico-críticas, buscando solucionar o assunto, pude perceber uma ligação dos Numas invisíveis com o título do romance, uma vez que o escritor, por sua formação humanístico-literária, foi certamente um circunspecto estudioso da mitologia indígena de sua região de nascimento, incluso também o conhecimento de outros arcabouços míticos da humanidade. Por este aspecto, percebo o romance O Amante das Amazonas firmemente associado ao escritor-narrador Rogel Samuel, enquanto apreciador (amante intelectual) das heróicas narrativas indígenas, as quais povoaram o seu imaginário infanto-juvenil nos anos em que ali viveu, além de conhecedor inconteste das inúmeras formações mítico-religiosas tanto do Oriente quanto do Ocidente. Assim, pelo meu ponto de vista crítico-interpretativo, as “amazonas” do título seriam os próprios índios Numas (homens e mulheres indistintamente), criativamente desrealizados por seu apreciador ficcional. Entretanto, tal afirmação será reinterpretada, a seguir, quando, por tal causa, buscarei conhecimentos histórico / lendário esclarecedores a respeito do mito das gregas amazonas guerreiras, plantado aqui no Brasil, por exploradores estrangeiros, desde o início da colonização. Por esta via histórico-interpretativa, manifesta-se o provável conceito de que os míticos Numas foram formalizados ficcionalmente por Rogel Samuel a partir de anteriores relatos lendário-familiares, relatos esses intensificados pelas doutrinações totalitárias amazonenses, impositivas, e pelas intermitentes transmissões da literatura oral e escrita, pois, segundo a ficção de Rogel Samuel, “não ficavam visíveis, às claras, de frente, nítidos, senão de viés, difusamente entrevistos, só pressentidos na obliqüidade do olhar”. 
 “Não ficavam visíveis, às claras”. Como posso detectar o sentido oculto dos invisíveis e indomáveis Numas desta narrativa? Que são os Numas rogelianos? Seriam eles, verdadeiramente e geograficamente, por via de acomodamento fonético-vocabular, os inconfundíveis Iauanauas (ou Yamináua ou Jaminaua ou Jamináwa) do Rio Gregório, detectados etnograficamente? Ou seriam o subgrupo isolado também chamados de Iauanauas, da cabeceira do Rio Acre, mas tribo diferente da população do Rio Gregório? Segundo dados governamentais, existe também um grupo indígena, peruano e boliviano, chamado Iauana, não reconhecido pelos governos de lá, mas incluído na relação de índios brasileiros do subconjunto pano setentrional, isolado, dos Rios Jandiatuba e Jataí. No âmbito das suposições teórico-interpretativas, os Numas rogelianos, mítico-ficcionais, poderiam provir dessas tribos isoladas, as quais viviam, e ainda vivem em menor número, em jurisdições estabelecidas na região interregno do Estado do Acre com o Departamento Ucayali, no Peru.
Entretanto, de acordo com a narrativa mítico-ficcional de Rogel Samuel, os Numas “não ficavam visíveis, às claras”. Seriam eles os míticos Numes de passados relatos simbólicos, aquelas aéreas divindades mitológicas que se elevavam no ar por meio de influição divinizadora? Seriam eles os antigos gênios alados, só perceptíveis por meio de espiritualíssima intuição? Ou foram germinados e multiplicados, simbolicamente e criativamente, por Rogel Samuel, a partir da deusa suméria Inanna, protetora da guerra e do prazer sexual, associada ao vento, enquanto divindade mítica? Se por vezes penso nas genealogias dos diversos arcabouços míticos-religiosos da humanidade, percebo sempre uma espécie de confluência, aproximando os relatos.
“Não ficavam visíveis”: repenso a informação reflexivamente, porque esta fase do romance de Rogel Samuel se desenvolverá por intermédio do patrocínio de reminiscências caprichosas de seu imaginário mítico-familiar, todas interligadas aos diversos narrares tradicionais da realidade mítico-indígena-e-social manauara. Tais narrativas poderosas, heroicamente/simbolicamente personificadas por criaturas aladas extraordinárias, foram, são e sempre serão representativas das potências da natureza e das incríveis incomuns qualidades do ser humano. Em outras palavras, os Numas rogelianos ascendem, ficcionalmente e miticamente, por intermédio do poderoso tronco familiar, primitivo e ímpar, do índio amazonense, oriundo das altas e inóspitas regiões andinas. O mencionado tronco, certamente, no meio dos infindáveis inter-relacionamentos sócio-culturais, foi realçado como fundamento sanguíneo intercambiável, digno de ser aceito como altamente proveitoso no âmbito da real miscigenação da sociedade manauara, altiva e historicamente preconceituosa, uma vez que o glorioso mito do ativo exercício do poder estará sempre e indissoluvelmente interligado às grandes alturas, pouco hospitaleiras.
Contudo, são os mítico-ficcionais Numas rogelianos que estão aqui, nas páginas deste meu artigo teórico-interpretativo, como assunto de comentários reflexivos. E se, como diz o narrador-personagem de Rogel Samuel, o Ribamar de Sousa, “a vida é um caminho que de repente se bifurca”, observo a seguir outras informações estimáveis:

Mas a vida é um caminho que de repente se bifurca. E passa que, um dia, naquele dia ─ e eram certamente três horas da tarde, de tarde calma, quente e sobretudo verde entre árvores ─ estando eu sentado no tronco de espera que na Curva do Tucumã havia ─ bem defronte à curva plena do rio: o lugar era de pesca porque o igarapé, naquela altura, projetava-se numa rápida e solta volta quase em sacado, enseada de poço, piscoso e escuro, encobriria um homem alto logo sobre a margem, debaixo do cântico geral daqueles pássaros de bico largo e penas coloridas ─ quando, acintosamente, surpreendentes, de modo escandaloso e palerma, apareceram aquelas duas indiazinhas nuas. 

São duas minúsculas meninas, índias, nuas, no outro lado do rio, entre as árvores. Na outra margem do Igarapé do Inferno estão, vejo-as entre as colunas das árvores, vêm da curva descendente que sai do verde-escuro para o verde-cré até a fímbria da saia de aço da fria lâmina do rio. Como nessa matéria nada é absoluto, começo afirmando que as imagens dos seus lábios são, elas mesmas, somente belas. Pois o que faz a beleza é a beleza de sua aparição, naquele momento de realização, lá, no inesperado, e surpresa. Quê! E elas vieram de lá. Estão na minha frente. São duas meninas. Duas índias Numas, inconfundivelmente Numas. Desafio. Indução. Paixão e banho clássico. Estão lá, em movimento lento. Silenciosíssimas. Que uma é menina. Outra, adolescente. Perfumam o ar em que se movem. Balanço. As pernas longas. Descendo esguias, virgens, na arqueologia da margem, o delicado encanto, e cuidado. (...). O rio geme, corda retesada, tocado. O rio está cheio de óleos negros. Melpone num plinto de coluna de terraço. Naquele movimento de mínimas precipitações, qualquer erro é fulminante. (...) A vista cerrada, não as consigo ver. Nuvem branca primeiro no corpo todo. Nas partes sólidas, estreitas. Elas não me vêem. Não me sabem. (...). O vento me encobre, elas não se alertam de mim. 

“Nessa matéria nada é absoluto” (ou seja, pela via do dicionário português-brasileiro, “não tem limites”, “não sofre restrição de espécie alguma”, “não enuncia um sentido completo”, “não é narrativa autoritária”, “não é um narrar despótico, imperioso, soberano, incondicional, incontestável”, qualquer que seja a definição do termo “absoluto”), diz Rogel Samuel, reafirmando, por via ficcional, o que, reflexiva e teoricamente, procuro assegurar, pela diretriz do conhecimento fenomenológico, como narrativa pós-moderna/pós-modernista de Segunda Geração. “Nada é absoluto”, porque, para criar um texto narrativo, diferenciado das narrativas exemplares, lineares e absolutas, e para interagir com o arcabouço mítico-indígena da realidade sócio-mítica amazonense (que diligencia elevar a figura do índio de sexo masculino, forte, destemido, possuidor de “grosso falo” como símbolo de “dinâmica sexualidade”), o escritor, de origem manauara, obrigou-se criativamente e ficcionalmente a recuperar os traços do conhecimento coletivo e abrangente (formal e impositivo) de seu (do autor) anterior meio social citadino, por questões substanciais ainda relacionados com a história primitiva do homem brasileiro civilizado.
Se nada, ao longo desta fase da narrativa rogeliana, poderá ser interpretado como “absoluto”, começo eu, a intérprete teórico-reflexiva destas páginas não-absolutas, a refletir fenomenologicamente o fato de que a cena do rio, onde nadam as duas indiazinhas Numas, poderá ser interpretada, sublinearmente, partindo-se do princípio lendário de que os Numas eram/são seres mitológicos e aéreos (aparições voláteis), por conseguinte, passíveis de tomarem a forma conceitual que quiserem, mesmo que seja em matéria teórico-crítica não-absoluta. As divindades míticas, desde o princípio de suas modelações conceituais, lá pelos idos da pré-fase do conhecimento humano, apresentaram formas incomuns (humanas, animalescas, imaginárias, etc.), inclusive, formas andróginas (mítico/cristão). Então, ainda apoiando-me na afirmação de Rogel Samuel, penso que o olhar do narrador-personagem Ribamar de Sousa, naquele momento, estava ativado pela aparição mental (volátil) do mito das gregas amazonas guerreiras, belas, sensuais e andróginas, ou seja, possuidoras das características dos dois sexos (não obstante o ritual lésbico da cena ficcional rogeliana). Seria possível então um engano, quanto a incomum sexualidade das duas indiazinhas? São elas, diz Rogel Samuel, “duas índias Numas, inconfundivelmente Numas”. 
Sim. São, inconfundivelmente, Numas e oriundas do mito das amazonas guerreiras, andróginas e sensuais. Por este aspecto, penso que o narrador-personagem Ribamar ter-se-ia enganado quanto ao sexo das duas indiazinhas, “vistas de longe”, assim como os exploradores antigos se enganaram, quando da aparição das/dos anteriores amazonas, as/os quais, segundo, outras fontes histórico-míticas, eram em verdade homens guerreiros ao invés de mulheres guerreiras. O equívoco histórico-mítico se propagou, no decorrer de nossa formação cultural, graças aos longos cabelos desses índios audazes e suas faces imberbes e joviais. Ainda por este prisma interpretativo, empenho-me em resguardar e defender aqui o propósito de observar algumas pistas que favorecem ao meu pensar diferenciado sobre a sexualidade das indiazinhas Numas, imposta sublinearmente pelo narrador rogeliano.
Como, ao longo do romance, “nada é absoluto”, a minha apreciação reflexiva poderá também não possuir um valor absoluto, uma vez que se sedimenta a partir de argumentações e questionamentos que poderão ser reputados depreciativamente por outros estudiosos-críticos de orientação explicitamente formalista. No entanto, desenvolvendo meu parecer crítico-reflexivo a começar das próprias afirmações ficcionais esclarecedoras ou sublineares de Rogel Samuel, submeto-me ao risco de uma desconexa contra-afirmação metodológica.
Assim e por tal motivo, não sendo “nada absoluto” no plano da ficção rogeliana, possivelmente o narrador-personagem Ribamar de Sousa, alter ego do escritor ficcional amazonense Rogel Samuel, houvesse tido a intenção de apresentar a seus leitores uma questão, ainda hoje, repleta de preconceito, no Brasil e no mundo: o homossexualismo masculino, repudiado ostensivamente em nosso meio social. A verdade é que (generalizando, bem entendido!) a reprimida sociedade brasileira não se altera, preconceitualmente, contra o homossexualismo feminino conhecido por lesbianismo, mas, quando o relacionamento amoroso se revela entre dois homens, as íntimas opiniões pré-concebidas ficam patenteadas. Possivelmente, o primeiro narrador rogeliano, ainda submetido ao imperativo modelo sócio-familiar manauara, preferiu dar ênfase, para contemporizar sobre o assunto, ao ato lésbico das indiazinhas Numas, ao invés de expor (ou revelar) o homossexualismo masculino, nas guerreiras hostes da mítica e reverenciada nação Numa. Mesmo assim, reponho as informações, retiradas naturalmente do romance de Rogel Samuel, lembrando aos leitores desta obra ficcional, que o grande escritor Guimarães Rosa, escritor de renomada fama, aqui no Brasil e em outros países, obrigou-se também, a camuflar a questão homossexual entre Riobaldo e Diadorim, em Grande Sertão: Veredas, por nítidas imposições preconceituosas da sociedade dita intelectualizada da época, que, certamente, não teria reconhecido o valor do romance, se tal assunto controvertido fosse detectado visivelmente.
Repenso, por conseqüência do anteriormente refletido, e por induções lendário-esotéricas e/ou analítico-fenomenológicas, aquela reservada conotação ficcional da citação anterior: “Pássaros de bico largo e penas coloridas”. Não é o bico um referente sexual masculino, se for pensado pelo ponto de vista da psicocrítica literária? Não seriam, portanto, as indomáveis (aéreas, invisíveis) amazonas guerreiras a representação poético-ficcional dos índios amazonenses, conceituados, literariamente, como “pássaros de bico largo” (órgão sexual) e “penas coloridas” (vestimentas e adornos)?
Reavaliando, primeiramente, o nome amazonas, descobre-se que este origina-se do grego -(a-mazôn), cujo significado expressa a idéia de mulheres sem seios, míticas mulheres gregas, impávidas, masculinizadas, ignorantes quanto às politizadas leis da antiga Grécia. Reconsiderando, logo a seguir, o mito das audaciosas mulheres guerreiras da América do Sul (as quais, desde o início da colonização do Brasil, em seus três segmentos ─ portuguesa, espanhola e novamente portuguesa ─ foram detectadas, em diversos momentos temporais e em várias localidades da Amazônia brasileira, por viajantes-aventureiros, exploradores da fauna, da flora e dos metais preciosos da região), assinala-se a influência mítico-renascentista, via Portugal e Espanha, em relação à propagação do mito grego das mulheres guerreiras do norte do Brasil (influência agregada naturalmente ao arcabouço lendário das walkírias germânicas, também mulheres masculinizadas e aguerridas) em nossas plagas coloniais tupiniquins. Entretanto, por meio de outras informações, chega-se à reflexão de que as referidas mulheres eram possivelmente homens de longos cabelos e faces imberbes.
O mito das amazonas guerreiras da América do Sul ativou o imaginário europeu, desde o início dos domínios coloniais, a partir do século XVI (domínios europeus estes diversificados: Espanha, Portugal, França, Inglaterra, Alemanha e Holanda), os quais movimentaram as viagens exploratórias desses diversos reinos da Europa Ocidental. Evidentemente, com a chegada da família real portuguesa ao Brasil, no início do século XIX, ansiosa por transformar o sub-reino em local de importância e em um patamar de grandeza, a lenda se tornou pertinente (não apenas esta, como também outras, incluindo a lenda do Eldorado, região desconhecida de infinitas riquezas, região jamais visualizada, pelo menos pelo ponto de vista da narrativa amplificada pelo imaginário coletivo da tradição oral), instigando os aventureiros europeus, de outros reinos vizinhos a Portugal, a saírem em busca da solução de tais mistérios. É quase certo que as expedições exploratórias, como as que revelaram-nos os nomes de Castelnau (1847) e Travestin (1854), não estavam aqui em busca da descoberta das lendárias mulheres, guerreiras, fossem elas homens ou mulheres, ou muito menos, a proposta era estudar a fauna e flora da região. Sob a missão de estudar a cultura material da Colônia, escondia-se o desejo de apropriação das localidades distanciadas do domínio português. Foi o que aconteceu com a região da Amazônia Ocidental, próxima ao Peru e Bolívia. Poucos aventureiros portugueses ali se instalaram, nos anos finais do século XIX e iniciais do século XX. O descuido dos portugueses deveu-se à impossibilidade de locomoção e dificuldade de comunicação com a Casa Real (e, posteriormente, com a Casa Imperial) localizada no Rio de Janeiro. Os estudiosos da fauna e flora e aventureiros europeus, que para ali se dirigiram, os mais audazes, não eram exatamente portugueses. Historicamente, há a informação de que a Casa Imperial se preocupou com a parte isolada da região amazonense, inclusive fundando o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1838. Entretanto, a preocupação portuguesa limitou-se a se fixar na parte oriental do Amazonas, próxima ao Pará, onde as condições de navegação e comunicação com o Império eram mais facilitadas. Nesse ínterim, os mitos amazonenses, como o mito das amazonas guerreiras e do Eldorado, conhecidos desde a descoberta do Brasil, via domínio espanhol, foram se solidificando gradativamente. Enquanto alguns poucos portugueses procuraram se aventurar por ali, no decorrer da história da Colônia, os exploradores de outras partes da Europa foram se aclimatando àquela realidade indócil e, ao mesmo tempo, espalhando notícias sem confirmações sobre intrigantes relatos míticos. O que, na verdade, esses estrangeiros ─ franceses, alemães e de outros reinos europeus ─ pretendiam era descobrir as ricas jazidas de ouro e pedras preciosas, assinaladas pelo mito do Eldorado e, naturalmente, tomá-las para seus governantes reinóis. Esses viajantes-estudiosos estavam aqui em missão nitidamente especulativa.
Não por acaso, a região amazonense, assinalada por Rogel Samuel, ainda hoje, geograficamente, reflete as influências culturais dessas nações européias. Não por acaso, os referentes sexuais do homossexualismo (homens se relacionando sexualmente com homens) estão dissimulados, no decorrer do romance rogeliano, transformados em lesbianismo (fêmea/Numa relacionando-se com fêmea/Numa), porque a sociedade brasileira, originariamente patriarcal, em sentido diacrônico e sincrônico, inclusive a atual, não receberia a idéia de índios homossexuais (masculinos, evidentemente) com bons olhos. Ainda hoje, em nossa sociedade, historicamente miscigenada, há a necessidade de colocar miticamente as tribos indígenas em um patamar viril, valoroso, heroicizado, ainda que poucos grupos isolados tenham sobrevivido ao nosso próprio ímpeto histórico de exterminá-los (ou seja, mesmo com a complacente e alienada adesão do miscigenado branco brasileiro neste consentido extermínio histórico).
Entretanto, há pistas inconfundíveis da troca de papéis homossexuais no romance de Rogel Samuel, assim como há pistas reveladoras da “quase certeza homossexual” de Riobaldo e Diadorim, em Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. A diferença é que a “quase certeza” teórico-crítica do amor homossexual entre Riobaldo e Reinaldo/Diadorim, transmutado, no final, em Maria Deodorina da Fé Bitencourt Marins (personagem modificado), por exigências sócio-culturais (meados do século XX) substancialmente intransponíveis e exemplares, ao longo da ficção roseana, repito, “a quase certeza” ficou interditada. Aqui, não. Nesta narrativa distinta, diferenciada, de Rogel Samuel, “nada é/[será] absoluto”.

Agora ─ e que sorriso se desenha nos seus olhos ... ─ está tocando a maior a ponta do rio, na delicadeza do pé. Experimenta a água, e goza. Eletrizada. Arranca do corpo a substância, e a transmite à vida da superfície. O rio geme, corda retesada, tocado. O rio está cheio de óleos negros. Melpone num plinto de coluna de terraço. (...). Ato terminal. Calor, prazer. O morno rio ressurge, como látex do sangue aquecido. (...). Excreção brusca, violenta, do humor que escorre. Espuma de sangue. 

Pois se nada no romance rogeliano poderá constar-se como “absoluto”, quem “arranca do corpo a substância e a transmite à vida da superfície” (do rio) não é absolutamente uma fêmea Numa, é um macho Numa. Se fosse uma fêmea, não arrancaria a substância sexual do próprio corpo, projetando-a em uma superfície. A substância sexual, advinda do orgasmo feminino, produz-se em espécie de interna umidade viscosa, e assim permanece. Percebo esta cena não-absoluta como uma questão a ser exaustivamente repensada. O verdadeiro narrador rogeliano (o dono do ato de narrar) colocou o narrador-personagem Ribamar de Sousa em uma encruzilhada entrópica pós-moderna/pós-modernista. E graças a esta entropia narrativa, e aos enclaves do texto ficcional (espaços em branco, os quais não deverão ser desconsiderados futuramente, em outras edições do romance), os leitores poderão repensar o grave estigma do preconceito, em nosso atual momento histórico, seja ele de que natureza for.
Entretanto, continuo submetendo-me aos riscos teórico-reflexivos. Reflito a cena: “Ato terminal. Calor, prazer. O morno rio ressurge, como látex do sangue aquecido. (...) excreção brusca, violenta, do humor que escorre. Espuma de sangue”. Busco os referentes estruturalistas/semiológicos basilares, propiciadores de meu repensar fenomenológico: “Excreção brusca”: função fisiológica que expulsa (no caso, bruscamente) para o exterior alguma matéria excrementícia, como, por exemplo, o sêmen. “Humor”: qualquer líquido que atue no corpo dos vertebrados, como, por exemplo, o sêmen. Estes, por acaso, não seriam índices de uma sexualidade masculina? O líquido viscoso sexual feminino é interiorizado e não se revela em “excreções bruscas”.

A vista cerrada, não as consigo ver. Nuvem branca primeiro no corpo todo. Nas partes sólidas, estreitas. Elas não me vêem. Não me sabem. Só desaparecem. Uma na outra. Se acariciam. Se tocam. Se introduzem no ar. O vento me encobre, elas não se alertam de mim.

Não sentem meu cheiro. Mas as vejo. Pois fui o primeiro a ver uma fêmea Numa. 

Como já disse o sermonista barroco português-brasileiro Padre Antônio Vieira, as palavras têm mistérios. “Partes sólidas, estreitas”. As indiazinhas Numas rogelianas não possuem as partes exuberantes das vitalizadas e jovens mulheres índias. As índias joviais (pelo menos as que interagem atualmente com miscigenada sociedade manauara, como trabalhadoras domésticas ou não) possuem formas arredondadas, sensuais, femininas. As indiazinhas Numas rogelianas, assim como as lendárias amazonas guerreiras da antiguidade greco-romana, são masculinizadas. As indiazinhas do texto ficcional de Rogel Samuel “desaparecem uma na outra”. Penso que, se o ato fosse realmente lésbico (homossexualismo feminino), as indiazinhas Numas não desapareceriam uma na outra, pelo menos, por meio dos órgãos sexuais considerados tradicionalmente como normais. Em se tratando de relacionamento sexual entre duas mulheres, não há como uma se introduzir na outra, no ar. De sorte que, por interferência do alargadíssimo imaginário-em-aberto de quem realmente narra, o vento mítico (associado à água mítica, transformadora) encobre o narrador Ribamar de Sousa e faz “o morno rio [sexual-imaginário] [ressurgir], como látex do sangue aquecido”, sacralizando o ato sexual-amoroso (diferenciado) das duas divindades númicas.
“O morno rio ressurge, como látex do sangue aquecido”. “Rio”, “látex” e “sangue”. Recorro a Bachelard:
Sobre o “liquido valorizado”, na obra literária de Edgar Alan Poe, Gordon Pym, diz Gaston Bachelard:

Explica-se, pois, que, para um psiquismo tão acentuado, tudo o que, na natureza, corre pesadamente, dolorosamente, misteriosamente seja como um sangue maldito, como um sangue que transporta a morte. Quando um líquido se valoriza, aparenta-se a um líquido orgânico. Há, portanto, uma poética do sangue. É uma poética do drama e da dor, pois o sangue nunca é feliz. 

Sobre a obra poética de Paul Claudel:

Há, porém, lugar para uma poética do sangue valoroso. Paul Claudel dará vida a essa poética do sangue vivo, tão diferente da poesia de Edgar Poe. Citemos um exemplo em que o sangue é uma água assim valorizada: “Toda água nos é desejável; e por certo, mais que o mar virgem e azul, ela recorre ao que existe em nós entre a carne e a alma, nossa água humana, carregada de virtude e de espírito, o ardente sangue obscuro” [Citação no 9, de Gaston Bachelard, op. cit.:Paul Claudel, Connaissance de l’est, p. 105]. 

Eis o pensamento filosófico de Gaston Bachelard sobre o “sangue”, na obra de Edgar Alan Poe, Gordon Pym:

Com Gordon Pym estamos aparentemente nas antípodas [nos opostos] da vida íntima: as aventuras querem-se geográficas. Mas o contista que começa por uma narração descritiva sente a necessidade de dar uma impressão de estranheza. É preciso, pois, inventar; é preciso apelar para o inconsciente. Por que a água, esse líquido universal, não poderia, também ela, receber uma propriedade singular? A água encontrada [em Poe] será, por conseguinte, um líquido inventado. A invenção, submetida às leis do inconsciente, sugere um líquido orgânico. Poderia ser o leite. Mas o inconsciente de Edgar Poe traz uma marca especial, uma marca fatal: a valorização se fará pelo sangue. 

Pensamento filosófico de Gaston Bachelard sobre o “sangue” [água humana], na obra poética de Paul Claudel:

Aqui, o consciente intervém: a palavra sangue não será escrita nessa página. Se a palavra fosse pronunciada, tudo se coligaria contra ela: o consciente a recalcaria logicamente como um absurdo, experimentalmente como uma impossibilidade, intimamente como uma lembrança maldita. A água extraordinária, a água que surpreende o viajante, será pois o sangue não-nomeado, o sangue inominável. Eis a análise com relação ao autor. 

E com relação ao leitor? Ou ─ o que está longe de ser geral ─ o inconsciente do leitor possui a valorização do sangue: a página é legível e pode até, com boa orientação, emocionar; pode também desagradar ou mesmo repugnar, o que é ainda sinal de valorização. Ou então essa valorização do líquido pelo sangue falta no leitor: a página perde todo o interesse; é incompreensível. Em nossa primeira leitura, na época de nossa alma “positiva”, víamos ali apenas uma arbitrariedade fácil demais. Depois, compreendemos que, se essa página não tinha nenhuma verdade objetiva, tinha pelo menos um sentido subjetivo. Esse sentido subjetivo força a atenção de um psicólogo que se demora reencontrando os sonhos que preludiam as obras. 

Em nossa primeira leitura, na época de nossa alma “positiva”: Aqui está o filósofo Gaston Bachelard aludindo à sua fase anterior, cientificista (conhecida hoje, mundialmente, como “o Bachelard diurno”), e reconhecendo o valor de observar as significações subjetivas contidas nas grandes obras literárias (o Bachelard noturno).
Mas, encontro-me às voltas com a palavra “rio”, colocada comparativamente ao “sangue” e ao “látex”, indistintamente, neste parágrafo rogeliano, sobre o amor homossexual entre as duas indiazinhas Numas. A palavra “rio” associada ao “sangue” e ao “látex” está ali subentendida como um “sangue maldito”, à moda de Poe, ou como “um sangue valoroso”, à semelhança de Paul Claudel? Penso que este “rio” em especial possui as qualidades simbólicas referentes às três dimensões ─ sócio-substancial, mítico-substancial e ficcional ─ desta obra literária pós-moderna/pós-modernista de Segunda Geração, ou seja, a palavra “rio” tanto poderá ser avaliada pelo plano subjetivo quanto pelo plano objetivo ou pelo imaginário-em-aberto do escritor.
Pelo ponto de vista da objetividade, “o morno rio ressurge, como látex do sangue aquecido”, do “sangue vivo”, “valoroso”, ligado à “carne e à alma”, repleto de “virtude e de espírito”, “o ardente sangue obscuro” (historicamente, pouco conhecido) do amazonense (seja ele seringueiro, índio, bugre ou caboclo; masculino ou feminino). O látex das árvores da borracha intimamente associado ao sangue valoroso daqueles trabalhadores/seringueiros que deram a própria vida, estagnada “no mudo e no nulo do anônimo de uma monotonia circular e estéril, de uma mecânica vida mascarada de impessoal catástrofe”, “condenada a morrer de malária no antro da floresta comida de bicho” . “Rio”/Floresta como “antro”, ou seja, lugar escuro e profundo que serve de covil às feras e de refúgio aos ladrões e salteadores. Aqui o “consciente intervém”, por que este rio rogeliano, de sangue e látex, propicia uma “lembrança maldita”, é um “sangue inominável”, não há como nomeá-lo como “desejável”, por ser algo vil e revoltante.
“Mas a vida é um caminho que de repente se bifurca” e este mesmo “rio” poderá ser revisto fenomenologicamente, pelo ângulo da subjetividade “de um psiquismo acentuado”, como foi visto na obra de Edgar Alan Poe, por Gaston Bachelard, correndo “pesadamente, dolorosamente, misteriosamente”, também ele (o mesmo rio), “como um sangue maldito”, como um “sangue que transporta a morte”. E é importante assinalar, de antemão, que todos os rios amazonenses, nesta obra de Rogel Samuel, se revelarão como passagens para diversas mortes, inclusive, como referenciais dolorosos de mortes simbólicas, como, no final, a do narrador à moda antiga, tradicional, exemplar, contador de histórias apreciáveis e memoráveis (o primeiro narrador).
Mas, por enquanto, visto por este prisma interiorizado, este “rio” íntimo, particular, que banha os corpos sexualizados das duas indiazinhas Numas, poderá ser visto como “uma poética do drama e da dor”, à moda bachelardiana. A palavra “sangue”, colocada ali, no romance, sob aparência aleatória, também não é um “sangue feliz”. “É uma poética do drama e da dor” de quem narra. “É preciso, pois, inventar; é preciso apelar para o inconsciente”, urge dar forma ficcional confiável a essa dor que, no momento, está a atingir o narrador de Rogel Samuel. A “água” e a cena do amor homossexual entre as indiazinhas Numas terão de ser “inventadas”, porque os Numas/Numes “não ficavam visíveis, às claras, de frente, nítidos” e só poderiam ser “difusamente entrevistos e só pressentidos na obliqüidade do olhar”.
E é exatamente esta “obliqüidade do olhar” que me permite, como leitora privilegiada desta obra de Rogel Samuel, interagir com as camadas míticas, inseridas neste romance diferenciado. Penso que não está a faltar-me o sinal de valorização da palavra “sangue”, subentendida a partir do relacionamento amoroso das duas indiazinhas. Ali, o que se evidencia e que se valoriza é o mítico “sangue” da primitiva humanidade, um “sangue” originário, ímpar, sexualizado e andrógino, “movendo-se sempre” [nas artérias aquáticas], “movendo-se sempre nas igualmente imaginárias áreas do Rio Pique Yaco, do Rio Toro, e do além mais” , oriundos, todos esses rios rogelianos, do Olimpo imensurável das Montanhas Andinas.
Como divindades do ar, matéria volátil esta que, no momento, está acasalada à água mítica, eterna, os Numas/Numes não têm como se alertarem da presença do narrador e não sentirão o peculiar e autêntico cheiro humano. Enquanto Numas/Numes voláteis permitem a elevação da imagem ficcional para o plano mítico, e vice-versa, recuperando assim conceitualmente a imagem inicial feminina. Por esta espiral interpretativa dos planos superpostos, não importa/não importará a forma de polarização sexual dos Numas/Numes rogelianos. Seja na forma masculina ou feminina, o ato sexual/amoroso dos Numas/Numes torna-se mitificado, desrealizado, por intermédio do olhar de quem narra. Em verdade, os Numas são seres aéreos miticamente indefinidos.
Entretanto, foi o narrador-personagem Ribamar de Sousa, alter ego do escritor amazonense Rogel Samuel, “o primeiro a ver uma fêmea Numa”. É verdade. Os ficcionistas anteriores, os considerados como verdadeiros criadores ficcionais, amazonenses ou não, não ousaram infringir as leis dos pensamentos preconceituosos já instituídos, preservadores da hipocrisia familiar, esta, por sua vez, avessa à libertação de juízos formalizados a respeito de afinidade sexual entre indivíduos do mesmo sexo. E esses pensamentos institucionalizados, repressores, impediram, até ao final do século XX e do milênio, a exposição denotativa do assunto, mesmo que fosse pela forma ficcional.
Rogel Samuel, ficcionalmente, intuitivamente ou não, percebeu os dogmas imperialistas sobre o assunto e os ultrapassou. A sua infração sócio-ficcional se notabiliza ao longo de sua narração sobre os Numas. Por minha parte, para interpretar a cena em que o personagem-narrador Ribamar de Sousa afirma ter sido o primeiro “a ver uma fêmea Numa”, vejo-me na eventualidade de buscar, uma vez mais, auxílio cognitivo em A água e os sonhos, de Gaston Bachelard, lembrando aqui que o filósofo francês, por seu turno, não se esquivou da busca de digressões metafísicas em outros pensadores. No capítulo II do livro anteriormente assinalado (AS ÁGUAS PROFUNDAS ─ AS ÁGUAS DORMENTES ─ AS ÁGUAS MORTAS), há uma citação de Nietzsche, retirada do livro Schopenhauer, página 33: “É preciso adivinhar o pintor para compreender a imagem” . Aproprio-me da citação nietzschiana, via Bachelard, para compreender este parágrafo de Rogel Samuel.

As águas correm desde o sem princípio das partes íntimas da narrativa animal sob as árvores de 70 metros de altura; as águas vêm dos desconhecidos lugares da origem Numa; são águas da sobrevivência, são esquecidas e passam. Frias. Se perdem. Perigo; atroz. A princípio não se podem delimitar com precisão, onde as terras dos Numas, onde as do Seringal Manixi. Depois se vêem. Se sentem. No cheiro. Raras, marcas, macias. A flecha especada no talo da árvore, atravessa a picada, a vermelha. O galho quebrado diz: “Não passarás”. E além da Curva do Tucumã, a passagem do eixo do rio se separa. Pode-se banhar e pescar, deste lado. Mas aos poucos os Numas se infiltravam, avançavam, atravessavam. Passavam além de si mesmos, não respeitando seus próprios limites. Atravessando o rio e a ordem que o rio exercia na floresta. 

É preciso adivinhar o pintor para compreender a imagem, afirmou Nietzsche, e Bachelard referendou-o. E se Marie Bonaparte, endossada também por Gaston Bachelard, “descobriu” “a principal razão psicológica” da “tonalidade profunda do devaneio criador” dos contos de Edgard Alan Poe, porque não poderia agir da mesma forma, esta analista e ao mesmo tempo fenomenóloga tupiniquim, ao dialogar com o texto diferenciado de Rogel Samuel? Assim como Edgard Poe, Rogel Samuel é fiel às lembranças imperecíveis. E por que não repensar também algumas idéias de Michel Foucault, reveladas à França e ao mundo lá pelos idos dos anos de 1970, ainda atuantes por aqui, nestas plagas também tupiniquins, nestes anos iniciais do Terceiro Milênio.

Vivemos um momento em que a função do intelectual específico deve ser reelaborada. Não abandonada, apesar da nostalgia de alguns pelos grandes intelectuais “universais” (dizem: “precisamos de uma filosofia, de uma visão de mundo”). Basta pensar nos resultados importantes obtidos com relação à psiquiatria, que provam que essas lutas locais e específicas não foram um erro, nem levaram a um impasse. Pode-se mesmo dizer que o papel do intelectual específico deve se tornar cada vez mais importante, na medida em que, quer queira quer não, ele é obrigado a assumir responsabilidades políticas enquanto físico atômico, geneticista, informático, farmacologista, etc. Seria perigoso desqualificá-lo em sua relação específica com um saber local, sob pretexto de que se trata de um problema de especialistas que não interessa às massas (...) ou de que ele serve aos interesses do Capital e do Estado (...) ou ainda de que ele veicula uma ideologia cientificista (...). 

Muito antes de Michel Foucault, Bachelard compreendeu que “a função do intelectual específico” deveria “ser reelaborada” e “não abandonada”. Apenas, como referencial comparativo, me vejo na obrigação de colocar, aqui, as afirmativas de Bachelard sobre um assunto, teórico, que esteve a incomodar os intelectuais europeus, ao longo do século XX, e que, infelizmente, continua a pressionar os intelectuais brasileiros, os quais, como se evidencia, estiveram e estão ainda presos nas malhas das antigas teorias estrangeiras. As antigas orientações da teoria literária estão hoje misturadas, graças ao processo globalizante da atualidade, às novas teorias literárias que por aqui aportaram no final do século XX e princípio deste. Resguardados por esse entrançar de teorias literárias díspares, os mestres e professores universitários deste lado de cá do Atlântico, e aqui, nestas minhas paragens, se digladiam, cada qual querendo impor a sua verdade analítico-interpretativa, em se tratando de literatura, seja ela brasileira ou estrangeira. Neste meio intelectual tupiniquim, como leitora-intérprete, da obra O Amante das Amazonas, também me afogo e me debato em diversas teorias, movendo-me “nas igualmente imaginárias áreas do Rio Pique Yaco, do Rio Toro, e do além mais”, ou seja, nestas “águas” admiráveis recriadas pelo poder ficcional de Rogel Samuel.
Assim e por causa disto, relembro os dizeres de Gaston Bachelard sobre o assunto que ora me movimenta, apenas para referendar a anterior citação de autoria de Michel Foucault:

Compreendi o valor dos novos processos de leitura fornecidos pelo conjunto das novas escolas psicológicas. Quando se lê uma obra com esses novos meios de análise, participa-se de sublimações muito variadas que aceitam imagens distantes e que dão impulso à imaginação em múltiplos caminhos. A crítica literária clássica entrava esse impulso divergente. Em suas pretensões a um conhecimento psicológico instintivo, a uma intuição psicológica nativa, que não se aprende, ela remete as obras literárias a uma experiência psicológica obsoleta, a uma experiência repisada, a uma experiência fechada. 

Exatamente. Esta intelectual tupiniquim encarrega-se, aqui, nestas reflexões sobre a obra de Rogel Samuel, de responsabilidades perigosamente político-interpretativas, ou que poderão ser interpretadas, algures, assim. A questão homossexual, levantada pelo narrador-personagem de O Amante das Amazonas não é “um problema só de especialistas”, é uma questão ainda camuflada nos meios sócio-familiares brasileiros e que interessa a todos, sem distinção sexual ou de classe. É um problema que está longe de servir aos interesses do Capital e do Estado, não veicula uma ideologia cientificista, mas exige que seja revisto, por ângulos mais conscienciosos e sem interferências preconceituosas. As “águas” dessas lembranças míticas do narrador-personagem de Rogel Samuel “correm desde o sem princípio das partes íntimas” de sua narrativa. Anteriormente, em períodos literários do passado, a proposta de “princípio” narrativo estava submetida à força das “árvores de 70 metros de altura”, frondosas “árvores” conceituais, dominadoras, cerceadoras de um novo princípio narrativo. Tais “árvores” conceituais estavam/estão, talvez estarão ainda a impedir uma novíssima ultrapassagem verbal ─ ficcional ou paraliterária ─ contra as tradicionais seculares instituições preconceituosas de como se apresentar ao mundo. Urgia plantar outras, mais condizentes com a realidade do final do século XX. Necessita-se plantar outras mais harmônicas com este início de século XXI.
As “águas” (as lembranças imperecíveis do narrador) provêem “dos desconhecidos lugares da origem Numa”, uma tribo desconhecida geograficamente e que ficou à margem da história do Amazonas, por exigências sócio-substanciais. Desta tribo de índios audazes, só se perpetuaram os referentes conhecidos e aplaudidos ligados à força física, ao lado indômito, à imponente belicosidade do animus dessa tribo diferenciada. As “águas” (as lembranças) desses lugares da origem Numa ficaram desconhecidas por leis de “sobrevivência”, relegadas friamente ao esquecimento. “Se perdem”/se perderam no esquecimento, porque foram interditadas vergonhosamente pelo anterior regime patriarcal. Foram/são esquecidas e passaram/passam, porque, se íntimas, representaram/representam “perigo”, se fossem/se forem verbalizadas.
Essas “águas”, que vêem de “desconhecidas origens Numas”, são especiais, porque provêem do devaneio interno de quem narra. O narrador rogeliano Ribamar de Sousa a designa como uma “narrativa animal” porque ela é uma projeção da matéria primitiva que vigorou/vigora no imaginário-em-aberto do escritor. Refiro-me àquela matéria inovadora que surge entropicamente depois do repouso fervilhante, intimamente relacionada com os juízos de descoberta, de que nos fala Bachelard, em seu livro A Dialética da Duração. 

O galho quebrado diz: “Não passarás”. E além da Curva do Tucumã, a passagem do eixo do rio se separa. Pode-se banhar e pescar, deste lado. Mas aos poucos os Numas se infiltravam, avançavam, atravessavam. Passavam além de si mesmos, não respeitando seus próprios limites. Atravessando o rio e a ordem que o rio exercia na floresta. 

“O galho quebrado diz: “Não passarás”, em outras palavras, não havia/não há ainda permissão para que se infringisse/infrinja as leis preconceituosas que comandaram/comandam o mundo dito social. Mas, para “além da Curva do Tucumã, a passagem do eixo do rio se separa” e “pode-se banhar e pescar, deste lado”. A imaginação rogeliana, como diria Bachelard, oculta “a tonalidade profunda do devaneio criador” , pois ela está resguardada pelas lembranças inesquecíveis de antigas leituras foucaultianas, bachelardianas e outras. Além da “Curva do Tucumã, a passagem do eixo do rio”, que separa o substancialmente dito (“gêneses lineares”) do não-dito (o que não possui história), propicia o momento da infração ficcional, porque, daquele lado, pode-se “banhar” no rio das ditosas ou amargas lembranças imperecíveis e “pescar” novíssimos juízos. Michel Foucault desenvolve um assunto interessante sobre a genealogia do poder e do saber.

A genealogia é cinza; ela é meticulosa e pacientemente documentária. Ela trabalha com pergaminhos embaralhados, riscados, várias vezes reescritos.

Paul Rée se engana, como os ingleses, ao descrever gêneses lineares, ao ordenar, por exemplo, toda a história da moral através da preocupação com o útil: como se as palavras tivessem guardado seu sentido, os desejos sua direção, as idéias sua lógica; como se esse mundo de coisas ditas e queridas não tivesse conhecido invasões, lutas, rapinas, disfarces, astúcias. Daí, para a genealogia, um indispensável demorar-se: marcar a singularidade dos acontecimentos, longe de toda finalidade monótona; espreitá-los lá onde menos se os esperava e naquilo que é tido como não possuindo história ─ os sentimentos, o amor, a consciência, os instintos; apreender seu retorno não para traçar a curva lenta de uma evolução, mas para reencontrar as diferentes cenas onde elas desempenharam papéis distintos; e até definir o ponto de sua lacuna, o momento em que eles não aconteceram.

A genealogia exige, portanto, a minúcia do saber, um grande número de materiais acumulados, exige paciência. Ela deve construir seus “monumentos ciclópicos”, não a golpes de “grandes erros benfazejos” mas de “pequenas verdades inaparentes estabelecidas por um método severo”. Em suma, uma certa obstinação na erudição. A genealogia não se opõe à história como a visão altiva e profunda do filósofo ao olhar de toupeira do cientista; ela se opõe, ao contrário, ao desdobramento meta-histórico das significações ideais e das indefinidas teleologias. Ela se opõe à pesquisa da “origem”. 

“O galho quebrado” da genealogia númica impediu, ao longo da história patriarcal, que a árvore se fortalecesse e permanecesse socialmente altiva, como as “de 70 metros de altura”. “A genealogia é cinza”, diz Michel Foucault. Enquanto forma documental, o estudo da procedência de uma ramificação familiar e/ou tribal poderá ser aniquilado por reelaborações não confiáveis. A genealogia deve/deveria construir seus “monumentos ciclópicos”, não a golpes de “grandes erros benfazejos” mas com “pequenas verdades inaparentes estabelecidas por um método severo”; a genealogia deveria deixar de ser cinza. 
Foi a partir da “Curva do Tucumã”, a curva onde se reencontram as diferentes cenas e onde elas desempenham papéis distintos, que os Numas/Numes rogelianos se infiltraram, avançaram e atravessaram as leis preconceituosas da história do homem ocidental, premiando os leitores de Rogel Samuel com uma númica e criativa cena homossexual/lesbiana: as indiazinhas Numas em interlúdio amoroso à beira das majestosas águas, eternas, do pensamento mitificado a construir monumentos ciclópicos. Os Numas/Numes passaram “além de si mesmos” e não respeitaram seus próprios limites mágicos, e com isto, enquanto divindades aéreas e/ou aquáticas, interiorizadas, atravessaram “o rio e a ordem que o rio exercia na floresta” (atravessaram as lembranças do escritor e o texto que seria apresentado aos leitores).
Necessito de uma explicação: Em um primeiro momento, refleti o assunto pelo ponto de vista da interpretação primária, respaldada pelo próprio texto ficcional de Rogel Samuel. Com esta atitude, reconheço, submeti-me ao risco de uma desconexa contra-afirmação metodológica, como proclamei anteriormente. Para uma interpretação reflexivo-fenomenológica e explícita do mítico homossexualismo/androginismo das indiazinhas Numas/Numes rogelianas, interpretação esta que seja respeitada pelos meus pares intelectuais, submissos às teorias literárias estrangeiras (a maior parte, pelo menos), exige-se, para o esclarecimento do assunto, um repensar à moda do fim da modernidade (Era Moderna) e o início da pós-modernidade (do século XX para cá).
Até meados do século passado, a questão, no âmbito da criação ficcional, não poderia ser exposta nitidamente. Os pensadores fenomenólogos, como, por exemplo, Nietzsche, Heidegger, Deleuze, Foucault, Vattimo, perceberam que a artística interpretação literária da realidade (arte literária), teria de acompanhar a situação real de quem a produzisse. O escritor, fosse ele ficcionista ou poeta, teria de mostrar uma de suas faces ao mundo ─ neste romance de Rogel Samuel, por exemplo, a de criador literário ─, ou seja, o seu modo de estar no mundo. O escritor-ficcionista do século XX sofreu esta exigência cogitativa e cognitiva ao ver-se obrigado a abandonar a forma exemplar dos narradores ficcionais tradicionais em proveito de um diferenciado propósito narrativo-ficcional. Os narradores do século XX (não confundi-los jamais com os narradores épicos), narradores do caos vivencial do homem em transição, secular e milenar, exigiram, para si mesmos (e para os pósteros) uma renovada forma de expressão literária/ficcional (sem absolutismo), que os representasse, orientando-os para uma não-convencionada atitude ante as regras imperialistas, cerceadoras, do mundo moderno. Por exemplo, neste romance de Rogel Samuel, esta idéia de uma renovada literatura ficcional já se revela sublinearmente. Senão, vejamos:

No quarto dia não apareceram.

O rio era um deserto. Eu não tinha conseguido, na loucura do dia anterior, a plenitude daquilo que, há tempo, em mim, era só desejo impulso obscuro e sem nome: eu tinha arriscado a vida. Tinha sido capaz de cambiar a vida pela verdade, o que valia a pena, o que valia a vida, na equivalência surpreendente torcionária ─ a vida não é de caminhos retos ─, mas na iniciação às Parcas, esboço de serpentes, nome de demônio. Minha verdade. Tampo do tempo. Última verdade a ser implantada, cabeça a dentro, no elenco das melhores e das mais remotas profundezas, na subversiva imaginação do terror e da violência ─ amá-las para mim seria desmistificar: As meninas fugidias, no mais rápido do ato, no átimo, não as pude pegar, na desiderabilidade do aceno, do acerto de contas. 

“O rio era um deserto”. Penso, extratexto narrativo, o que esta informação ficcional rogeliana quer dizer, ou seja, não havia como transformar em palavras as íntimas lembranças. No entanto, existia o desejo, “um impulso obscuro e sem nome” de oferecer “plenitude” aos pensamentos diferenciados. O narrador-personagem “tinha arriscado a vida” para, enfim, dar forma ficcional às suas lembranças.  Ele “tinha sido capaz de cambiar a vida pela verdade”. O que seria esta verdade? Seria uma verdade deleuziana?
O que seria a verdade do narrador-personagem de Rogel Samuel. Seria aquela imposta pelas anteriores regras ficcionais, substanciais, regras essas que tanto incomodaram o escritor Alain Robbe-Grillet, Jules Deleuze, Michel Foucault e outros, em meados do século XX, regras imperialistas, preconceituosas, que impunham ao escritor um modelo, à moda de grandes romances do passado, modelo este para o qual o jovem escritor deveria manter os olhos voltados, como afirmou Robbe-Grillet? Ou tal personagem-narrador-inovador deveria buscar sua verdade no fundo do poço dos juízos de descoberta (Bachelard), distanciado das regras ficcionais substanciais de seu momento-histórico e encarregar-se por sua vez de lutar titanicamente com as palavras diferenciadas, originárias de novíssimos princípios e restritas ao alargadíssimo imaginário-em-aberto do repouso fervilhante do escritor?
Os fundamentos substanciais daquelas regras anteriores ao pós-modernismo, se as penso pela ótica de Gianni Vattimo , àquela época, não poderiam ser criticados e, muito menos, reformulados, ou mesmo refundamentados, pois eram fundamentos considerados absolutos, consagrados, inquestionáveis. Assim, a ficção do século XX final, entrópica, sinalizou-se como a ficção do não-fundamento. Aqui, repenso aquela informação perfeita, artística, sucinta de Rogel Samuel, citada páginas atrás: “Como nessa matéria nada é absoluto”. Esta afirmação endossa o meu texto reflexivo-interpretativo, sobre o diferenciado narrador pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração, o narrador-personagem Ribamar de Sousa de Rogel Samuel, este meu texto teórico-interpretativo, conscientemente fragilizado, porque se coloca conscientemente como pioneiro, e que, certamente, sofrerá repetidas investidas, contrárias, das hostes intelectuais, brasileiras ou não, proprietárias das eternas verdades teórico-críticas institucionalizadas.
Contudo, voltando à ficção do século XX, nitidamente entrópica, reafirmo, pela minha própria forma de entender o pensamento de Gianni Vattimo, que esta se sinalizou como a ficção do não-fundamento. Os ficcionistas-criadores de uns anos para cá não instituíram os chamados fundamentos corretos, não estabeleceram verdades absolutas, negaram uma disposição e distribuição do fazer narrativo pelo modelo tradicional, desenvolveram um diferenciado exame da realidade de suas propostas ficcionais. Esses ficcionistas do século XX, extremamente não-convencionais, procuraram uma adequação ao estado entrópico de suas realidades existenciais. Já que não possuíam mais a confiança e firmeza do substancialmente instituído, valeram-se de suas dúvidas diárias, vazias, desenvolvendo gradativamente suas lutas titânicas com as palavras ainda não-substancialmente formalizadas.
A verdade do narrador-personagem Ribamar de Sousa, foi o estabelecimento da não-verdade do criador ficcional pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração Rogel Samuel, pois este não possuía um fundamento histórico sobre os Numas, substancial, confiável ─ em virtude de ser o escritor originário de uma criação social preconceituosa ─ para se posicionar sobre o problema da homossexualidade (masculina) nas hostes indígenas. (Esta minha particular expressão teórico-crítica é válida ─ “segunda geração” ─, porque a primeira fase, também entrópica, da escritura ficcional pós-moderna/pós-modernista de Primeira Geração é totalmente diferenciada da segunda fase, ou seja, desta fase criativa deste escritor aqui considerado).
Mas, o que é a verdade rogeliana? A anterior verdade instituída, sobre “coisa” de difícil explicação, apresentada sublinearmente pelo narrador-personagem Ribamar de Sousa, já fora asfixiada pelo “rio deserto” (plano sem palavras conceituais, amorfo), inserido na fábula númica do escritor amazonense. O momento sócio-existencial de sua realidade próxima ainda não estava a permitir-lhe novos fundamentos ficcionais. A entropia narrativa, à moda da primeira fase pós-modernista, ainda teria de se fazer presente em seu relato. Entretanto, mesmo repudiando as preconceituosas “verdades” instituídas e se debatendo em uma realidade enrolada e espetacularmente diversificada, o ficcionista pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração conformou um outro rumo ou nova sondagem para explicitar a sua verdade ficcional. E esta nova conformação respaldou-se na incerteza da própria conformação, na luta constante para se chegar a um bom termo explicativo-narrativo-ficcional.
(Foram dez anos de pesquisa e reformulações, diz Rogel Samuel). Neste ínterim, “naquela enseada de poço, piscoso e escuro, sob o cântico geral daqueles pássaros de bico largo e penas coloridas”, o criativo escritor de O Amante das Amazonas viu-se a coletar e a destruir paradigmas. Sim. Assim como o seu narrador Ribamar de Sousa, ele, apenas o Rogel Samuel, escritor de origem manauara, não tinha conseguido, “na loucura das buscas anteriores, a plenitude daquilo que nele era só um desejo impulsionado, obscuro e sem nome”, ou seja, desmistificar e esclarecer as fundamentações substanciais sócio-familiares replenas de hipócritas motivações de como se apresentar ficcionalmente ao mundo. Anteriormente e historicamente, o padrão institucionalizado ditou as normas da escrita ficcional sobre “coisa” de difícil explicação. Naquele momento criativo, o escritor Rogel Samuel estava a debater-se com a idéia da formalização narrativa da mítica realidade Numa/Nume. E fora/(é ainda) uma formalização que não se repetiu/se repetirá igual, seja em espécie ou gênero literário. Os Numas (no caso, o nome e o ato de se nomear ficcionalmente uma nação indígena brasileira) serão para sempre e indiscutivelmente uma criação ficcional de Rogel Samuel, pois, graças à proposta ficcional singularíssima deste escritor, continuarão “arredios, móveis, vigilantes, foragidos dos Andes”, continuarão “empurrados por perigoso inverno”, e “permaneceram perdidos e livres, animais persistentes”, [a se imporem] como resistência. Não e não”. [Reagirão] ao pacto, ao toque, ao contato”, pois, como diria Michel Foucault, pós-modernamente recuperado nas páginas rogelianas, “onde há resistência, há poder” .

As grandes obras trazem sempre um duplo signo: a psicologia encontra nelas um lar secreto, a crítica literária um verbo original.  A língua de um grande poeta (...) é sem dúvida rica, mas tem uma hierarquia. Sob suas mil formas, a imaginação oculta uma substância privilegiada, uma substância ativa que determina a unidade e a hierarquia da expressão. Não nos será difícil provar que (...) essa matéria privilegiada é a água ou, mais exatamente, uma água especial, uma água pesada, mais profunda, mais morta, mais sonolenta que todas as águas dormentes, que todas as águas paradas, que todas as águas profundas que se encontram na natureza. A água, na imaginação (...), é um superlativo, uma espécie de substância de substância, uma substância-mãe. 

Para explicitar o poder dos Numas/Numes enquanto tribo não-nomeada ─ geográfica e literariamente ─, nesta narrativa ficcional de múltiplos sentidos, será lícito interagir com o texto de Rogel Samuel, paralelamente às obras filosóficas de Gaston Bachelard, Michel Foucault e outros pensadores da pós-modernidade. Portanto, por ora, dialogando com alguns parágrafos bachelardianos, nos quais o filósofo analisa/interpreta as obras de Edgard Alan Poe e Paul Claudel, por minha parte, posso assegurar que a substância privilegiada, em O Amante das Amazonas, como não poderia deixar de ser, é igualmente a água. A água, na imaginação rogeliana também se superlativiza, porque, assim como nos escritos de Poe e Claudel, o que se encontra oculto nela é o lar secreto, aquático, do escritor de origem amazonense. Se para Bachelard a língua de um grande poeta [de um grande ficcionista] tem uma hierarquia, é justamente graças a essa hierarquia sui generis que os Numas rogelianos apresentam uma força excepcional. Os Numas são Numes (míticos seres alados) e provêem da “incerteza” e “não-saber” históricos, “herméticos, multiplicados e fortes”. Afirmou/afirma Rogel Samuel: “Os Numas se submetiam a si mesmos, refugiaram-se em si”, “na multiplicidade de seus pontos de força”, “no imprevisível espaço”, em outras palavras, não se revelaram socialmente e historicamente.


Os Numas se submetiam a si mesmos, refugiaram-se em si. Na multiplicidade de seus pontos de força, insistindo em ser, no imprevisível espaço. 

Estão, a princípio, em toda parte, na exterioridade do poder do Seringal, na rede florestal de fora da dominação. Os Numas cercaram o Seringal, restringindo-o a seus próprios limites, impedindo sua expansão desmesurada. O Seringal, imenso (viajava-se dias dentro dele), teve de estacar, deter-se, refluir, limitado por aquela invisibilidade, de saber, de encontrar, como se não existissem senão pelo vazio de sua ausência inumerável, recobertos, em nenhum lugar, no não-traçado. Freqüentemente se assemelhavam às árvores e aos pássaros do céu. 

“Estão, a princípio, em toda parte, na exterioridade do poder do Seringal, na rede florestal de fora da dominação”. Dominação de quem? De Pierre Bataillon? Ou das narrativas substanciais preconceituosas que dominaram o século XX? Apego-me a Bachelard, para compreender este trecho da obra de Rogel Samuel:

A água, por seus reflexos, duplica o mundo, duplica as coisas. Duplica também o sonhador, não simplesmente como uma vã imagem, mas envolvendo-o numa nova experiência onírica. 

Os Numas estão reduplicados a partir do imaginário incomum de Rogel Samuel, estão “na rede florestal” do escritor, “fora da dominação” sócio-substancial, daquela anterior forma/regência da técnica do “bem narrar”. O “seringal” das anosas normas ficcionais, neste trecho sui generis, está cercado pela “expansão desmesurada” dos Numas/Numes rogelianos, os quais serão decodificados (se, no futuro intelectualizado, os analistas/intérpretes assim o quiserem) a partir do simulacro do “bem narrar” à moda tradicional, mas indiscutivelmente alicerçado pelo ato de “bem ver” e “bem repensar” a transitória realidade do século XX e início do século XXI (naturalmente, no futuro, por intermédio de novas críticas literárias, respaldadas por novíssimos juízos substanciais). Os Numas insistindo em ser, porque aquele lar secreto, singular, no momento, está ativamente duplicado (reduplicado, triplicado) pelos igarapés singelos e/ou pelas águas volumosas dos caudalosos rios amazonenses, e esses Numas/Numes, enquanto divindades aquáticas e/ou aéreas (“freqüentemente se assemelhavam às árvores e aos pássaros do céu”), especialmente, fazem parte da casa inesquecível do escritor de origem manauara: a Grande Floresta. O Estado do Amazonas, Manaus e a mítica Floresta (árvores e pássaros) serão sempre o lar primordial do escritor Rogel Samuel. Para o escritor, não importa que as lembranças dessa casa inesquecível nem sempre sejam boas. O que lhe atinge intimamente é que por ali existe um Igarapé do Inferno a poluir a parte exterior “do poder do Seringal”, aquele espaço privilegiado e incomum de seu “verbo original”. Dar vida mítico-ficcional aos Numas/Numes, é uma “nova experiência onírica”, “imensurável”, para o seu narrador-personagem.

Eles não eram aparência, mas imanência, e quem viajou pela Amazônia sabe do que estou falando, na ambigüidade onde tudo é incerteza e não-saber, herméticos, multiplicados e fortes. Os Numas, sem revolta, sem rebelião, sem guerrilha, rio acima, possíveis mas improváveis, mitificados, solitários, violentos, irreconciliáveis. Sempre prontos ao ataque que não se dava. Fadados a matar. Pois os Numas apavoravam. Eram pontos estratégicos desconhecidos na correlação de poder da natureza, de que os Numas eram guardiães. Distribuíam-se de modo incompreensível e irregular, em focos de força (diziam que eram capazes de sobreviver embaixo da água em certas bolsas de ar). Disseminavam-se com maior densidade no espaço da noite, preparavam armadilhas nos caminhos de pequenas cobras venenosas. Oh, ruturas! Seres frios, enevoados por lendas vindas das montanhas, deuses que descessem para nos justiçar das noturnas culpas. 

Mesmo conhecendo um pouco da Amazônia, para compreender reflexivamente este parágrafo, necessito de Bachelard a orientar-me:

Diante da água profunda, escolhes tua visão; podes ver à vontade o fundo imóvel ou a corrente, a margem ou o infinito; tens o direito ambíguo de ver e de não ver. (...) A fada das águas, guardiã da miragem, detém em sua mão todos os pássaros do céu. Uma poça contém um universo. Um instante de sonho contém uma alma inteira. 

“Oh, ruturas!” Aqueles “seres frios, enevoados por lendas vindas das montanhas”, aqueles “deuses” desceram do Olimpo para “justiçar” o narrador-personagem Ribamar de Sousa das “noturnas culpas” daquele seu outro alter ego ficcional, o segundo e verdadeiro narrador, aquele que tem o poder de visualizar para além de si mesmo. Oh, instante de sonhos a deter nas mãos “o direito ambíguo de ver e de não-ver” (daquele que sente e possui o dom de narrar ficcionalmente tal momento grandioso), um direito incerto sui generis auxiliado pelo imaginário-em-aberto de uma própria, diferenciada e privilegiada consciência singular.

Pois era como se fossem olhos fixos em toda a parte, de tal modo a gente se sentia vigiado por aquelas estranhas criaturas. Às vezes deixavam-se entrever. Muitos seringueiros tentaram caçá-los a tiros (e foram mortos dias ou meses depois, numa vingança fria e exata). Eles se deslocavam rápidos, como um sopro, não estão lá, transitórios. 

E rompiam além, na nossa frente. Nus, com gemido de fera ferida, de pássaro. Só som. Para se reagrupar nos caminhos já passados, deixando propositais pegadas. Recortam o ar com sibilantes flechas de vento, marcando seus traços em toda a parte, nas irredutíveis casas do nosso medo. 

Cruzam redes de relação dentro do Seringal, infiltrados, atravessando, chegando no jardim do Palácio, para afrontar. Eles estão lá, sem estar. Ágil nomadia perigosa. 

Esses são os Numas/Numes rogelianos que se confrontarão, intermitentes, aéreos, com os Caxinauás, aquela tribo infausta que foi domesticada ficcionalmente por Pierre Bataillon, nas páginas de O Amante das Amazonas, e, historicamente, pelo branco europeu aventureiro, e que, ainda hoje (os que sobraram) poderão ser visitados em suas indígenas reservas comunitárias. Assim, do outro lado da competição entre os planos mítico-substancial e sócio-substancial, nesta narrativa ficcional de Rogel Samuel, estão os índios caxinauás, os quais foram realmente pacificados em meados do século XIX por aventureiros e exploradores europeus. Os Caxinauás do sub-grupo Pano, atualmente localizados próximos ao Igarapé São José, ainda hoje são uma realidade, mesmo que pequena, na geografia do Estado do Amazonas.

Aquela era uma das inúmeras aldeias Caxinauás da Amazônia. Pierre impôs a paz, a ordem. Destruiu a cultura Caxinauá pelo progresso, novo deus que era, e a quem eles se submeteram sem reclamos, quase alegres. A partir de então as mulheres e os rapazes Caxinauás se transformaram em objetos do Seringal, pela força da tropa de guerra do Coronel. E a pequena aldeia, empestada de tifo, malária, sarampo e sífilis quase desapareceu: uma epidemia de gripe, em 91, dizimou um terço da população. Os Caxinauás se reduziram a 84 viventes agricultores, servos da gleba do Coronel.

Dez anos depois, voltando os Numas das montanhas peruanas, o quadro mudou molecularmente.

Com os Numas não. 

Os Numas, segundo Rogel Samuel, “dez anos” depois, voltaram “das montanhas peruanas”, mudando “molecularmente” o cenário do Seringal Manixi. “Com os Numas não”. Pierre Bataillon e seu exército de Caxinauás amansados não puderam domesticá-los. Estes jamais se escravizaram, ou se escravizariam, ou se transformariam em “objetos do Seringal”, assim como acontecera com os próprios Caxinauás, ao longo da narrativa rogeliana e ao longo da história do Amazonas.
Os Numas, a partir daqui, já não se revelarão assim tão mitificados. “Foram dez anos de pesquisa”, diz Rogel Samuel. Ficaram imobilizados dez anos no arcabouço mítico rogeliano, no entanto, vivos e oportunos. Não que o lendário arcabouço mítico númico tenha desaparecido para sempre das linhas ficcionais rogelianas, apenas ressurgiu, dez anos depois, transformado, a transmutar os Numas em “belos” rapazes, com “os olhos amendoados e escuros” e os “grossos sexos expostos” em seus “corpos de criança graúda”. Mas, ao longo do narrar rogeliano pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração [os Numas/Numes], continuavam/continuaram/continuam/(continuarão?), “sem revolta”, “puros fantasmas”, pois “encantavam-se”/encantam-se em lendas inimagináveis, multiplicando-se, ainda “sem revolta”, graças à “floresta pré-histórica” (o mito de ontem, de hoje e de sempre) que “os neutralizava” e ainda os neutraliza. “Floresta de ouro, de leite”, de temporário e aéreo contentamento mito-poético. “Oh, ruturas!” Oh, violações! Oh, infrações pós-modernas/pós-modernistas de Segunda Geração modificando o ato de narrar do diferenciado narrador do espectante e entrópico momento pós-moderno. E como há ainda hoje poderosos “seringalistas”/analistas tentando “caçá-los a tiros” com velhas espingardas, resguardados por amansadas tribos e anosas críticas já em desuso. As lendárias e intrépidas amazonas guerreiras, agora definitivamente pós-modernas, deliberaram, em um certo momento narrativo-intuitivo, ostentar suas verdadeiras formas masculinizadas.

Alguns meses sumiam, desapareciam, pulverizados, sem unidades individuais, se acalmavam, tivessem ido embora para sempre. Ou só vento, integrados nas folhas das árvores. Mas logo uma seta rápida entrelaça no ar a sua curva a dizer que nunca se foram, que sempre lá estiveram, belos, os olhos amendoados e escuros, grossos sexos expostos, corpos de criança graúda... mas puros fantasmas, encantavam-se, a floresta pré-histórica os neutralizava, floresta de ouro, de leite. 

“Tivessem [os Numas/Numes] ido embora para sempre”! “Ou [fossem] só vento integrado nas árvores”! Se assim fosse, o regulamento que impõe esquecer os Numas/Numes seria o triunfo das imposições do mercado ficcional ardiloso. Seria mais compensador, pelo ponto de vista da ficção linear, se os Numas fossem apenas personagens de uma narrativa singela, cumprimentada por todos os leitores massificados, personagens-referentes aos tempos heróicos da humanidade guerreira, ou mesmo respeitantes a heróis incríveis, utópicos, irreais? Mas, não é/será exatamente assim que a narrativa rogeliana prosseguirá. Eles continuam/continuarão a surgir, ao longo desta ficção pluri-dimensional, “pulverizados, sem unidades individuais”, reprovados, simulacradora e sublinearmente pelo próprio narrador-personagem Ribamar de Sousa, por enquanto, ainda propenso à representação exteriorizada do narrar histórico, ainda meio que reverente aos preconceituosos dogmas de sua realidade sócio-substancial. Não. Assim não terei, como teoricamente me impulsiono, uma resposta pós-moderna/pós-modernista, esclarecedora e satisfatória, aos meus argumentos crítico-reflexivos. Eles não foram embora, e retornaram, intermitentes e aéreos, mas, por enquanto, “puros fantasmas”, aguçando a minha reflexão interrogativa, dissimuladamente travestida em crítica literária. Eles retornaram e invadiram a “casa inesquecível”, primordial, do escritor amazonense Rogel Samuel. E esta “casa inesquecível” ─ a Floresta Amazônica ─ está muito bem sedimentada nas lembranças e nas recordações deste anti-convencional escritor.
“Oh, ruturas” rogelianas! Como posso deixar de reverenciar fenomenologicamente/reflexivamente/criticamente a entrópica realidade ficcional de algumas excepcionais narrativas desta minha realidade sócio-histórico-cultural, substancial, e pós-moderna/pós-modernista de Segunda Geração? Como posso deixar de honrar e respeitar esta incomum narrativa de Rogel Samuel, se constato aqui o desprendimento de seu narrador, a revelar-me os mais recônditos cômodos de sua “casa inesquecível”? Como posso deixar de acusar e demonstrar o valor imensurável desta obra ficcional, que será, certamente, muito bem avaliada pelos analistas e/ou intérpretes literários do futuro?

Poderíamos realmente descrever um passado sem imagens de profundidade? E jamais teremos uma imagem da profundidade plena se não tivermos meditado à margem de uma água profunda? O passado de nossa alma é uma água profunda. 

A crítica literária fenomenológica e interativa, interdisciplinar, como a desejou Bachelard, destravou os “impulsos divergentes” atuais, suplantando notavelmente a anterior crítica de base cientificista, propiciando-me a participação nas “sublimações variadas” e levando-me a perceber “as imagens distantes” que deram “impulso à imaginação” multifacetada e aberta de Rogel Samuel, nesta sua obra-prima, inegavelmente original. Se os narradores do passado se submeteram às trilhas ficcionais já abonadas pelas normas lingüísticas afins, o(s) narrador(es) rogeliano(s) buscou/(buscaram) os caminhos não-conhecidos da intrincada Floresta Amazônica. “Oh, ruturas” rogelianas! Oh, infrações nietzschianas, bachelardianas, deleuzianas e seguintes! Oh, necessárias infrações para a eliminação definitiva, neste início de Terceiro Milênio inovador, do narrador ficcional tradicional! Oh, necessárias transgressões para o estabelecimento de um próximo narrador diferenciado, trazido pela correnteza das águas do pensamento puro, tal qual aconteceu com o rogeliano “Moisés do Egito”, o Ribamar de Sousa, alter ego ficcional do verdadeiro narrador pós-moderno.
E, por intermédio desta interação reflexiva, terminarei este capítulo a repensar as informações ficcionais de Rogel Samuel, agregadas conscientemente aos notáveis pensadores da entrópica fase de transição entre a modernidade e a pós-modernidade. 

Bataillon avançara na parte mais secreta da floresta, igarapé acima. Agora costeava os limites imprecisos da morte. Entre a tropa de guerra e a floresta dos Numas se estabelecia uma reciprocidade tática de respeito e de raivas. 

Pierre deixava presentes, miçangas, facas e frutas, em bandejas de madeira. Os Numas nunca tocavam naquilo. Entre o Seringal e os Numas não havia canal. O Seringal, à espera. Os Numas, na observação, proscrevendo limites que quebravam. 

Pierre evitava a guerra, buscava a solução política, economizava-se, agia conforme a natureza de seu princípio único, sem o risco de pagar pelo preço elevado da morte. 

Pierre Bataillon avança “na parte mais secreta da floresta, igarapé acima”. Pierre Bataillon está penetrando a região dos Numas, evidentemente, de barco (mesmo que seja um barco imaginário), “costeando os limites imprecisos da morte”. Esta imagem revelará, no meu próximo capítulo sobre a ficção de Rogel Samuel, assessorada pelo pensamento bachelardiano, que uma nova modificação narrativa se fará necessária. Pierre Bataillon, no momento, se transmuta em Caronte, apresentando-se como barqueiro-guardião do mistério númico.

X - O Igarapé do Inferno Como Limite do Fim do Mundo

Se quisermos restituir ao seu nível primitivo todos os valores inconscientes acumulados em torno dos funerais pela imagem da viagem pela água, compreenderemos melhor o significado do rio dos infernos e todas as lendas da fúnebre travessia. Costumes já racionalizados podem confiar os mortos ao túmulo ou à pira; o inconsciente marcado pela água sonhará, para além do túmulo, para além da pira, com uma partida sobre as ondas. Depois de ter atravessado a terra, depois de haver atravessado o fogo, a alma chegará à beira d’água. A imaginação profunda, a imaginação material quer que a água tenha sua parte na morte, ela tem necessidade da água para conservar o sentido de viagem da morte. Compreende-se assim, que, para esses devaneios infinitos, todas as almas, qualquer que seja o gênero dos funerais, devem subir na barca de Caronte. 

No capítulo anterior entrevi o poderoso personagem Pierre Bataillon avançando, na ficcional canoa carôntica, “na parte mais secreta da floresta, igarapé acima”, deixando “presentes, miçangas, facas e frutas” para os Numas, e os “Numas nunca tocavam naquilo”. “Onde há resistência, há poder”, afirmou o narrador de Rogel Samuel por via foucaultiana. O narrador-personagem, o Ribamar de Sousa, ainda está no comando do pós-moderno narrar mítico-ficcional. É ele, exclusivamente, que tem a permissão das substâncias conceituais passadistas para se penetrar, junto com o Caronte/Pierre, na floresta e, a partir dessa invasão, descobrir o refúgio dos Numas. Aqui vislumbro alguns avatares alegóricos. Por princípio, o segundo narrador utiliza-se do primeiro para desmistificar o antigo poder instalado na floresta real do Estado Federativo do Amazonas e, concomitantemente, interagir com a representação idealizada de uma floresta especial, mitificada, inquestionável, proveniente das antigas lendas indígenas, copiosas na ficção rogeliana. Simultaneamente, o personagem, que no momento centraliza o capítulo, no caso, o Pierre Bataillon, avança, “rio acima”, para oferecer a representação mental de um outro personagem (ou outros), muito bem dissimulado no teor narrativo. Este personagem camuflado poderá ser um representante mítico-histórico do barqueiro Caronte, aquele que levava as almas para o Hades grego (o rio infernal), mas, poderá ser também o plenipotenciário do próprio narrador oficial (do segundo narrador), enquanto personalidade indissoluvelmente participativa do lugar. Por este prisma bachelardiano diferenciado, e pensando exclusivamente pela segunda via, na verdade, quem está avançando de canoa “igarapé acima” é o “inconsciente” fervilhante (o bachelardiano “repouso ativado”) do segundo narrador, alter ego do escritor Rogel Samuel, “marcado” indelevelmente “pela água” lendária dos caudalosos rios amazonenses e pelos silenciosos, misteriosos, igarapés mitificados de sua cidade natal.
Para o entendimento de uma narrativa diferenciada, exige-se um pensamento interpretativo teoricamente não convencionado. Para a compreensão do Igarapé do Inferno rogeliano, há a exigência de se “restituir ao seu nível primitivo todos os valores inconscientes acumulados em torno dos funerais pela imagem”, acoplados à “viagem pela água”, à moda mítica, transferindo energias múltiplas a cada dimensão espacial da história narrada. Assim, por um determinado ângulo interpretativo-reflexivo, a partir da História da região assinalada, nem sempre Oficial, há a exigência teórico-interpretativa de se descobrir a origem desse povo mitificado, ao longo do romance assinalado. Logo, surge a pergunta: como surgiu esta designação diferenciada, nesta obra ficcional, criativa, de Rogel Samuel, se não encontro referências históricas oficiais de tribos, com este nome genérico de “Numas”, mesmo de tribos já desaparecidas, nos anais da geografia e da história amazonense? Por tal motivo, busquei sondar a lanugem que recobre as diversas grafias de denominações de tribos brasileiras, do passado histórico e do presente, principalmente as que se localizaram/localizam por ali, nas imediações do Manixi narrado.
À vista disso, imponho-me declinar, por um ângulo extremo e interpretativo, a origem sócio-histórica e mítico-histórica dos Numas rogelianos, remexendo as nomenclaturas oficiais e não-oficiais que se referem aos nomes das diversas tribos indígenas do Brasil, incluindo algumas próximas às fronteiras do Peru e Bolívia, tribos estas historicamente misturadas com as tribos do lado brasileiro-amazonense, aquela superfície geográfica do Amazonas registrada por Rogel Samuel. Assim, por via não-oficial, (o que se constataria como informação perigosa, se este diálogo com a obra ficcional de Rogel Samuel fosse exclusivamente científico), repito, assim por via não-oficial, uma vez que me movimentei por um ano naquelas paragens amazonenses e escutei muitas histórias interessantes, os Numas rogelianos poderiam provir ficcionalmente de uma tribo afeita à guerra, possivelmente extinta desde o século XVIII, conhecida pelo nome de Náuas. Assim como os Numas/Numes rogelianos, os lendários Náuas habitavam a região onde atualmente se localiza o Estado do Acre, nas imediações da planície do Rio Juruá, rio este assinalado, entre muitos outros rios importantes do Amazonas, no romance de Rogel Samuel.

Porém embarcado chegaria em Manaus sem tropeços depois de 6 dias de viagem a 8 milhas por hora. E 2 dias mais tarde passava pela Boca do Purus, 5 dias após entrava na Foz do Juruá. Não navegávamos dia e noite? Na Foz do Juruá o Rio Solimões mede 12 km de largura e pássaros de vôo curto (o jacamim, o mutum, o cojubim) não conseguem atravessar, morrendo cansados afogados no fundo de ondas pinceladas de amarelo da travessia. Em 8 dias de navegação pelo Juruá chegávamos no Rio Tarauacá e atracávamos em São Felipe, de 45 casas, vila bonita, e arrumada. 9 dias depois entrávamos no Rio Jordão, de onde não prosseguiu o Barão, que não tinha calado, a gente seguindo desse modo de canoa pelo Igarapé Bom Jardim, subindo pois e encontrando nosso termo e destino, a ponta do nosso nó, o término, o marco extremo de nós mesmos, o mais longínquo e interno lugar do orbe terrestre ─ atingíamos finalmente o Igarapé do Inferno, limite do fim do mundo onde se encontrava, e envolto no peso de sua surpresa e fama, o lendário, o mítico, o infinito Seringal Manixi ─ 40 dias depois de minha partida de Belém, 3 meses e 5 dias desde a minha partida de Patos. 

Quando, em 1876, Pierre Bataillon chegou naquelas partes, primeiramente encontrou uma pequena aldeia Caxinauá no temor dos Numas quase sujeita, na exterioridade e mobilidade do poder Númico. Poder-se-ia dizer que os Numas os toleravam, temporariamente, e a qualquer momento, resolvessem vir, para os supliciar e exterminar. A aldeia Caxinauá se esprimia entre os Numas imprevisíveis e a parte civilizada e conhecida do Rio Juruá, lá onde só era possível encontrar seringueiros perdidos, (...). 

Segundo informações locais, esses Náuas tornaram-se lendários, pois, aparentemente exterminados pelo branco colonizador, ao decorrer do tempo, os históricos aventureiros afirmaram, por via de oralidade, sem deixar registro escrito, que um grupo conseguira se refugiar em um lugar indeterminado da floresta e, dali, passara a exercitar o instinto da vingança contra os invasores de suas terras. De tal sorte, mesmo deixando de serem vistos historicamente, a fama guerreira dos Náuas continuou intacta, assombrando àqueles que se aventuravam nas imediações de sua antiga concentração geográfica. Os Náuas desaparecidos foram mitificados por intermédio das fábulas fantásticas da transmissão oral amazonense, representando alegoricamente a luta do homem primitivo e da natureza indômita contra os valores corrompidos do branco colonizador. Possivelmente, e informalmente, os índios Numas/Numes rogelianos ─ “imprevisíveis” ─, sejam eles mítico-ficcionais “parentes” desses lendários Náuas guerreiros, pois, temidos, são nomeados também, no romance, como agentes da morte.

As lembranças familiares me levam num aporte imaginativo. Minha mãe gostava de andar descalça. Desde que saí de Patos, no Natal de 97, não pensava tanto nela com tanta ternura. Há muito tempo estou aqui. Meu irmão e meu tio Genaro, mortos, se misturam às manchas inquietas do chão, à morte de todos, todos, do Laurie Costa à Maria queimada no ataque dos Numas, ao acampamento Caxinauá. A solidão do espaço vazio se disfarça. Sibilina sensação de que as portas não estão bem fechadas, de que os gonzos coniformes estão abertos, as partes de bode inscritas na coiceira sobre o batente duplo e os tridentes e cornijas riscando o quadrilongo das abas. Entro cautelosíssimo. Atravesso a área vazia na ponta dos pés. Na parede defronte descubro uma porta desconhecida para mim e como que disfarçada na decoração. Toco-a com o dedo, sentindo-a. Experimento a maçaneta oculta, a aba cede e soa como uma vaca desazeitada. Aparecem, espaçadas, cadeiras de vime escuro; soam morcegos de vento, estrídulos chiados nervosos estilhaçam o ar da noite, pequeninos. Estou no liminar do quarto. Alguém dorme no torpor da penumbra, semi-iluminado por uma lâmpada que se apaga. Vejo então, como um coice, a figura de tordo de metal caído, a variada, a dispersa figura de um homem que dorme, potestade, submerso, grande, pernas estendidas e abertas sobre a poltrona. É Paxiúba, ele, o corpo assustador, o visível, grande, bronze, estranho membro encurvado. Sim, ele dorme como um sonho do sangue de seus mortos. 

A narrativa ficcional de Rogel Samuel, O Amante das Amazonas, é demonstrativa de “uma fúnebre travessia”, seja ela por caminhos sólidos, nas trilhas do pensamento da matéria terra ativada, ou em uma ficcional barca carontiana pós-moderna. Então, quem está no comando? Quem na verdade está no comando da travessia é o inconsciente fervilhante do dono do ato de narrar subjugado ao terceiro cogito de uma indiscutível consciência singular, transmutativa. Se o simbolismo da barca carontiana se sobressai, isto quer dizer que alguém irá morrer no decurso ficcional. Em verdade, muitos personagens irão morrer ao longo da narrativa. O próprio Seringal Manixi também perecerá, enquanto lugar de atividade extrativa da árvore da seringa, enquanto ocupação sócio-substancial. Se o Seringal permanecer vivo e atuante, não será pela via histórica do capitalismo selvagem de base familiar; permanecerá ativo graças ao poder ficcional deste escritor amazonense aqui realçado. A gloriosa cidade de Manaus do princípio do século XX, com a sua posterior e riquíssima Zona Franca, também perecerá, ao longo desta história incomum.

Tal é a ironia daqueles esforços feitos afim de engastar no horizonte os filamentos de ouro e tornar mais nítida a impressão de distância, para emporcalhar de ouro a empestada história ─ em doença, em loucura, em mortes e crimes impunes e imperiais (vários povos desapareceram ali, nos critérios de uma singular estética do capital, nos vazios e nos inócuos de um paganismo coquete, amoral e moderno. 

(─ “Assim é o látex”, dizia ele [Pierre Bataillon] ─ “elástico como o caráter. E é por isso que sai daquelas árvores como coisa fundamental e gomosa, como os líquidos viscosos sob a casca do corpo, o pus, o plasma aquoso branco, a goma, a seiva selvagem do muco que faz sangrar a floresta pegajosamente ─ é assim a seringa: o sangue da Amazônia que colhemos como um estranho mal e que um dia teremos de pagar muito caro”) 

Quem se encarregará das diversas mortes? Quem se encarregará de denunciar essas mortes? As lembranças da “fresta negra” e dos vorazes, famintos, “ratos” (os quais engordaram aos custos de muitas vidas que pereceram ingloriamente), repito, as lembranças desses ratos da página 89, capítulo oito, ainda estão estimulantes, cálidas, roedoras, em meu íntimo reflexivo-interpretativo. E os diversos mortos da ficção rogeliana? Não posso, racionalmente, “confiar” “ao túmulo ou à pira” os personagens que irão morrer, a começar dali, daquele místico capítulo TRÊS: NUMAS, ou seja, a partir desta “travessia” rogeliana/carontiana impecavelmente instigante. Assim como o narrador Ribamar de Sousa e o personagem Pierre Bataillon, terei de me camuflar também em Caronte/Intérprete; terei de atravessar o significado do rio infernal, deste Igarapé do Inferno à moda rogeliana, e me apropriar de todas as lendas desta fúnebre travessia, para enfim compreender o que este diferente autor amazonense quis revelar aos seus leitores, tanto os do presente quanto os do futuro, nestas suas páginas diferenciadas.
O(s) narrador(es) rogeliano(s) atravessou/ (atravessaram) a terra (dimensão histórica), atravessou/(atravessaram) o fogo (fogo real e fogo mítico), e agora sua(s) alma(s) chegou/(chegaram) “à beira d’água” dos pensamentos eternais. A imaginação dilatada do escritor, enquanto predisposição material ─ a escrita ficcional ─ necessitou “que a água [tivesse] sua parte na morte; ela [teve] necessidade da água para conservar o sentido de viagem da morte”, das diversas mortes sub-anunciadas na frase “pelos limites imprecisos da morte”, denunciando “os valores inconscientes acumulados em torno dos funerais” aquáticos, nitidamente resguardados nas lembranças imperecíveis do escritor. “Oh, ruturas!” Oh, rogeliano relato! Quantos inocentes foram tragados pelo Rio das Mortes localizado na Floresta Imensurável do Estado do Amazonas, próximo à cidade de Manaus? O fatídico Rio Urubu. Algum amazonense se recorda dele? Eu me recordo, porque morei em Manaus em 1996. Eu conheci este rio da morte, repleto de perigos inimagináveis, o rio-túmulo de muitos náufragos, os quais no passado não puderam se salvar dos grandes acidentes fluviais e pereceram por obra e graça de piranhas vorazes. Por tal necessidade, e a partir da profunda imaginação rogeliana, visualiza-se, aqui, um Caronte mítico travestido em personagem ficcional, o Pierre Bataillon.
Bachelard diz:

A função de um simples barqueiro, quando encontra seu lugar numa obra literária, é quase fatalmente tocada pelo simbolismo de Caronte. Por mais que atravesse um simples rio, ele traz o símbolo de um além. O barqueiro é o guardião de um mistério. 

Então, quem é este Pierre Bataillon (aquele que tem consciência de que “um dia” pagará “muito caro” por retirar da Amazônia o seu “sangue” precioso), enquanto “barqueiro-guardião de um mistério”? Seria ele o Caronte/Guardião das antigas verdades impenetráveis e impublicáveis, ou o Caronte/Guardião das diversas mortes ficcionais que estão a se avizinhar ao longo da narrativa de Rogel Samuel?  Por que o “simbolismo de Caronte” apareceu nestas páginas rogelianas? Por que o narrador-personagem diz que “entre o Seringal e os Numas não havia canal”? E por que havia “entre a tropa de guerra [tropa de guerra de Pierre Bataillon: os Caxinauás domesticados] e a floresta dos Numas, uma reciprocidade tática de respeito e de raivas”?
Para que eu possa responder aos meus questionamentos interativos, os quais direcionam esta reflexão teórico-interpretativa, terei de compreender o simbolismo do além narrativo, ou extra-ficcional, destas páginas de Rogel Samuel. E para evitar complexas e desavisadas argumentações contrárias, e possíveis rejeições teóricas (evidentemente, de meus pares), recorro novamente à filosofia de Gaston Bachelard:

Tudo quanto a morte tem de pesado, de lento, é igualmente marcado pela figura de Caronte. As barcas carregadas de almas estão sempre a ponto de soçobrar. Espantosa imagem onde se sente que a Morte teme morrer, onde o afogado teme ainda o naufrágio! A morte é uma viagem que nunca acaba, é uma perspectiva infinita de perigos. Se o peso que sobrecarrega a barca é tão grande, é porque as almas são culpadas. A barca de Caronte vai sempre aos infernos. Não existe barqueiro da ventura. 

A barca do Caronte/Narrador Ribamar de Sousa vai singrando desafiadoramente em direção ao Igarapé do Inferno. Que é o Igarapé do Inferno? Seria o rio/“Inferno” de Dante Alighieri localizado no Amazonas? Seria um rio-Inferninho localizado nos limites do fim do mundo da floresta amazonense? Uma região do deus-me-livre onde nenhum humano conseguiu colocar os pés, a não ser o personagem ficcional Pierre Bataillon e sua família, os seus subordinados brancos, caboclos, bugres e índios, acrescentando o contra-ponto das visitas esporádicas de Frei Lothar, representante de uma religiosidade cristã há muito afastada das primitivas leis disciplinatórias da Igreja de Cristo?
De acordo com a minha assertiva anterior, o Caronte/Pierre Bataillon (assim como o Ribamar de Sousa) é o barqueiro-guardião do mistério númico rogeliano. Para solucioná-lo, Pierre Bataillon (acompanhado pelo narrador Ribamar de Sousa, momentaneamente atingido pelos valores do inconsciente do narrador principal) avançou “na parte mais secreta da floresta”, penetrou a região dos Numas, de barco (imaginário que seja), costeou “os limites imprecisos da morte”, ofereceu miçangas e outros objetos aos Numas e estes não aceitaram a oferenda (ritual mítico-religioso), e, assim, os Numas continuaram Numes (seres espiritualizados), e Pierre, apesar da recusa numística, postou-se poderosamente humanizado, tornou-se o guardião de um mistério concernente ao homem da floresta ─ o índio, o retirante nordestino, o caboclo e o bugre ─ enquanto personalidade ativada.
Então, vou ao mistério: Pierre Bataillon dominava o homem da floresta (o povo silvícola subjugado residente no Manixi), mas não pode dominar os Numas enquanto seres espiritualizados. E eis a pergunta a incomodar a História do grandioso Amazonas, a História do imenso Brasil, a incomodar principalmente o(s) narrador(es) de Rogel Samuel: Como um pequenino estrangeiro europeu, pode dominar a nação Caxinauá (nação silvícola brasileira) e não conseguiu dominar os Numas/Numes (espaço universal)? “Entre a tropa de guerra [os Caxinauás domesticados de Pierre Bataillon] e a floresta dos Numas se estabelecia uma reciprocidade tática de respeito e de raivas”. A “tropa de guerra” já não possuía a floresta como lar, seus componentes, os Caxinauás domesticados, submissos a um tirano pré-capitalista, eram a milícia da “floresta”/prisão de Pierre Bataillon. “Os Numas, não”. Os voluntariosos Numas ainda tinham a Floresta do Fim do Mundo como lar, pois eram livres. Por tais motivos, não havia canal entre o Manixi social e os Numas/Numes, enquanto dimensões substanciais diferentes, alternadas e não compatibilizadas.

Se à água se associam tão fortemente todos os intermináveis devaneios do destino funesto, da morte, do suicídio, não é de admirar seja a água, para tantas almas, o elemento melancólico por excelência. (...). A água melancolizante preside a obras inteiras, como as de Rodenbach e Poe. A melancolia de Edgar Poe não provém de uma felicidade desvanecida, de uma paixão ardente que a vida queimou. Decorre, diretamente, da infelicidade dissolvida. Sua melancolia é verdadeiramente substancial. (...). Também Lamartine sabia que, em suas tempestades, a água era um elemento sofredor. Instalado junto ao lago de Genebra, enquanto as ondas arrojavam espumas sob sua janela, ele escreve: “Nunca estudei tanto os murmúrios, as queixas, as cóleras, as torturas, os gemidos e as ondulações das águas como durante essas noites e esses dias passados sozinho na companhia monótona de um lago. Eu teria feito um poema das águas sem omitir a menor nota.” [Nota de Gaston Bachelard, op. cit., no 28, Lamartine, Confidences, p. 306.] 

Quando o coração está triste, toda a água do mundo se transforma em lágrimas: “Mergulhei minha taça de prata dourada na fonte que borbulhava; ela se encheu de lágrimas.” [Nota de Gaston Bachelard, op. cit., no 29, Edgar Quinet, Ahasvérus, p. 161.] 

Eis aí o espaço da ficção rogeliana traduzido como a barca de Caronte a carregar o “coração triste” de quem narra, juntamente com os “mortos” de sua história sócio-pessoal. Mas não é simplesmente uma “água melancolizante”, como a de Edgar Alan Poe, que preside a obra de Rogel Samuel; é antes de tudo a atormentada água do sofrimento do povo primitivo do Amazonas, aquela que marcou a gênese de sua própria realidade sócio-espiritual. O escritor, em sua ativada solidão citadina, intelectualizada e contemplativa, socialmente distanciado de seu lugar de origem, meditou os “rios de sangue” que compuseram a realidade histórica de seu Amazonas, o lugar de seu nascimento e de seu conhecimento de vida. Eis aí a mitológica barca de Caronte navegando insolitamente em direção a um espaço ensoberbecido ─ o Manixi ─ e ao seu rio da morte, o Igarapé do Inferno.

A morte está nela. Evocamos sobretudo as imagens da viagem fúnebre. A água leva para bem longe, a água passa como os dias. Mas outro devaneio se apossa de nós e nos ensina uma perda de nosso ser na dispersão total. Cada um dos elementos tem sua própria dissolução: a terra tem seu pó, o fogo sua fumaça. A água dissolve mais completamente. Ajuda-nos a morrer totalmente. Tal é, por exemplo, o voto de Fausto na cena final do Faust de Christophe Marlowe: “Oh minha alma, transforma-te em pequenas gotas d’água e cai no Oceano, para sempre perdida.” 

“A morte está nela”, na barca de Caronte. “A água leva para bem longe, a água passa como os dias”, diz Gaston Bachelard. A água mítica de Ribamar (do ribeiro ao Oceano), o primeiro personagem-narrador, o primeiro alter ego do escritor, para se livrar definitivamente de sua histórica dor ─ “matar” a dor que o consumia ─, obrigou-se a ir ao fim do mundo, daquele mundo mítico onde se localizava o Igarapé do Inferno. Eis aqui o verdadeiro embate, embate infernal, para enterrar os mortos amazonenses dignamente, fossem eles índios ou brancos ou mestiços, enterrar para sempre um passado histórico desvalorizado. Oh, “terra sem história”, como disse Euclides da Cunha. Mas, Euclides da Cunha não conheceu a dor de quem mergulhou a própria “taça de prata dourada na fonte que borbulhava” e viu “ela se encher de lágrimas”, se encher de “sangue”. “Quando o coração está triste, toda a água do mundo se transforma em lágrimas”, disse Gaston Bachelard. A narrativa ficcional de Rogel Samuel é demonstrativa da tristeza que o assolava, naquele momento, já residindo distante do Amazonas, mas levando seus “mortos” em uma “barquinha de nada”, à moda daquele “filho” roseano, de “A terceira margem do rio”, que carregou, durante toda a sua existência, o seu velho pai/Sertão no coração. Rogel Samuel carregou o Amazonas inteiro em seu coração; carregou todas as lágrimas que caíram em seus rios eternais. Parodiando Fernando Pessoa, eu poderia afirmar e reafirmar também: Oh, Rio Negro adocicado, o quanto de seu negro mel são lágrimas de Rogel!

São raças inteiras espoliadas, traumatizadas, despossuídas de seus deuses e de suas riquezas construídas durante séculos, sangradas em hecatombes, liquidadas para sempre. Contaminadas de doenças, escravizadas e corrompidas, submetidas ao trabalho escravo que consumiu o sangue de milhões de pessoas desprovidas de suas economias de subsistência, tragicamente transformadas em exército de massas proletárias ─ vinte milhões de índios massacrados no Brasil (...). 

A narrativa, O Amante das Amazonas, é uma singular barca “carregada de almas”, e, a cada página, o seu timoneiro-narrador pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração se percebe na iminência do enfrentamento de infinitos perigos. Nela viajam todos os antigos “mortos” atestados pelos reais relatos da sociedade amazonense, “almas culpadas” dos inúmeros genocídios que marcaram a verdadeira história de dominação silvícola, naquele Estado Federativo do Brasil. Nela viajam todos os “mortos” pessoais e impessoais do escritor, os inesquecíveis “mortos” familiares e os inomináveis “mortos” neo-reconhecidos, principalmente, os desassombrados “mortos”, dignatários, poderosos, replenos de culpas históricas, gerenciadores de um rico passado de prosperidade e magnificência, e “mortes”. Eles, os “mortos” familiares e os “mortos” reconhecidos, também repletos de indeléveis culpas patriarcais. “A morte é uma viagem que nunca acaba, é uma perspectiva infinita de perigos. Se o peso que sobrecarrega a barca é tão grande, é porque as almas são culpadas”, diz Gaston Bachelard. É verdade. Há culpas político-patriarcais nesta terra histórico-ficcional (na destruição sem retorno vital e espiritual da flora e da fauna), no fogo sócio-ficcional e/ou mítico-ficcional (que devastou/devasta a floresta), no ar e nos rios do Seringal Manixi (poluídos pelos males do capitalismo sócio-substancial, dilatado, sem limites, impessoal, o capitalismo selvagem das grandes indústrias multinacionais), além dos perigos reais e irreais que estão por ali, insólitos, a inspecionar preconceituosamente a mítica e intrépida nação Numa.
Mas, quem é este personagem Pierre, o barqueiro/Caronte que por ora singra “igarapé acima, costeando os limites imprecisos da morte”? Seria ele um dos antigos Governadores do Amazonas? Ou, por ventura, o destemido avô Maurice Samuel, aquela venerada figura habilidosamente heroicizada nas tradicionais reuniões festivas da família Samuel? Ou, quem sabe, o próprio Albert Samuel (o pai brasileiro-boliviano-judeu-francês de Rogel Samuel que falava inúmeras línguas, inclusive, dialetos indígenas), o pai do escritor, um homem intimorato que navegava corajosamente naqueles furos insondáveis da região amazônica, em seu navio de nome mítico e magnificente, o navio Adamastor, de propriedade da família Samuel. Mobilizando-me, ainda, na busca de informações sobre a genealogia de Rogel Samuel, vou encontrar certamente uma ultra-lendária bisavó peruana, registrando o nobre sobrenome dos Cellis da antiga Roma, nome que chegou aos anais da família Samuel (família descendente de judeus franceses) por via da existência de um duque espanhol, o Duque de Cellis, “uma das mais nobres famílias de Espanha”, como o próprio escritor revela ficcionalmente, ao distinguir a figura de Pierre Bataillon, como o dono do Seringal Manixi e como o Conquistador da Amazônia.

Aquele homem magro, baixo (teria 1,60m de altura), cotidianamente elegante, empertigado, ereto, a cabeça levantada disfarçava a pequena estatura, bigodinho à Carlitos, com quem se parecia, altivo, mas sem ridículo, altaneiro, nobre, neto do Duque de Cellis, uma das mais nobres famílias de Espanha, que vinha da antiga Roma, inteligente, culto, falando fluentemente várias línguas, sempre com a mulher, D. Ifigênia Vellarde, católica, filha bastarda do nobre D. Angel Vellarde, mulher amante da Amazônia e do seu luxo selvagem, doceira, bordadeira, nos seus elegantes e simples vestidos de seda rosa cálido, com os dois grandes diamantes como grossas lágrimas caindo dos lóbulos das orelhas quais espantosos girassóis, (...), sim, era impossível conceber (...) como aquele fidalgo engastado na floresta, cercado de todo o luxo parisiense e de seus muitos livros, (...), como [pode se tornar] o Conquistador da Amazônia, do vasto império de látex (...), sim, aquele homem não se desorganizava moralmente nos seus abismos e nos seus extremos em transformar-se e sitiar-se o Seringal num campo de concentração durante a dominação Numa.

Não, agudissimamente obsedado, Pierre Bataillon herdara restos espirituais da monarquia de grandes reis, admirado por nações, ou obra-prima da literatura ─ como se esperasse o óbvio: que logo os Numas viriam prostrar-se e reverenciar o seu supremo caráter e estilo ─ as insólitas reações daquele homem, ser qualitativo, fora da indistinta massa humana, pertencente ao número dos que representam algo excepcional, que ilustram o nome com a imagem interna do uso de si, ligando-se à metafísica da criação de um super-homem singular e inscrito na atmosfera do fantástico cotidiano. 

Neste capítulo teórico-reflexivo, sobre a obra ficcional de Rogel Samuel, não é o poder capitalista primitivo familiar de Pierre Bataillon (aquele poder histórico-político visto páginas atrás), que se encontra aqui em exercício teórico-especulativo. Não. O que me movimenta analítico e fenomenologicamente é a imagem secreta, sublimada, elevada, posicionada ao mais elevado grau do pensamento mítico-ficcional, do barqueiro Caronte/Pierre Bataillon e/ou Caronte/Narrador Ribamar de Sousa. Sim. Aqui, o Pierre Bataillon incorporou a figura do lendário Barqueiro das regiões infernais, o mensageiro das tristes notícias e timoneiro dos mortos. Mas, da mesma forma, o narrador Ribamar de Sousa também poderá ser interpretado. Por que será?

A barca de Caronte será assim um símbolo que permanecerá ligado à indestrutível desventura dos homens. Atravessará as épocas de sofrimento. (...)

Em suma, o homem do povo, o poeta ou um pintor (...) reencontram todos em seu sonho a imagem de um guia que deve “conduzir-nos na morte”. O mito que vive sob a mitopéia [relato inacreditável] é um mito muito simples associado a uma imagem bem clara. Eis por que ele se mostra tão tenaz. Quando um poeta retoma a imagem de Caronte, pensa na morte como numa viagem. Revive o mais primitivo dos funerais. 

Penso que vale meditar o espaço sócio-substancial do Manixi rogeliano em confronto com a outra face fabulosa do mesmo Manixi, acrescentando um juízo mais elaborado sobre aquele estranho e longínquo Seringal Manixi e seu Igarapé do Inferno enquanto “limite do fim do mundo” e cemitério lendário. Para tal exigente exame analítico-fenomenológico, busco, em princípio, a dimensão verticalizante, interativa, do Manixi ficcional:

Desçamos agora a este mundo ignoto.

Habitavam ali, naquela ocasião, além da índia Maria Caxinauá, do bugre caboclo Paxiúba, o menino Mundico, e sua mãe, a cozinheira do Palácio, Isaura Botelho ─ mãe de Benito Botelho, que morava em Manaus, levado, como já disse, por Frei Lothar e entregue depois aos cuidados do Padre Pereira, do Internato Vassourinha. Lá estava também eu, o ainda jovem Ribamar de Souza, que viera de Patos em busca de seu irmão Antônio e de seu tio Genaro ─ ambos agora mortos. Também o índio Arimoque, cujas estórias fantásticas ainda circulam até hoje pela região. João Beleza, o coxo, e alguns homens da guarda ficavam no barracão, a certa distância. A maacu Ivete já estava casada com Antônio Ferreira e morava em Manaus, ─ Ferreira separado da sua Glorinha Lambisgóia, filha do Comendador Gabriel Gonçalves da Cunha, (...) 

Entre os moradores do Manixi, “além de Maria Caxinauá, morava o bugre Paxiúba”, o detentor de uma das poderosíssimas chaves para se penetrar no entrilhamento da floresta mítico-substancial desta narrativa ficcional do escritor Rogel Samuel. Sobre Paxiúba, não obstante o anterior capítulo VI, a ele dedicado, há ainda muito a se examinar, analítica e reflexivamente. Entretanto, por agora, move-me um interesse maior em refletir os papeis femininos da índia maacu Ivete (belíssima) e de Maria Caxinauá (a figura da morte), nas páginas desta entrançada rede de conhecimento, que é este romance de Rogel Samuel. Assim, digressivamente, estarei ocupada em reconhecer os desempenhos ficcionais destas importantes personagens femininas, neste romance aqui dignificado.
E eis a maacu Ivete se aproximando do advogado Antônio Ferreira, “agente e sucessor dos negócios” do sogro, no momento, fazendo-se convidar para o almoço no Palácio, uma vez que fora visitar Pierre Bataillon com a intenção de propor-lhe a compra do Manixi:

Bruscamente, incompreensivelmente, irrompendo com fúria e fulgor como Febo no horizonte ─ alta, forte, violenta, vigorosa, portentosa índia maacu, como uma deusa, surge, aparece, explode pela porta e tem os braços tatuados de vermelho e azul, quase nua, envolta num manto de seda prateada e em chamas brilhantes como o céu. Ela traz, redonda, espelhada nas mãos, como se fosse o próprio sol, uma bandeja de prata dourada, incandescente, impossível de ver, milhares de megatons acima do suportável, o serviço de café e licor, de bacará rosado ─ um choque, Ferreira fecha os olhos cego pelo relâmpago de diamante, e ela deposita a bandeja na sua frente, quase no seu colo, sobre uma mesinha de mármore brecha vermelho plantada ali sobre um tripé de ferro floreado, feminino, num gesto da oferenda de simbolismo francês, um ramo de musácea, exótica estrelícia de lá, de pétalas retas em forma de pássaros comprimidas em cristas laranjas de inspiração art-nouveau, viva e em cima da felicidade equilibrada entre impulsos elegantes, entre sutis meditações do nó, do sarugaku acrobático, aéreo ─ Ferreira está tonto e não consegue compreender a mais bela das mulheres, das amazonas maacu, bronze puro, Diana saída do Teatro Amazonas, visão adocicada das delícias na suntuosidade do panorama, e no contágio, no inebriante que recende a romã, a inhamuí, a panquilé, que deve ter saído do banho de rosas, cabelos na fragância do vento, força, paixão, limpeza e puro amor de um ser jovem, de vinte anos, que irradia viço, brilho, poder, Ferreira a vê da cadeira de palhinha, baixa, a força, a selvagem cor daquelas pernas longas.

O almoço fora servido por Maria Caxinauá, a índia parecia velha como a floresta. A fresca maacu [Ivete] expõe seus braços à imaginação do olhar. A seda acentua e escorrega como cola gosmenta. Naquela hora tudo escorre. Morna, preguiçosa, sensual. O igarapé esmalta em velocidade invisível, na passagem oleosa. Chama-se “igarapé” por economia geográfica, por seus estreitamentos, sua foz escondida entre duas grandes samaúmas. “Do inferno”, significa “dos Numas”, de onde vem, do leite do látex e dos índios. A concentrada riqueza. 

“Bruscamente”, brilhantemente valorizada, aparece Ivete a copeira do Palácio, a índia maacu. Ela aparece em todo o seu esplendor jovial para se contrapor à figura desprotegida, rebaixada, da índia Maria Caxinauá, uma personagem feminina marcada pelo sofrimento de seu povo. A deslumbrante índia Ivete não pertence à linhagem dos Caxinauás, ela representa a beleza selvagem de uma outra etnia, dispersada atualmente por algumas regiões do Amazonas ─ Alto Rio Negro, Yauareté, Pari Cachoeira, Papuri, Tiquié e outras localidades adjacentes ─ conhecida hoje como Macu-Hupdah (Macu- Yuhupdeh ou Uaupés-Japurá ou Nadahup). Por que uma representante feminina dos índios Maacus aparece divinizada, nesta narrativa de Rogel Samuel, se todos os índios do Seringal são escravos de Pierre Bataillon? A designação tribal Macu, segundo informes indígenas, quer dizer “bichos”, ou índios que falam uma língua até bem pouco tempo ágrafa (um dialeto indígena colombiano). Possivelmente, a maacu Ivete se encontra ali como simples serviçal do Palácio Manixi, e não como plenipotenciária de tribos espoliadas. Ou, os Maacus, assim como os Caxinauás, foram/são escravos do Coronel, mas, por obra e graça do Destino Grego, a maacu Ivete conseguiu, com o seu belo semblante mítico e suas telúricas formas, fintar seu adversário? Seria porque os Maacus também são originários das mitologizantes e iluminadas reservas colombianas de pescadores indígenas, indígenas estes que em outros tempos se posicionaram como culturalmente nômades? A maacu Ivete (uma índia nômade?) possui um porte nobre. É uma “deusa” naquele fabuloso recinto. Os Palácios míticos grandiosos, por exigências históricas, foram/são moradias de deuses ou de demônios. Ou moradas de culpados espíritos vagantes. A índia maacu Ivete por enquanto é uma das deusas do séqüito do supremo caudilho-mandatário Pierre Bataillon, no momento personagem mitificado. Ivete é uma deusa solar à moda das silvícolas antilhanas, reinando em cenário europeizado, mas, não será para sempre. A índia Maria Caxinauá também já foi uma entre as muitas beldades imensuráveis desta dimensão extra-real, apenas, por um triste motivo inafiançável, caiu em desgraça, envelheceu precocemente, e perdeu o brilho. Entretanto, as duas índias representam um drama: “o drama do dia e da noite”, se me vejo aqui às voltas com as inferências filosóficas de Gaston Bachelard.

Todos os heróis são solares; todos os deuses são deuses da luz. Todos os mitos contam a mesma história: o triunfo do dia sobre a noite. (...).

Na teoria mítica de Ploix [Nota de Gaston Bachelard: Charles Ploix, La nature et lês dieux), todos os deuses, mesmo os que vivem sob a terra, porque são deuses receberão uma auréola; virão, ainda que por um dia, ainda que por uma hora, participar da alegria divina da ação diurna que é sempre uma ação brilhante. 

O instante narrativo do narrador de Rogel Samuel, por ora, exige o aparato do brilho mítico. A maacu Ivete, a copeira da bandeja de prata incandescente, como deusa propensa a reinar em todos os elementos, recebeu uma alegre “auréola” temporária, e uma ígnea matéria (temporariamente apaziguada, não letal), para iluminar um trecho da narrativa, repleta de sofrimentos históricos. Ela irrompeu “com fúria e fulgor”, exigindo para si um contraponto, apenas para realçar aviltadamente a figura lunar de Maria Caxinauá. Todas as palavras do parágrafo, valorizando a índia Ivete e valorizando o ambiente sexualizado, foram “pescadas” cuidadosamente dos míticos rios diurnos, com suas águas ensolaradas, porque, a noturna figura feminina, principal, há muito, já caíra em ostracismo, já habitava a “meia-noite psíquica” do escritor, necessitando, por tal motivo, de um sol extraordinário que a iluminasse. A maacu Ivete foi instada, no trecho narrativo, a ser esse sol, foi convidada a “participar da alegria divina da ação diurna que é sempre uma ação brilhante”. O dia estava aprazível, magnífico, e Antônio Ferreira, o comensal solicitado para o régio almoço de Bataillon, merecia, no ato, uma visão/aparição fulgorosa. Foi então que a índia Ivete apareceu. Não é o fogo mítico um sinal de transformação narrativa? O sol não é, portanto, um poderoso símbolo do fogo mitificado? “O igarapé esmalta em velocidade invisível”, porque o Sol, “o Febo no horizonte”, está ali, naquele momento, a iluminar-lhe.
E eis a índia Maria Caxinauá, o contraponto infelicitado da maacu Ivete, se aproximando, como se fosse uma personagem das trevas, para servir o almoço ao convidado Antônio Ferreira:

Lentamente a porta se abriu e a Caxinauá apareceu. (...).

Os ásperos, compridos cabelos ensombravam a face com a figura da morte as pupilas eram dadas por incompreensível aura branca, um espantoso horror. Nariz aquilino, cigano. Pele bronze escuro queimado e fosco, amassado como papel. Sujo, longo vestido azul, rasgado num flanco, sem cintura, arrastando-se no chão como uma louca num hospício. Observada à distância, era a concentração do Ódio. De perto, era o Medo, o incontrolável Pavor, olhos bem abertos. As faces murchas indicavam que perdera todos os dentes, as sobrancelhas eram ralas. Mas aquela mulher não era uma velha! Subitamente se deixava ver! A face tem arrogância, desprezo, desafio, o olhar perigo, o veneno, pensou Ferreira, apertando o laço da gravata. Hostil, aquela existência silenciosa e animal concentrava-se em si mesma, refluía em si, como serpente. Desde aquela noite Ferreira a teme. Vê a Inimiga. Pois a Caxinauá é a vingança acumulada, petrificada. Toda a multidão inumerável de índios massacrados reterritorializava-se naquele corpo. Todos os torturados, os banidos, os exterminados pela humanidade européia, os saqueados, desculturados se cartografam ali, na pessoa física e individual de Maria Caxinauá. 
A Lua, em qualquer de suas aparições semanais, insólita, noturna e representativa de mistério, poderá ser refletida como “a figura da morte”. Não é a Maria Caxinauá a “figura da morte”? Não é a noturna Lua que tem suas fases distintas, às vezes se esconde, às vezes aparece pela metade, outras vezes, revela-se em todo o seu esplendor, quando iluminada inteiramente pelo diurno Sol? Não são suas pupilas, digo, as pupilas de Maria Caxinauá (“dadas por incompreensível aura branca”) referentes lunares? Não é a Lua o signo inconteste dos lunáticos? Maria Caxinauá, por ventura, não poderá ser interpretada como referencial mítico-lunar? Não é a assombrada noite, dignificada pela Lua Cheia principalmente, um reposteiro de ódio, medo e incontrolável pavor? Maria Caxinauá é o símbolo do ódio reprimido das inúmeras tribos tragicamente pacificadas por europeus, naqueles sítios amazonenses, símbolo do “exército de massas proletárias”, originárias de todos os “índios massacrados no Brasil” (os verdadeiros donos deste imenso país). E eis novamente a minha apreciação teórico-reflexiva aderindo-se às “lágrimas”/palavras de Rogel Samuel: “vinte milhões de índios massacrados no Brasil se corporificavam ali, no gesto cego de Maria Caxinauá” . Mas, por enquanto, surgem perguntas: Qual é o papel de Maria Caxinauá nesta narrativa rogeliana? A representação de uma “multidão inumerável de índios [amazonenses] massacrados”? As respostas virão em seu devido tempo.
De Maria Caxinauá, assim como de Paxiúba, há muito para refletir. Entretanto, lembro-me, neste instante dinamizado (à moda bachelardiana) de que há outros personagens importantes, sitiados naquele “limite do fim do mundo”. Dali, todos escaparam para a “ilimitação” da esfera universal, um deles foi o Benito Botelho, filho de Isaura, a cozinheira do Palácio. Pelo altíssimo valor ficcional de Benito, busco a importância da cozinheira Isaura, no entrelaçar narrativo:

Os curumins brincam na ubá atracada. Fecham o nariz com dois dedos, pulam de pé. Depois correm pela margem. Estrídulos, incessantes, como um bando de periquitos. Mundico, o maior, é filho de Isaura, cozinheira do Palácio. Ela tem dois filhos de pais diversos. O segundo filho não está ali. Chama-se Benito Botelho e está em Manaus. Benito foi o maior intelectual amazonense. Quando menino, atacado de varíola, Benito foi levado por Frei Lothar, que se afeiçoou a ele. Acabou criado no Vassourinha, orfanato do Padre Pereira, pois Frei Lothar nunca parava muito tempo em Manaus. 

Eis a grande importância da cozinheira Isaura: ser a mãe do maior intelectual de Manaus, a Isaura cozinheira, aquela que também residiu nas delimitações do Igarapé do Inferno. Benito nasceu ali, dentro dos limites do Seringal Manixi, enquanto lugar infernal. Mas, no preciso momento narrativo, o Benito, aquele que “foi o maior intelectual amazonense”, estava a residir em Manaus, longe das terras de Pierre Bataillon e de seu Igarapé do Inferno. Mas, quem é o Benito Botelho? Como Pierre Bataillon pode permitir a saída do filho de sua escrava-cozinheira dos limites de suas terras e, com isto, propenso a se tornar “o maior intelectual de Manaus”? Comentarei a sua importante atuação posteriormente. Por ora, outro habitante ficcional do Manixi e seu Igarapé infernal exige a minha atenção. Necessito conhecer um outro digno morador da prisão-reserva de Pierre Bataillon: o índio Arimoque.
O índio Arimoque ─ possivelmente, um passageiro personagem ficcional ─ é citado apenas uma vez na extensão geográfico-narrativa do Seringal Manixi, mas sua presença lendária realça-se imensuravelmente, alcançando o plano ilimitado das palavras não-ditas. A sua rápida aparição põe-se em evidência justamente porque, assim como um meteoro brilhantíssimo passando pela terra, a lembrança de seu halo monumental continua a iluminar o espaço narrado. Por que um índio lendário, poderoso, se tornou “prisioneiro” dos fúnebres limites do Seringal? Seria ele também um representante da tribo dos Caxinauás pacificados? Se existiu realmente, sua fama ficou reservada por via oral apenas para privilegiados amazonenses. Nas lendas indígenas, conhecidas textualmente, não há o nome deste índio, assinalado rapidamente no romance de Rogel Samuel.

 Lá estava também eu, o ainda jovem Ribamar de Souza, que viera de Patos em busca de seu irmão Antônio e de seu tio Genaro ─ ambos agora mortos. Também o índio Arimoque, cujas estórias fantásticas ainda circulam até hoje pela região. 

O índio Arimoque só aparece neste parágrafo. No entanto, posso afiançar que sua rápida menção possui importância capital no desenrolar narrativo. Diz Rogel Samuel: “Suas histórias fantásticas circulam até hoje pela região”. Com a permissão do relato, vou buscá-las por meio de uma aproximação histórica intuitiva, não autorizada cientificamente.
Examinando informações generalizadas sobre os diversos nomes de tribos da região amazônica mencionadas na obra de Rogel Samuel ─ principalmente das que se assemelhassem à possibilidade de o nome do índio Arimoque ser um patronímico, denunciando assim a sua origem genética ─ e procurando semelhanças fonéticas entre as grafias encontradas, avistei alhures uma referência aos índios Aruaques (comedores de farinha), também conhecidos por Kali’na ou Caraíbas. Esses Aruaques (ou Aruakes ou Arahuaco em espanhol), mesmo fazendo parte dos grupos indígenas do Brasil, são oriundos de outras localidades tais como Flórida (atualmente, região comandada pelos Estados Unidos da América do Norte), Porto Rico, Cuba, Antilhas, Bahamas, na cadeia secundária da Cordilheira dos Andes, e outros tantos e inúmeros locais da América do Sul. Os Aruaques são lendários, por isto obriguei-me a sinalizar uma aproximação genética deles com o índio Arimoque, da narrativa ficcional de Rogel Samuel. Possivelmente, o escritor optou por espécie de corruptela semântica para nomeá-lo rapidamente, em um criativo simulacro lingüístico. Não é a ficção pós-modernista a arte de imaginar o real? E, por ventura, a crítica literária não deveria se posicionar de acordo com o objeto estudado?
Os Aruaques, historicamente, foram os primeiros silvícolas que tiveram contato com o branco europeu. Eram índios pacíficos e, ao longo da história da colonização européia, das três Américas, desde a incursão de Colombo, em terras americanas do norte e da colonização dos espanhóis e portugueses, em terras americanas do Sul e América Central, foram transformados em cativos e muitos foram exterminados, por vias de genocídios e doenças do homem branco invasor. Entretanto, por meio de diáspora gentílica, tornaram-se lendários ao longo do segundo milênio. Assim reflito o personagem Arimoque de Rogel Samuel, “cujas estórias fantásticas ainda circulam até hoje pela região”: por intermédio de corruptela lingüística, os variados nomes indígenas Aruaque, Aryauak, Arimaque poderiam significar também o Arimoque rogeliano, ou seja, o apelido fixado no romance, e, interativamente, se associarem ao patronímico aqui realçado. Eis uma nomeação ficcional de capital importância. Por intermédio dela, busquei o reconhecimento de um dos maiores ramais indígenas do Brasil e adjacências.
XI - Ribamar de Sousa: O Ficcional Personagem-Representante do Capitalismo Decadente da Cidade de Manaus

Naquela época a Amazônia estava mudada. A recessão era grande, mas em Rio Branco havia 250.000 cabeças de gado, entre balcedos de murerus, aguapés e canaranas, vicejando a riqueza entre alagados e mondongos.

Nenhuma criada estava próxima. Foi a própria D. Mariazinha de Abreu que, levantando-se solene da cadeira, foi atender a quem batia à sua porta.

─ Bons dias, dona ─ disse-lhe aquele caboclo mal vestido, calças de brim, camisa de algodão cru de dura goma, chapéu de palha na cabeça e mala de madeira enrolada na mão. O homem tirara o chapéu para falar com ela.

─ A senhora sabe onde mora o Seu Juca das Neves?

Quando D. Maria viu aquilo empertigou-se, mas fez-se muito cortês ao responder, pois era assim que tratava aos que lhe ficavam abaixo de sua condição social.

─ Ao lado ─ disse, e retirou-se, vindo sentar-se diante da negra Sebastiana Vintém.

Era a senhora mais fina, mais elegante e mais bonita da época, sim, que é assim mesmo, conforme o digo, este narrador.

E aquele homem era Ribamar (d’Aguirre) de Sousa. 

Nestas últimas linhas do capítulo ONZE: RIBAMAR, quem se apresenta é o segundo narrador (aquele que somente agora se manifesta, para falar sobre o primeiro). Este segundo narrador é o verdadeiro alter ego do escritor amazonense Rogel Samuel, ou seja, aquele que ficou incógnito nos movimentados bastidores ficcionais de O Amante das Amazonas, enquanto o primeiro personagem-narrador Ribamar de Sousa, representante dos oprimidos retirantes, fugitivos da seca nordestina e escravizados por classes sociais e políticas poderosas, contava a sua própria história: da saída de Patos, Estado de Pernambuco, ao emprego no Palácio Manixi, em um Seringal perdido do Amazonas, como secretário particular de D. Ifigênia Vellarde.
O primeiro personagem-narrador, o Ribamar, por enquanto, não poderá seguir como o condutor do relato, pela simples razão de que agora ele se postará como o personagem principal, submetido ao olhar perscrutante do segundo e genuíno narrador pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração.
O que ocorreu nesta terceira fase do romance foi simples e criativo: o Narrador principal precisou de uma nova chave para penetrar às fortificações da Cidade e, logo a seguir, percorrê-la. Ora, este novo invólucro ficcional já não era um espaço autenticamente mítico, portanto, as anteriores chaves já não se encontravam disponíveis. Os “parentes” de Ribamar já estavam mortos e o lendário bugre Paxiúba ficara temporariamente para trás. A diretriz ficcional pós-moderna/pós-modernista de Segunda Geração determinou um segundo narrador (aquele que buscou/buscará esta necessária chave, para finalizar o relato), narrador “este” que esteve sublinearmente influente desde o início do romance. A assertiva rogeliana “conforme o digo, este Narrador” não deixa dúvida quanto à renovada determinação de transformação narrativa. Para o correto entendimento do que desejo a partir daqui refletir, busco outras palavras explicativas, ou seja, para que o Ribamar de Sousa, submetido a uma diferenciada fase de transição, pudesse continuar atuando, agora como personagem-representante da burguesia manauara pós-borracha, outro narrador (“este narrador”) teria de falar por ele, mesmo que aparentemente duplicado nas linhas finais, com a impressão ficcional de junção de ambos, como se fossem apenas um único narrador, propiciando a despedida do primeiro.
Entretanto, antes de minha reflexiva incursão nos bastidores sócio-políticos da cidade de Manaus envolvendo-me, por meio do relato rogeliano, com a já aproximada ─ e instigante ─ elevação sócio-política do neo-Ribamar de Sousa, necessito reconhecer esta efetiva voz narrativa que se apresenta. Quem é “este” novo narrador? Quem é “este” narrador diferenciado (que seria um personagem como outro qualquer, como diria Roland Barthes, se eu não pensasse o contrário), o qual, ao falar de D. Maria de Abreu e Souza, a personagem feminina que, no momento, centraliza o capítulo, o faz com elevada ternura?

Quando se sonha com a casa natal, na extrema profundeza do devaneio, participa-se desse calor inicial, dessa matéria bem temperada do paraíso material. (...).

É graças à casa que um grande número de nossas lembranças estão guardadas; e quando a casa se complica um pouco, quando tem um porão e um sótão, cantos e corredores, nossas lembranças têm refúgios cada vez mais bem caracterizados. A eles regressamos durante toda a vida, em nossos devaneios. Um psicanalista deveria, pois, atentar para essa simples localização das lembranças. (...) de bom grado daríamos a essa análise auxiliar da psicanálise o nome de topoanálise. A topoanálise seria então o estudo psicológico sistemático dos locais de nossa vida íntima. Nesse teatro do passado que é a memória, o cenário mantém os personagens em seu papel dominante. Por vezes acreditamos conhecer-nos no tempo, ao passo que se conhece apenas uma série de fixações nos espaços da estabilidade do ser, de um ser que não quer passar no tempo; que no próprio passado, quando sai em busca do tempo perdido, quer “suspender” o vôo do tempo. Em seus mil alvéolos, o espaço retém o tempo comprimido. É essa a função do espaço. 

“Quando se sonha com a casa natal”, “participa-se desse calor inicial, dessa matéria bem temperada do paraíso material”. O início do capítulo é, com certeza, uma saudosa declaração de amor filial a uma venerada senhora (já falecida) e, sem dúvida, é também um retorno à casa primordial (a casa da avó) e à casa onírica (a Cidade de Manaus). O segundo narrador, neste renovado interregno, antes de reencontrar a “casa onírica”, sai em busca da “casa primordial” (“sai em busca do tempo perdido”) e, por um momento, vai ao encontro da inesquecível casa da infância e adolescência (a casa da avó materna). O narrador deseja “suspender o vôo do tempo”, reencontrar a “personagem” amada, a “personagem dominante”, mas não poderá ser recebido como a um filho pródigo pela Grande Mãe, simplesmente porque sua face ficcional se disfarça com a aparência subserviente de seu duplo. A venerada representante da figura materna não o reconheceu. (“Quando D. Maria viu aquilo empertigou-se, mas fez-se muito cortês ao responder, pois era assim que tratava aos que lhe ficavam abaixo de sua condição social”). A Grande Mãe foi muito cortês e ofereceu-lhe o direcionamento pedido (─ “ao lado”), mas não o convidou a reentrar na casa primordial, porque, verdadeiramente, o alter ego Ribamar de Sousa foi designado pelo ficcionista para substitui-lo na recuperação gloriosa de sua outra casa inesquecível, a casa onírica, a Cidade que, no momento, já sofria os estragos da decadência pós-borracha. Por tal motivo, o personagem Ribamar de Sousa fez/fará a aproximação do segundo narrador, primeiramente com a Grande Mãe (o destaque da “Casa Primordial”) e, posteriormente, com a Grande Casa do Passado (a Cidade de Manaus), a “Casa Onírica”, permitindo-lhe a necessária retomada, para que, páginas adiante, ele pudesse interagir com o meio sócio-político de seu pretérito notável.

Ela ─ e eu me lembro como se fosse hoje ─ não gostava de pintar as unhas pela manhã. Preferia pintá-las à tarde, pois de manhã, apesar da legião de criadas, tinha sempre muito o que fazer naquela casa. (...).

Sim ─ ela não gostava de pintar as unhas pela manhã. D. Maria de Abreu e Souza, ainda jovem e bonita, conforme a conheci, bela, elegante, morava na Rua Barroso, numa casa cujos fundos davam para o Igarapé do Aterro. D. Maria ia, naquela tarde, a um aniversário, e mandara um moleque chamar a negra Sabá para corrigir o esmalte das unhas, e já marcara hora na Mezzodi, a cabeleireira da época.

Foi quando bateram à porta. (...).

Nenhuma criada estava próxima. Foi a própria D. Mariazinha de Abreu que, levantando-se solene da cadeira, foi atender a quem batia  à sua porta. 

Sobre “a casa onírica”, diz Gaston Bachelard:

Uma casa onírica é uma imagem que, na lembrança e nos sonhos, se torna uma força de proteção. Não é um simples cenário onde a memória reencontra suas imagens. Ainda gostamos de viver na casa que já não existe, porque nela revivemos, muitas vezes sem nos dar conta, uma dinâmica de reconforto. 

Se examinássemos o caráter social das imagens (...). Esse exame determinaria uma outra camada das imagens, a camada do superego. Aqui a casa é o bem da família. Ela é encarregada de manter a família. (...) desse ponto de vista, é tanto mais interessante por estudar a família em seu conflito de gerações entre um pai que deixa periclitar a casa e o filho que devolve à casa solidez e luz. Em tal caminho, vai-se substituindo aos poucos a vontade que sonha pela vontade que pensa, pela vontade que prevê. Chega-se a um reino de imagens cada vez mais conscientes. 

Oh, ruturas rogelianas! Dona Mariazinha de Abreu e Souza (a dona da casa primordial ficcional, “o bem da família” materna Abreu e Souza), certamente, é uma Grande Mãe inesquecível, proprietária também de uma casa inesquecível às lembranças e recordações de quem narra (“tinha sempre muito que fazer naquela casa”). D. Mariazinha de Abreu ─ provavelmente, um símbolo da casa materna do escritor ─ é uma das inúmeras vozes narrativas que, nesta terceira fase do romance, colaboraram com o narrador principal, incluindo evidentemente a já assinalada Sabá Vintém, a manicure, aquela que “sabia de todos os escândalos da cidade, da vida íntima de todas as famílias” do lugar. Na casa inesquecível do escritor amazonense Rogel Samuel, com seus personagens e recantos secretos, como diria Gaston Bachelard, com toda a certeza, D. Mariazinha de Abreu ocupava/ocupou lugar de destaque no coração de quem narra. Repenso, reforçando o já anteriormente mencionado, que D. Mariazinha de Abreu personificou a recriação ficcional da muito venerada e amada avó materna do escritor.

O mundo real apaga-se de uma só vez, quando se vai viver na casa da lembrança. De que valem as casas da rua quando se evoca a casa natal, a casa de intimidade absoluta, a casa onde se adquiriu o sentido da intimidade? Essa casa está distante, está perdida, não a habitamos mais, temos certeza, infelizmente, de que nunca mais a habitaremos. Então ela é mais do que uma lembrança. É uma casa de sonhos, a nossa casa onírica. (...).

Sim, o que é mais real: a própria casa onde se dorme ou a casa para onde se vai, dormindo, fielmente sonhar? Eu não sonho em Paris, neste cubo geométrico, neste alvéolo de cimento, neste quarto com venezianas de ferro tão hostis à matéria noturna. Quando os sonhos me são propícios, vou para longe, numa casa na Champagne, ou nalgumas casas onde se condensam os mistérios da felicidade.

Dentre todas as coisas do passado, é talvez a casa que se evoca melhor, como diz Pierre Seghers [nota de Bachelard: Pierre Seghers, Le domaine public, p. 70], a casa natal “estar na voz”, com todas as vozes que se calaram: Um nome que o silêncio e que as paredes me devolvem, / Uma casa para onde vou sozinho chamando, / Uma estranha casa que está em minha voz. 

Quando o sonho se apodera assim de nós, temos a impressão de habitar uma imagem. (...) o tempo passa de um lado e de outro, deixando imóvel esta ilhota da lembrança. O onirismo arraigado assim localiza de algum modo o sonhador. (...).

Quando se sabe dar a todas as coisas o seu peso justo de sonhos, habitar oniricamente é mais do que habitar pela lembrança. A casa onírica é um tema mais profundo que a casa natal. Corresponde a uma necessidade mais remota. Se a casa natal põe em nós tais fundações, é  porque responde a inspirações inconscientes mais profundas ─ mais íntimas ─ que o simples cuidado de proteção, que o primeiro calor conservado, que a primeira luz protegida. A casa da lembrança, a casa natal, é construída sobre a cripta da casa onírica. Na cripta encontra-se a raiz, o apego, a profundidade, o mergulho dos sonhos. Nós nos “perdemos” nela. Há nela um infinito. 

Bachelard sonhou, em Paris, com uma casa da região vinícola de Champagne, sua sempre indelével terra natal. O escritor João Guimarães Rosa, nascido em Cordisburgo e cidadão do mundo, sonhou com o Sertão de Minas Gerais, sua inesquecível casa onírica. Juan Carlos Onetti criou uma entrópica cidade, Santa Maria, para representar os problemas citadinos de seu país, o Uruguai, a sua indiscutível “casa onírica”. Rogel Samuel sonhou e sonha no Rio de Janeiro e em suas viagens pelo mundo com os monumentais Palácios da Era da Borracha (recriou-os ficcionalmente por intermédio do Palácio Manixi) e com as casas de sua infância e adolescência, onde se condensaram/condensam os mistérios de uma antiga felicidade”. A casa de D. Mariazinha de Abreu é mais do que a casa natal do escritor Rogel Samuel, é representante da Cidade amada, Manaus, sua casa onírica, a casa dos sonhos felizes (por vezes, infelizes), “onde se condensam os mistérios da felicidade” (também, os mistérios dos momentos infaustos). Esta “casa onírica” rogeliana, se revela por intermédio de “inspirações inconscientes profundas”, originárias do convívio infanto-juvenil com uma avó materna especialíssima, extremamente idolatrada, e, ao mesmo tempo, com uma externa realidade patriarcal angustiante. “O onirismo arraigado assim localiza de algum modo o sonhador”, e este sonhador não poderá se revelar apenas como um narrador, que, ao longo da narrativa, se posiciona simplesmente como um personagem como outro qualquer (Roland Barthes). Este segundo narrador, não, não será jamais um personagem como outro qualquer. Ele é o porta-voz da consciência interativa do escritor Rogel Samuel. No capítulo ONZE: RIBAMAR, o mundo real e o mundo mítico se desvanecem para cederem o lugar à inesquecível casa onírica deste escritor amazonense aqui reverenciado, e esta casa e sua proprietária D. Mariazinha de Abreu, ternamente evocada, foram um poderoso alicerce na posterior realidade íntima e/ou intelectualizada do escritor. Por tais razões, assinalo o romance O Amante das Amazonas como um enérgico retorno à terra natal, ou uma retomada dos antigos valores da terra natal.

Pode-se encontrar a mesma direção para os valores inconscientes em imagens da volta à terra natal. A própria noção de viagem tem um outro sentido se lhe acrescentamos a noção complementar de volta à terra natal. Courbet espantava-se da instabilidade de um viajante: “Ele vai ao Oriente. Ao Oriente! Então ele não tem terra natal?”

A volta à terra natal, o regresso à casa natal, com todo o onirismo que o dinamiza, foi caracterizado pela psicanálise clássica como uma volta à mãe. (...). Seria interessante apreender bem todas as imagens do regaço materno e examinar o pormenor de substituição das imagens. Veríamos então que a casa tem seus próprios símbolos, e se devolvêssemos toda a simbólica diferenciada do porão, do sótão, da cozinha, dos corredores, do depósito de lenha..., perceberíamos a autonomia dos diferentes símbolos, veríamos que a casa constrói ativamente seus valores, que reúne valores inconscientes. O próprio inconsciente tem uma arquitetura de sua predileção. 

Para mostrar a decadência da Cidade amada e provar que os “ratos” do capitalismo selvagem a invadiram, a corroeram, levando-a ao isolamento, à falência, tornou-se necessário, ao segundo narrador, apresentar, aos leitores, primeiramente, a formosura de sua Grande Mãe, a principal habitante, e só posteriormente a beleza de seu lugar de origem. Não havia/há limites geográficos para a situação desta casa materna (“morava na Rua Barroso, numa casa cujos fundos davam para o Igarapé do Aterro”), porque a casa, da Rua Barroso, era ampla e bem arrumada (para conservá-la, sua proprietária contava com “uma legião de empregadas”), portanto, é representativa do local da casa primordial e de todas as ruas da amada Manaus. Os fundos da casa “dava para o Igarapé do Aterro”, um símbolo de projeção social, já que foi nomeado pelo ficcionista. Certamente, o local do Igarapé do Aterro, à época, não era simplesmente um lugar comum. “Para os valores inconscientes em imagens da volta à terra natal”, no mencionado Igarapé se concentram todos os outros que se entrelaçam pela cidade de Manaus.

Mãe e casa, eis os dois arquétipos (...). Seria muito simples se o maior dos dois arquétipos, se o maior de todos os arquétipos, a Mãe, apagasse a vida de todos os outros. No trajeto que nos leva de volta às origens, há primeiramente o caminho que nos restitui à infância, à nossa infância sonhadora que desejava imagens, que desejava símbolos para duplicar a realidade. A realidade materna foi multiplicada imediatamente por todas as imagens de intimidade. A poesia da casa retoma esse trabalho, reanima intimidades e recobra a grande segurança de uma filosofia do repouso. 

A prosa ficcional de Rogel Samuel, repleta de matéria lírica (atenção: “matéria” lírica, não pertence ao Gênero Lírico), reanimou intimidades e recobrou a grande segurança da continuidade narrativa. Desse modo, pelo meu ponto de vista, acrescido das informações filosóficas bachelardianas, a partir da casa de D. Mariazinha (símbolo da avó-mãe querida) se dilatou/se dilata todo o amor do ficcionista por sua cidade natal (a Cidade natal do sensibilíssimo escritor-“amante das amazonas”). Para recuperar ficcionalmente a chave e penetrar no recinto sagrado da Cidade de suas origens (infelizmente, já em decadência), o ficcionista obrigou-se a pedir licença ao arquétipo maior de sua infância e adolescência, sua Grande Mãe. E sua Mãe amada reinava na Cidade amada. (“Era a senhora mais fina, mais elegante e mais bonita da época, sim, que é assim mesmo, conforme o digo, este narrador”). Para falar ficcionalmente com o ícone venerado, o seu outro eu, o Ribamar de Sousa, tirou o chapéu, em sinal de respeito ao símbolo maior da anterior duração. Para retornar à verdadeira “casa onírica” do passado, a Cidade de Manaus (há muito, a Casa/Cidade estava fechada para ele), o ficcionista manauara primeiramente buscou a vital proteção de uma imagem materna. Por um momento, a belíssima aparição do arquétipo maior quase apagou a vida dos outros personagens. Foi por um triz.

A intimidade da casa bem fechada, bem protegida, reclama naturalmente as intimidades maiores, em particular a do regaço materno, e depois a do ventre materno. Na ordem da imaginação, as pequenas imagens reclamam as grandes. Toda imagem é um aumentativo psíquico; uma imagem amada, acarinhada, é um penhor de vida acrescida.

Se prestássemos mais atenção às imagens incoativas, imagens certamente muito ingênuas, que ilustram os primeiros valores, nos lembraríamos melhor de todos aqueles cantos sombreados da grande morada onde nossa pessoa “lucífuga” encontrava o seu centro de repouso, lembrança do repouso pré-natal. Mais uma vez, vemos que o onirismo da casa necessita de uma pequena casa dentro da grande para que recobremos as seguranças primárias da vida sem problemas. (...) todos os lugares de repouso são maternais. 

É a Cidade de Manaus, a verdadeira e inesquecível “habitação onírica” do segundo narrador de Rogel de Souza Samuel, “a casa de intimidade absoluta, a casa onde [ele] adquiriu o sentido da intimidade”. Por isto, todos os personagens do lugar têm algo a narrar: a bibliotecária Estela de Sousa (Estela de Sousa Samuel, mãe do escritor, com pouquíssimas palavras pós-modernas/pós-modernistas, brilhantemente homenageada), a manicure Sabá Vintém (representante de todas as manicures do lugar, aquelas que sabiamente sabem conviver com suas poderosas e luxuosas clientes), o homossexual Fernandinho de Bará (o conhecedor dos pecadilhos sexuais “daqueles burgueses cheios de culpa que [o] freqüentaram” ), e Benito Botelho, o maior intelectual de Manaus, o filho da cozinheira Isaura, aquele que, algures, estará, à moda de detetive de novela policial, às voltas com o sumiço de Zequinha Bataillon ─, ansioso por descobrir o mistério de seu desaparecimento. Todavia, se houve cooperadores importantes, para o desenvolvimento criativo do relato ficcional rogeliano, certamente, nesta terceira parte do romance a colaboração da manicure negra Sebastiana Vintém propaga-se como uma das mais relevantes.

Entretanto a manicure veio cedo, que estava com a tarde toda tomada (afinal, não era seu dia). Sebastiana ─ Sabá Vintém, a manicure ─ era uma negra barbadiana conhecidíssima em Manaus, servia a todas as senhoras da sociedade com seus trabalhos impecáveis ─ pintava florezinhas nas unhas das senhoras, e coraçõezinhos nas moças. Sabá era mesmo poderosa, graças a suas relações. Sabia de todos os escândalos da cidade, da vida íntima de todas as famílias, e por isso Sabá Vintém era o porta-voz municipal: amantes, abortos, gravidezes ocultas ─ tinha a maneira especial para tudo descobrir pois discreta compunha fragmentos de conversas ouvidas em várias casas, pedaços que ela costurava e armava, como um policial atento. Por isso se tornava preciosa para as madames, que a custas de boas gorjetas faziam-na falar, passando-se por boba, fazendo-se confidente de todas, sem se indispor com nenhuma, a todas dando a entender que era a preferida, que só a ela confidenciava o que sabia.

Os segredos manauaras foram revelados ao segundo narrador, o alter ego do escritor Rogel Samuel, com certeza, por intermédio da poderosa Sabá Vintém, “o porta-voz municipal”. No entanto, em todas as Urbes do Orbe, há muitos influentes porta-vozes municipais. Quem seria então a poderosa Sebastiana Vintém, esta passageira habitante da casa onírica do escritor Rogel Samuel? Generalizando, não seria ela o somatório de todas as mexeriqueiras de qualquer parte do mundo dito social (portanto, uma personagem universal)? Por qualquer motivo, só do conhecimento do escritor, a manicure tem a sua importância no desenrolar narrativo, pois, além de demonstrar, por contraste, a elevada posição social de D. Mariazinha, a sua presença ficcional permitiu a exteriorização de dois essenciais ambientes da inolvidável “casa imaginária” de Rogel Samuel: o interior (a principal casa da infância e adolescência) e o exterior (a cidade de Manaus).

Sonhamos com ela também como um desejo, como uma imagem que às vezes encontramos nos livros. Ao invés de sonhar com o que foi, sonhamos com o que deveria ter sido, com o que teria estabilizado para sempre nossos devaneios íntimos. (...). 

É a este sonho fundamental que chamamos de casa onírica. 

Uma das provas da realidade da casa imaginária é a confiança que tem um escritor de nos interessar pela recordação de uma casa da própria infância. Basta um sinal que atinja o fundo comum dos sonhos. 

Neste terceiro momento do romance O Amante das Amazonas ─ narrativa pós-moderna/pós-modernista de Segunda Geração ─, a casa onírica do escritor necessitou do elemento terra acasalado à água e dos devaneios do repouso aliados aos devaneios da vontade (ação) para se manifestar e apresentar aos leitores todos os seus recantos até então insondáveis. Quem seria melhor do que D. Mariazinha de Abreu para permitir a abertura da porta da Cidade de Manaus ao ex-retirante nordestino Ribamar de Sousa (ao primeiro alter ego telúrico do escritor), oferecendo-lhe a possibilidade de galgar futuramente os degraus da consideração social (universal)? A porta principal da Cidade estava ali, bem pertinho, “ao lado”. A casa dela, além de ficar situada na Rua Barroso, certamente um endereço importante da Cidade, “os fundos davam para o Igarapé do Aterro”, um sinal de que, por enquanto, o elemento que irá comandar o relato é a terra (por intermédio do Igarapé do Aterro), mas não uma terra firme, sólida, inquebrantável, mas sim uma terra (elemento firme) acasalada à água (elemento fluido, desordenado, entrópico, pós-moderno). A terra, como produtora de devaneios sócio-políticos, certamente unida à água (matéria eleita pelo ficcionista), direcionará, futuramente, a visão interativa do criativo sonhador mítico-ficcional das águas amazonenses. Ao longo de sua ficção, ele necessitou de outros elementos além da terra e da água, tais como o fogo e o ar, para demonstrar, a partir das questões propostas e/ou intuídas, o seu incomum amor pela terra natal. Naturalmente, ainda verei, em seus dinâmicos aspectos interativos, profundos, fundamentais, as intromissões desses dois elementos alternadores ─ o fogo e o ar ─ até ao final do relato.

Diante dos espetáculos do fogo, da água, do céu, o devaneio que busca a substância nos aspectos efêmeros não era de modo algum bloqueado pela realidade. Estávamos verdadeiramente diante de um problema da imaginação; tratava-se precisamente de sonhar numa substância profunda o fogo tão vivo e tão colorido; tratava-se de imobilizar, diante de uma água fugidia, a substância dessa fluidez; enfim, era preciso, diante de todos os conselhos de leveza que nos dão as brisas e os vôos, imaginar em nós a própria substância da liberdade aérea. Em suma, matérias sem dúvida reais, mas inconsistentes e móveis, reclamavam ser imaginadas em profundidade, numa intimidade da substância e da força. Mas com a substância da terra, a matéria traz tantas experiências positivas, a forma é tão manifesta, tão evidente, tão real, que não se vê claramente como se pode dar corpo a devaneios relativos à intimidade da matéria. Como diz Baudelaire: “Quanto mais a matéria é, em aparência, positiva e sólida, mais sutil e laborioso é o trabalho da imaginação”. [Nota de Bachelard: Baudelaire, Curiosités esthétiques, p. 317]. 

Inicialmente e rapidamente a terra do Estado de Pernambuco se fez presente no romance O Amante das Amazonas: Ribamar saíra da povoação de Patos, Pernambuco, “na madrugada do Natal de 1897”, levando na “mala de amarrado” apenas duas mudas de roupa, “com um Cosmorama onde se avistavam as paisagens de Manaus, Belém, Paris, Londres, Viena e São Petersburgo” . A palavra “madrugada”, no princípio da narrativa, assinala uma futura vida de realizações e glórias; o “Cosmorama”, representativo de uma Saga do Universo determinou o desejo de dilatação ficcional universal. Mas, houve a necessidade de se escalar a Serra da Borborema (ainda o elemento terra obstaculizante) para atingir a finalidade do relato, ou seja, para futuramente interagir com a profunda materialidade aquática da terra natal e elevá-la ao panteón literário. Até chegar a uma experiência ficcional positiva com a matéria eleita, tão “inconsistente e móvel”, muitos foram os obstáculos. Para que, ao final do relato, pudesse apresentar aos leitores as inconformadas decadências histórico-sociais da extração da árvore da borracha e da Cidade amada, o narrador rogeliano obrigou-se a uma interação profunda com as matérias compostas de sua primitiva realidade. Todas “reclamavam ser imaginadas em profundidade”, mas a matéria água exigiu um esforço maior. A “mala de amarrado” do primeiro Ribamar, encharcada de água de chuva e de lágrimas do narrador, transformou-se gradativamente em “mala de madeira”. Ao chegar em Manaus, o Ribamar de Sousa já trazia uma “mala de madeira enrolada na mão”, porque já não era um simples retirante, mas um Brabo Homem/(Personagem) da Floresta em busca de colocação na Cidade de Manaus (o representante ficcional daquele que saiu da Floresta para buscar colocação na Cidade Grande, no Mundo).
A partir dali, o Ribamar teria/terá de desenrolar a sua “mala de madeira” e transformá-la em arca de tesouro. Para esta repentina transformação, para esta diferenciada incursão ficcional nos redutos da Cidade, para a elevação social do personagem Ribamar, o segundo narrador levou os passos do primeiro até à soleira da porta de D. Mariazinha de Abreu, a única que poderia permitir-lhe a entrada triunfal no reduto do filho ausente, há muito, distanciado da casa materna.

─ Bons dias, dona ─ disse-lhe aquele caboclo mal vestido, calças de brim, camisa de algodão cru de dura goma, chapéu de palha na cabeça e mala de madeira enrolada na mão. O homem tirara o chapéu para falar com ela.

─ A senhora sabe onde mora o Seu Juca das Neves?

Quando D. Maria viu aquilo empertigou-se, mas fez-se muito cortês ao responder, pois era assim que tratava aos que lhe ficavam abaixo de sua condição social.

─ Ao lado ─ disse, e retirou-se, vindo sentar-se ao lado da negra Sebastiana Vintém.

Era a senhora mais fina, mais elegante e mais bonita da época, sim, que é assim mesmo, conforme o digo, este Narrador.

E aquele homem era Ribamar (d’Aguirre) de Souza.

Ribamar “tirara o chapéu para falar com ela”. Este diálogo entre Ribamar (d’Aguirre) de Sousa e D. Maria de Abreu finaliza o capítulo ONZE: RIBAMAR, distinguido como homenagem sentimental à casa inesquecível do escritor e à sua sempre relembrada proprietária. Contudo, significa, também, a apresentação do novo personagem Ribamar de Sousa, agora ostentando um original apelido (sobrenome) socialmente mais condecorado, um diferenciado “d’Aguirre”, onomatopaicamente representativo de um “ânimo belicoso”, propenso a lutas titânicas ao longo do caminho da independência financeira. A “mala de madeira enrolada na mão” de Ribamar de Sousa ainda levaria/levará algum tempo para transformar-se em arca de tesouro. Ribamar teria/terá ainda de trabalhar bastante, tornar-se sócio de Juca das Neves, tornar-se um representante da burguesia manaura, casar-se com a rica Diana d’Artigues, tornar-se político influente, para, a partir de todas essas mudanças de vida, alcançar, nos capítulos finais, a novidade da riqueza.
No capítulo seguinte DOZE: MANAUS, o Ribamar, a face ficcional do segundo narrador, foi ao encontro de seu grandioso futuro destino, mas o “Juca das Neves não estava” em casa, naquele momento, estava no “Armazém das Novidades”, um espaço ainda desconhecido ao novo personagem itinerante.

Juca das neves não estava. Uma cabocla velha lhe disse:

─ Está no Armazém.

─ Onde fica? Perguntou Ribamar.

A cabocla se espantou. Como poderia haver alguém que não soubesse onde era o Armazém das Novidades a famosa loja de Manaus? Mas respondeu:

─ Ali, na esquina, na Eduardo Ribeiro.

Ribamar desceu a Rua Barroso. Pegou a 24 de Maio pelas sombras das mangueiras que ali estavam desde há muitos anos. Eram mangueiras colossais que davam largas sombras verde-claro e que foram cortadas cinqüenta anos depois.

Sem pai nem mãe, nem parente algum de que tivesse notícia ─ sem mesmo nenhum amigo nem ninguém naquele mundo ─ Ribamar descia a rua 24 de Maio. Mas, em vez de se sentir só, estava leve e aberto às múltiplas possibilidades daquela cidade. Tudo dentro dele dizia que ele pisava aquele solo para vencer. 

“Ribamar desceu a Rua Barroso”, “desceu a rua 24 de Maio”, mas, “em vez de se sentir só, estava leve e aberto às múltiplas possibilidades daquela cidade. Tudo dentro dele dizia que ele pisava aquele solo para vencer”. Oh, ruturas rogelianas! Quantas e inúmeras vezes, depois de cansativas subidas íngremes, o escritor amazonense aqui realçado viu-se descendo algumas ladeiras do Rio de Janeiro, em direção ao Centro da Cidade, “leve e aberto às suas múltiplas possibilidades” e consciente, apesar dos inúmeros obstáculos, de que estava pisando vitoriosamente o solo carioca. Tal qual o escritor do romance O Amante das Amazonas, em durações próximo-passadas, na cidade do Rio de Janeiro, descendo a ladeira do Bairro de Santa Teresa, o personagem ficcional, o Ribamar, desceu a Rua Barroso, encantando-se com a Cidade de Manaus, mas quem se percebeu devaneando enquanto seu personagem saía em busca do Armazém das Novidades, foi o segundo narrador, alter ego do escritor Rogel Samuel.

Se, com um passo solitário, devaneando, numa casa que traz os grandes signos da profundidade, descemos pela estreita escada obscura que enrola seus altos degraus em torno o eixo de pedra, logo sentimos que descemos a um passado. Ora, para nós não há nenhum passado que nos dê o gosto de nosso passado, sem que logo se torne, em nós, um passado mais longínquo, mais incerto, esse passado enorme que já não tem data, que já não sabe as datas de nossa história.

Tudo então simboliza. Descer, devaneando, num mundo em profundidade, em uma casa que assinala a cada passo a sua profundidade, é também descer em nós mesmos. Se prestamos um pouco de atenção às imagens, às lentas imagens que se nos impõem nessa “descida”, nessa “dupla descida”, não podemos deixar de surpreender-lhe os traços orgânicos. Raros são os escritores que os põem no papel. Mesmo que esses traços orgânicos surgissem da pena, a consciência literária os rejeitaria, a consciência vigiada os recalcaria. [Nota de no 14 de Gaston Bachelard, op. cit.: 96: “A consciência literária é, no escritor, uma realização íntima da crítica literária. Escreve-se para alguém, contra alguém. Felizes são aqueles que escrevem, libertos, para si mesmos”.] E, no entanto, a homologia das profundezas impõe tais imagens. Quem pratica a introspecção é o seu próprio Jonas (...). 

No capítulo DOZE: MANAUS, o segundo narrador, enquanto consciência interativa do escritor (mas, felizmente, com uma criativa consciência não-vigiada), devaneando em seu mundo profundo, conduz seu personagem pelas ruas [entranhas, labirintos] de Manaus. Por sua vez, o Ribamar, descendo as Ruas de Manaus, secundado pelo segundo narrador, proporciona ao ficcionista e sua “consciência não-vigiada” (apesar de sua importante e fenomenológica “consciência literária”), um interativo retorno ao seu longínquo passado. Submetido ao “criatividade singular” de quem narra, e que conhece cada recanto da Cidade homenageada, o Ribamar terá de “descer” algumas das pouquíssimas ruas íngremes do Centro de Manaus, sombreadas por “mangueiras colossais” (“que ali estavam desde há muitos anos”, “que davam sombra verde-claro”, mas “que foram cortadas cinqüenta anos depois”). Ele terá de descer acoplado ao segundo narrador, repito, para reconhecer o íntimo espaço onírico (o diferenciado interior da Casa Onírica) daquele que é realmente o dono do ato de narrar (o narrador-proprietário); terá de descer “devaneando, em um mundo de profundidade”, porque, no momento, esse mundo especial estará/está representando o seu recente invólucro de atuação ficcional (agora simplesmente como personagem).

Um dia, como se tudo tivesse bem pensado, lhe disse a Caxinauá:

─ Agora você vai para Manaus...

Ele não disse nada, mas sabia que ela tinha razão. O Manixi não mais existia, e o Palácio onde ele agora morava estava em ruínas. A Caxinauá recomendou que ele procurasse Ivete e Juca das Neves. Em uma semana Ribamar saiu dali. 

“Sem pai nem mãe, nem parente algum de que tivesse notícia”. Em um dia qualquer do presente histórico (“como se tudo tivesse bem pensado”, muito consciente de que a grandeza imperial do Manixi “não mais existia”, consciente de que “o Palácio onde ele agora morava”, em seus sonhos de “meia-noite psíquica”, “estava em ruínas”), o neo-personagem Ribamar de Sousa se vê afastado do posto de primeiro narrador, submete-se a um segundo narrador (que contará aos leitores a sua ascensão e glória na Cidade de Manaus), e, atendendo a um pedido de Maria Caxinauá, resolve mudar-se para Manaus.
Neste ponto do relato, o(s) narrador(es) rogeliano(s) sofre(m) o que Gaston Bachelard denomina “endosmose do devaneio e das lembranças” , o que configura a necessidade de voltar(em)-se para dentro, protegido(s) por uma membrana ou placa porosa (de acordo com os ensinamentos da Física), em outras palavras, um renovado desenrolar ficcional entre duas matérias líquidas (ambas propensas à profundidade) de espessuras corpóreas diferentes.
No início do romance, o primeiro narrador Ribamar de Sousa apresentou a sua trajetória ficcional de dentro para fora (a técnica do olhar), buscando, por meio de simulacro narrativo (marca das narrativas pós-modernas), retomar a própria história de vida do segundo narrador pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração e a história sócio-mítico-substancial do Estado do Amazonas. O ato de narrar de dentro para fora, resguardado pelo aparato histórico e pelo arcabouço mítico particular e/ou universal, ao mesmo tempo em que revelava um passado de glórias (familiares e sociais; de luxo e de riquezas), provindos da extração da árvore da Seringa, desenvolveu-se muito bem camuflado, propiciando ao primeiro narrador a exterior explanação de verdades não-autorizadas pela consciência intelectualizada do segundo narrador.
Aquele caminhar ficcional de dentro para fora, aquele percorrer pelos infernais e mortíferos caminhos fluviais do Amazonas (um Caronte pós-moderno), que custou ao escritor dez anos de pesquisas históricas e reformulações narrativas, para a elaboração de sua proposta de criação ficcional (sem nenhuma dúvida, uma diferenciada criação ficcional), favoreceu ao narrador principal, aquele que viria em seguida, a possibilidade de singular rendimento ficcional e de fixar as bases verossímeis de seu ato de narrar, para, com este favorecimento ímpar, convencer o leitor do valor de sua Verdade.
No segundo instante metafísico, suspenso entre o antes e o depois , no momento de um segundo renovado impasse narrativo (o primeiro foi depois da morte dos “parentes” e o surgimento de Paxiúba, o conhecimento do arcabouço mítico silvícola e universal, de dentro para fora), surge o comando de Maria Caxinauá, enviando-o para Manaus (o retorno de fora para dentro). O Manixi ficcional já estava em ruínas, acenando para a possibilidade de um final narrativo não condizente com as propostas criativas do escritor. O acionamento da figura mítica de Maria Caxinauá foi de fundamental importância, porque foi, por intermédio dela, que o segundo narrador intuiu/intui a finalização de seu romance. Neste segundo e último impasse narrativo, novamente evidencia-se a extraordinária força do arcabouço mítico (repito, agora de fora para dentro). A deusa lunar Maria Caxinauá reenviou o personagem Ribamar até às citadinas dimensões interiorizadas e ensolaradas de Manaus (a guardiã das trevas do Manixi, a plenipotenciária das mortes dos algozes de seu povo, os seus próprios cruéis carcereiros, a poderosa agenciadora da destruição do Manixi ─ destruição da dimensão infernal da Floresta ─, cuja missão mítico-ficcional foi/é representar seu povo, dominado por potências estrangeiras, e destruí-las), foi exatamente ela a induzir o personagem-narrador a buscar “o dinamismo dos corredores e dos labirintos da imaginação dinâmica”  de quem narra. Por que Maria Caxinauá incentivou Ribamar de Sousa a mudar-se para Manaus? Não há como negar o fato de que ela, a Maria Caxinauá, escolheu o seu máximo vingador. E este rigoroso vingador teria de ser um representante do povo (o primeiro narrador-personagem), o ungido, o assinalado pelo narrador principal para destronar as familiares potências capitalistas estrangeiras que sugaram as reservas produtivas do Estado do Amazonas (e, por extensão, do Brasil, e dos Países do chamado Terceiro Mundo) e, assim, por acréscimo, teria de ser ele, o Ribamar de Sousa, o representante da burguesia manauara da segunda metade do século XX, o escolhido para reerguer a moral de seus desesperançados e escravizados parentes retirantes e dos indígenas martirizados, fossem eles Caxinauás ou não. No titânico e histórico duelo entre classes sociais discordantes, o representante do povo ─ dos subjugados retirantes nordestinos e dos índios dizimados ─ haveria de sair vencedor, de acordo com as novas leis da recente pós-modernidade socialista.
“Um dia, como se tudo tivesse bem pensado, lhe disse a Caxinauá: ─ Agora você vai para Manaus.” (Lembro-me agora de que, em certo dia do passado histórico dos brasileiros não-abonados, uma desprotegida e amorosa mãe pernambucana disse a seu filho caçula: “─ Agora nós vamos para São Paulo, você vai estudar na Escola Técnica, para ser metalúrgico, e vencer na vida”. E este filho caçula se tornou, em duas seguidas vitórias eleitorais, Presidente do Brasil. E venceu por seu próprio mérito.) E, naquele instante dinamizado, “tudo dentro dele dizia  (àquele futuro Presidente) que ele pisava aquele solo do Estado de São Paulo para vencer”.
Repenso agora o Ribamar rogeliano: “Ribamar desceu a Rua Barroso”. Ficcionalmente, poderia ter subido a Rua assinalada e permanecido por lá (a residência de João das Neves era vizinha a de D. Maria de Abreu), se o poder monetário de João das Neves estivesse firmemente se estabelecido no alto. O poder seja de que ordem for se estabelecerá sempre nas alturas, e no Centro, mesmo que o ambiente revele degradação social. Mas, a subida exige esforço físico, trabalho árduo, e um personagem, descendo, já não visualiza trabalho pesado, apenas mental. Descer a ladeira da rua comodamente, e ao longo da descida adquirir uma sólida riqueza (e o tesouro de Maria Caxinauá era sólido, não era roubado, era realmente dela e de Ribamar ─ ou seja, dos índios dominados e dos retirantes nordestinos escravizado ─ e não de Ifigênia Vellarde) e um papel de destaque no mundo político, seria mais prazeroso. A estadia no Seringal Manixi, como atencioso secretário de Ifigênia Vellarde, abriu-lhe as comportas do conhecimento monetário (e político). Não é por ventura uma função do secretário assessorar e resguardar a fortuna de seu patrão? E, por osmose, não é a partir de tal emprego que se aprende a arte de ganhar dinheiro e socializar-se, ao intermediar as transações pecuniárias do patrão? No entanto, graças ao segundo narrador, antes da aprazível “descida”, o Ribamar de Sousa teria de conhecer e demarcar seu novo ambiente social, o qual já sofria a “estagnação da crise econômica” pós-borracha.

Agora ele se admirava da bela rua, porque Manaus era bela. Calma, profunda, na estagnação da crise econômica, esquecida, abandonada, mas solene. Os grandes e belos palacetes, o ar de soberania art-nouveau ─ Manaus era uma espécie de cidade-fantasma, minimetrópole esquecida, batida pela claridade de um sol esplendidamente brilhante. O brilho escorria pelas pedras de morona das calçadas.

Ribamar descia devagar, passava pela portada da capela de Santa Rita ─ lugar tão sagrado, que não mais existe. A rua deserta. Todas as casas tinham portas e janelas fechadas. Mas um belo lugar, limpo. Lembrava Paris.

Ele se sentia feliz, como se estivesse no início do caminho de sua vitória. Manaus decaída aparecia, para ele, algo que ele podia reerguer e que amava. 

Ribamar “se admirava da bela rua, porque Manaus era bela. Calma, profunda, na estagnação da crise econômica”. “Manaus era uma espécie de cidade-fantasma, minimetrópole esquecida, batida pela claridade de um sol esplendidamente brilhante”. Reflito as informações sócio-ficcionais, mas necessito investigar a descida do personagem Ribamar pela rua de Manaus, ou seja, ao profundo mundo do segundo narrador rogeliano, auxiliada pela filosofia bachelardiana:

Seriam precisas longas páginas para expor, em todos os seus caracteres e com todos os seus planos de fundo, a consciência de estar abrigado. São inumeráveis as impressões claras. Contra o frio, contra o calor, contra a tempestade, contra a chuva, a casa é um abrigo evidente, e cada um de nós tem mil variantes em suas lembranças para animar um tema tão simples. Coordenando todas essas impressões e classificando todos esses valores de proteção, perceberíamos que a casa constitui, por assim dizer, um contra-universo ou um universo do contra. Mas é talvez nas mais frágeis proteções que sentiremos a contribuição dos sonhos de intimidade. Basta pensar, por exemplo, na casa que se ilumina no crepúsculo e nos protege contra a noite. Logo temos o sentimento de estar no limite dos valores inconscientes, sentimos que tocamos um ponto sensível do onirismo da casa. 

Ribamar (depois da ascensão e queda do Seringal Manixi, buscando uma casa onírica que difunda uma luz incomum em seu diferenciado crepúsculo existencial) se sente “feliz”, a caminho de “sua vitória” sócio-político-ficcional, porque o segundo narrador iluminou-lhe o atual itinerário narrativo, uma vez que este segundo se sentia seguro, abrigado nos sonhos de sua própria intimidade, como profundo conhecedor daquelas imediações citadinas. Refletindo esta Casa/Cidade “esplendidamente brilhante”, ainda posso recuperar uma outra assertiva bachelardiana. A Casa/Cidade iluminou-se, quando da entrada de Ribamar, porque, naquele preciso instante (instante metafísico), ela era “uma ilhota de luz no mar das trevas” do escritor (trevas representativas do abandono da amada terra natal), e em sua “memória, uma lembrança isolada em anos de esquecimento” . Em verdade, quem está descendo comodamente e criativamente a Rua Barroso (um dos labirintos em declive, para o fundo, da inesquecível Casa/Cidade) é o dono do relato ficcional. Quem gostaria de reerguer a Cidade amada, “esquecida, abandonada, mas solene”, é o segundo narrador rogeliano. Quem está, em um presente histórico resgatado da própria casa onírica, a se sentir feliz, “como se estivesse no início do caminho de sua vitória”, avaliando a beleza da Cidade, é o escritor dos sonhos profundos aninhados nos íntimos segredos de sua “meia-noite psíquica onde germinam virtudes de origem” . O sonhador está a vaguear suas lembranças pelas ruas de sua cidade natal. É ele quem está a descer devagar a Rua Barroso, “passa pela portada da capela de Santa Rita”. É ele quem percebe solitariamente que a rua está deserta e é também o que enxerga todas as casas com as portas e janelas fechadas (fechadas para o escritor?).
No entanto, “que belo lugar”! Tão “limpo”! “Lembrava Paris”. O Ribamar até então era apenas um “caboclo mal vestido, calças de brim, camisa de algodão cru de dura goma, chapéu de palha na cabeça e mala de madeira enrolada na mão”. Quem estava a se lembrar de Paris ao apreciar a Cidade de Manaus? O primeiro ou o segundo narrador? Ou um terceiro viajante-narrador, profundo conhecedor da Cidade de Paris? Como poderia o Ribamar de Sousa da “mala de madeira enrolada na mão”, ou mesmo o segundo narrador, lembrar-se de Paris? Seria a Paris decalcada no “Cosmorama”, aquele interessante aparelhozinho ótico que o acompanhou quando de sua peregrinação até ao Seringal Manixi?

Ele se sentia feliz, como se estivesse no início do caminho de sua vitória. Manaus decaída aparecia, para ele, algo que ele podia reerguer e que amava.

O último dos empregados do Armazém das Novidades fora-se da cidade tentar a vida em São Paulo e o emprego era seu. O Armazém, entretanto, estava quase fechando. Ribamar pouco receberia, trabalharia em troca de casa e comida, como faxineiro, balconista, confidente.

Naquela mesma noite, depois do jantar, o patrão conversava com ele. Ribamar contara a sua vida, (...).

Juca das Neves discorreu sobre suas doenças e sua desgraça. 

Naquela mesma noite Ribamar de Souza se instalou no porão. Encontrou abandonado o Armazém, e durante todo o dia em que ali esteve não se fez nenhum negócio. Era como se a peste desabasse sobre Manaus. A crise se demonstrava naquele silêncio quente, ao pôr-do-sol, luzes moribundas, o apagar do apogeu capitalista. A Amazônia ficou sem 80% de sua economia, um deserto morto, estéril, sobre a planície encharcada numa crise que durou meio século. As famílias ricas partiam para Paris, Lisboa. Quem ficou, estava quase morto. Fortunas colossais se reduziram a pó. Maurice Samuel, um dos ricos, perdeu até os móveis de sua casa, penhorados, e mudou-se para a pequena casa alugada na Silva Ramos. Jóias eram vendidas a qualquer preço. Mulheres ficavam viúvas, passavam a costurar, para sobreviver. O capital desapareceu. Tudo que era sólido se desfazia no ar e ruía como um castelo de cartas. O Teatro Amazonas foi abandonado, transformado em depósito de borracha velha. O que sobrou foi muito pouco, mas era o que eu mais amava. 

Aquele era um cômodo sem janela, debaixo da escada, e ali dentro sentia-se muito calor, umidade e mofo.

Para Ribamar, um luxo. Naquele quarto, durante uma década, vivera a finada Benedita, velha empregada de Juca das Neves, muito asseada. Mas na parede mofada a umidade alargara duas manchas pardas. Ribamar armou a rede, deitou-se. Poderia sair sem ser visto pelas pessoas da casa, pelo corredor lateral. No primeiro andar, para onde se mudaria depois, ouvia-se o piano de Melina. Juca das Neves já se tinha recolhido. (...).  

Diz o narrador de Rogel Samuel, ao refletir ficcionalmente o declínio sócio-econômico da Cidade de Manaus: “Tudo o que era sólido se desfazia no ar e ruía como um castelo de cartas. O Teatro Amazonas foi abandonado, transformado em depósito de borracha velha. O que sobrou foi muito pouco, mas era o que eu mais amava”. O Teatro Amazonas, mesmo transformado em depósito de borracha velha, era o local que o narrador mais amava. O Teatro Amazonas, o símbolo da Cidade manauara, se estabeleceu no alto, como marca do poder da era da borracha. Posteriormente, “em ruínas”, significou a decadência de um primitivo Império capitalista, o de base familiar. Uma outra forma de Capitalismo Selvagem estava a surgir no mundo: o Capitalismo sem freios das multinacionais estrangeiras. Naquele instante universalmente dinamizado, o Teatro tornou-se um artigo sem serventia para os manauaras, um monumento do passado em ruínas, abrigado em uma Cidade em ruínas sócio-financeiras. No entanto, para o narrador-cidadão do mundo, ainda era o lugar mais amado (não seria de se admirar o fato de que, no momento, neste ano de 2008, o escritor aqui realçado esteja a escrever um romance chamado Teatro Amazonas). Ao teorizar filosoficamente sobre a “endosmose do devaneio e das lembranças, Bachelard reinterpreta a “casa onírica” de Rilke:

Quando o sonho se apodera assim de nós, temos a impressão de habitar uma imagem. Nos Cadernos de Malte Laurids Brigge, Rilke escreve precisamente (trad. fr., p. 230): “Estávamos como numa imagem.” E precisamente o tempo passa de um lado e de outro, deixando imóvel essa ilhota da lembrança: “Tive o sentimento de que o tempo de repente estava fora do quarto.” O onirismo arraigado assim localiza de algum modo o sonhador. Em outra página dos Cadernos, Rilke exprimiu a contaminação do sonho e da lembrança, ele que tantas andanças fez, que conheceu a vida nos quartos anônimos, nos castelos, nas torres, nas isbás, vive agora “em uma imagem”. “Jamais tornei a ver desde então essa estranha morada... Tal como a encontro em minha lembrança com desenrolar infantil, não é uma construção; está completamente incorporada e repartida em mim; aqui um cômodo, ali um outro, e acolá um trecho de corredor que não liga esses dois cômodos, mas está conservado  em mim como um fragmento. É assim que tudo está disperso em mim, os quartos, as escadas que desciam com uma lentidão tão cerimoniosa, outras escadas, vãos estreitos subindo em espiral, em cuja obscuridade avançávamos como o sangue nas veias.” (p. 33)

“Como o sangue nas veias”! Quando estudarmos mais particularmente o dinamismo dos corredores e dos labirintos da imaginação dinâmica, haveremos de nos lembrar dessa observação. Ela dá testemunho aqui da endosmose do devaneio e das lembranças. A imagem está em nós, “incorporada” em nós, “repartida” em nós, suscitando devaneios bem diferentes conforme sigam corredores que não levam a parte alguma ou quartos que “encerram” fantasmas, ou escadas que obrigam a descidas solenes, condescendentes, indo buscar lá embaixo algumas familiaridades. Todo esse universo se anima no limite dos temas abstratos e das imagens sobreviventes, nessa zona em que as metáforas adquirem o sangue da vida e depois se apagam na linfa das lembranças.

Parece então que o sonhador está pronto para as mais longínquas identificações. Ele vive fechado em si mesmo, torna-se fechamento, canto escuro. As palavras de Rilke expressam esses mistérios. 

O segundo narrador rogeliano, ao contato com a “endosmose do devaneio e das lembranças” (como se “a endosmose do devaneio e das lembranças” do escritor fosse “um sangue nas veias” e a película que recobre o sangue das veias simbolicamente e dinamicamente separasse o interior do exterior), buscou, em princípio, as descidas de sua antiga morada. Em um primeiro momento interativo, o seu personagem Ribamar foi ao encontro de suas antigas impressões infanto-juvenis, sobre a Cidade de seus desejos intensos. A Casa/Manaus impunha ser revisitada, e exigia uma descida às profundezas das lembranças (memória) e das recordações (lirismo). Durante a renovada visita, o personagem Ribamar subiu e desceu, para, posteriormente, subir como um vitorioso, as poucas ruas íngremes de Manaus. (Não há morros em Manaus. Os limites do olhar dependem da Floresta).

Se quisermos ultrapassar a história ou mesmo, permanecendo nela, destacar da nossa história a história sempre demasiado contingente dos seres que a sobrecarregaram, perceberemos que o calendário de nossa vida só pode ser estabelecido em seu processo produtor de imagens. Para analisar o nosso ser na hierarquia de uma ontologia, para psicanalizar o nosso inconsciente enterrado em moradas primitivas, é preciso, à margem da psicanálise normal, dessocializar nossas grandes lembranças e atingir o plano dos devaneios que vivenciávamos nos espaços de nossas solidões. Para tais indagações, os devaneios são mais úteis que os sonhos. E elas mostram que os devaneios podem ser bem diferentes dos sonhos.

Então, diante dessas solidões, o topoanalista interroga: o aposento era grande? O sótão estava atravancado de coisas? O canto era quente? E donde vinha a luz? Como também, nesses espaços, o ser tomava contato com o silêncio? Como ele saboreava os silêncios tão especiais dos diversos abrigos do devaneio solitário?

Aqui o espaço é tudo, pois o tempo já não anima a memória. A memória ─ coisa estranha! ─ não registra a duração concreta, a duração no sentido bergsoniano. Não podemos reviver as durações abolidas. Só podemos pensá-las, pensá-las na linha de um tempo abstrato privado de qualquer espessura. É pelo espaço, é no espaço que encontramos os belos fósseis de duração concretizados por longas permanências. O inconsciente permanece nos locais. As lembranças são imóveis, tanto mais sólidas quanto mais bem espacializadas. Localizar uma lembrança no tempo não passa de uma preocupação de biógrafo e corresponde praticamente apenas a uma espécie de história externa, uma história para uso externo, para ser contada aos outros. Mais profunda que a biografia, a hermenêutica deve determinar os centros de destino, desembaraçando a história de seu tecido temporal conjuntivo que não atua sobre o nosso destino. Mais urgente que a determinação das datas é, para o conhecimento da intimidade, a localização nos espaços da nossa intimidade.

Com demasiada freqüência a psicanálise situa as paixões “no mundo”. Na verdade, as paixões cozinham e recozinham na solidão. É encerrado em sua solidão que o ser de paixão prepara suas explosões ou seus feitos.

E todos os espaços das nossas solidões passadas, os espaços em que sofremos a solidão, desfrutamos a solidão, desejamos a solidão, comprometemos a solidão, são indeléveis em nós. E é precisamente o ser que não deseja apagá-los. Sabe por instinto que esses espaços de sua solidão são constitutivos. Mesmo quando eles estão para sempre riscados do presente (...), mesmo quando não se tem mais o sótão, mesmo quando se perdeu a mansarda, ficará para sempre o fato de que se amou um sótão, de que se viveu numa mansarda. A eles voltamos nos sonhos noturnos. Esses redutos têm valor de concha. 

O segundo narrador rogeliano ultrapassou a história de sua anterior realidade sócio-mítico-substancial (“a história sempre demasiado contingente dos seres que a sobrecarregaram”) e encaminhou o personagem Ribamar de Sousa até ao profundo espaço de solidão do plenipotenciário do ato de narrar. O Ribamar, por sua vez, levou o segundo narrador ao porão da casa de Juca das Neves. O porão não era grande, “era um cômodo sem janela, debaixo da escada, e ali dentro sentia-se muito calor, umidade e mofo”, mas, para Ribamar, “era um luxo”. Era “um luxo” porque se substancializou como o lugar preferido d’O Amante das Amazonas, depósito “atravancado de coisas” ─ saberes recebidos e saberes adquiridos ─ indispensáveis àquele que soube tão bem saborear “os silêncios tão especiais dos diversos abrigos do devaneio solitário”, ao decorrer de sua própria existência. Ao longo da descida (ao porão dos “belos fósseis de duração concretizados por longas permanências” reflexivas, lembrou-se das palavras de Maria Caxinauá: “─ Agora você vai para Manaus...” Agora sim, o Ribamar teria de dessocializar-se das históricas grandes lembranças e atingir o espaço da solidão do escritor. O personagem Ribamar aceitou a intimação, no lugar do outro narrador, aquele que realmente o conduzia, pois sabia que em Manaus iria vencer (o seu guia ficcional, o “outro eu”, o alter ego, qualquer que seja a nomenclatura para revelá-lo, já era um vencedor). Mas, antes do triunfo, seu guia ficcional o obrigou a visitar o porão de sua “casa onírica”. O porão também estava indelevelmente conservado no segundo narrador, “como um fragmento” de antiga construção a ser desvendada. A casa de Juca das Neves se mostrou/se mostra também como uma extensão da “casa onírica” do escritor amazonense. Algum poderoso Ribamar da família Souza ou da família Samuel certamente a habitou. Todas as casas desta terceira fase do romance compõem apenas uma casa, Manaus, com seus corredores (ruas), suas escadas (as imponentes e artísticas escadarias dos Palácios manauaras e as poucas ruas de ladeiras) e seus diversos cômodos (as casas). Cada cantinho da cidade amada formaliza a “casa onírica” do verdadeiro narrador rogeliano. Tudo está disperso e, paradoxalmente, ligado ao escritor manauara Rogel Samuel. “Parece que o sonhador está pronto para as mais longínquas identificações”. Fechado nele mesmo, graças àquele movimento ficcional “para dentro”, por enquanto, o seu personagem Ribamar terá de conhecer o porão, o “canto escuro” e sagrado de quem realmente narra. O segundo narrador encaminhou os passos de Ribamar até à sua própria gruta de solidão (à gruta de iniciação religiosa, à gruta dos mistérios insondáveis). Bachelard explica tal procedimento: “Há uma raiz onírica única na origem de todas essas imagens” .
“Aquele era um cômodo sem janela, debaixo da escada, e ali dentro sentia-se muito calor, umidade e mofo”. “Para Ribamar, um luxo”, porque era pensado por um narrador pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração em “um tempo abstrato privado de qualquer espessura”. A seguir, guiado pelo segundo narrador, Ribamar vai conhecer a Cidade, a extensão inolvidável do pequeno/dilatadíssimo porão de quem realmente conhece o próprio espaço “de intimidade” a ser ficcionalmente apresentado.

Às vezes uma dialética de intimidade e de expansão adquire, num grande poeta, uma forma tão suave que esquecemos a dialética do grande e do pequeno que, no entanto, é a dialética básica. Então a imaginação já não desenha, ela transcende as formas desenhadas e desenvolve com exuberância os valores da intimidade. Em suma, toda riqueza íntima aumenta ilimitadamente o espaço interior onde ela se condensa. O sonho fecha-se aí e desenvolve-se no mais paradoxal dos gozos, na mais inefável das felicidades. 

E é graças a essa “dialética de intimidade e de expansão”, cujo plenipotenciário é o próprio escritor, por sua vez recortado em material opaco como segundo narrador, que Ribamar sai do porão da casa de Juca das Neves para o sucesso no Orbe sócio-político de Manaus. E ainda graças a essa “dialética de intimidade e de expansão”, o humilde caboclo malvestido, o nordestino da cidade de Patos, Pernambuco, provindo agora do Seringal Manixi, pode “transcender” as anteriores “formas desenhadas”, históricas, e se desenvolver exuberantemente, graças aos “valores da intimidade” do segundo narrador.

Naquele dia, Ribamar conhecera o Hotel Cassina, em decadência, a se transformar no Cabaré Chinelo. Conhecera o Alcazar, a Livraria Royal, na Rua Municipal, 85, expostas as novidades de Garcia Redondo, de João Grave, de Júlio Brandão e Bento Carqueja ─ autores da moda. Ali havia um livro de Carmen Dolores, outro de Haeckel. Eram panegíricos e leitura recreativa. A “Biblioteca para o Povo”, a “Biblioteca Racionalista”. Os Serões da Aldeia, de João de Lemos. Um livro se intitulava De cara alegre, custava $50. Juca das Neves tinha parte da biblioteca de Pierre Bataillon em casa. Melina não tocava mal. Ribamar recordava-se de Pierre Bataillon tocando Schubert. Alvarengas rebocavam pélas de borracha. Ribamar passara pela porta do London Bank. As alvarengas suaves entravam na porta do banco. Ivete, quando era servente, andava quase nua. Ribamar estranhou encontra-la, agora, grande dama, casada com Antônio Ferreira. 

“Naquele dia, Ribamar conhecera o Hotel Cassina, em decadência, a se transformar no Cabaré Chinelo”, conheceu também “a Livraria Royal”, conheceu os “valores da intimidade” de quem nasceu para desfrutar os essenciais prazeres da vida, do luxo (hotel deluxo) ao conhecimento (livraria), mas que, momentaneamente, se encontrava a vivenciar algumas perdas materiais (a perda do nome, da importância social em sua cidade de nascimento). A partir da endosmose do segundo narrador, o agora personagem Ribamar de Sousa, que, no momento, está a centralizar o romance pós-moderno/pós-modernista, pode instalar-se no porão da casa de Juca das Neves para, posteriormente, intuir, com acuidade, “o apagar do apogeu capitalista” de base familiar no Estado do Amazonas (“o Hotel Cassina a se transformar no Cabaré Chinelo”) e, conseqüentemente, a desestabilização sócio-econômica de sua Capital centralizadora, Manaus (até hoje, a sua única cidade maior).
Em um parágrafo, à moda pós-moderna/pós-modernista, o alter ego de Rogel Samuel resume a catástrofe que se abateu sobre aquela região do Amazonas, sobre sua raiz sócio-familiar, sobre sua própria dinâmica de vida, depois dos chamados anos dourados de meteórica riqueza. “Meio século” durou a crise econômica. “As famílias ricas” partiram para a Europa; “fortunas colossais se reduziram a pó”; “mulheres ficavam viúvas” e “passavam a costurar, para sobreviver”; “jóias eram vendidas a qualquer preço”, e, inclusive, “Maurice Samuel, um dos ricos” (o avô paterno do escritor Rogel Samuel), “perdeu até os móveis de sua casa, penhorados, e mudou-se para pequena casa alugada na Silva Ramos”. A Cidade estava abandonada, desgovernada. Os laços familiares estavam destruídos. Os filhos, abandonando os pais, as raízes, em busca de outras regiões financeiramente mais compensadoras. Inúmeros Ribamares saindo de Manaus, com tigelinha de flandres na mão em busca de serviços bem remunerados (ou não) nas capitais de outros Estados do Brasil. E as perguntas não obtinham respostas: Por que o capital desaparecera da Cidade e tudo que era sólido, desfizera-se no ar e ruíra como um castelo de cartas?

Era impossível salvar o Armazém das Novidades, do qual só restavam móveis velhos, um luxo fora de moda. Apesar de tudo, Ribamar abria diariamente a loja. O patrão não aparecia, para não se humilhar junto aos credores. Abatido, prostrado, quase sempre bêbado, se escondendo em casa como se uma doença o tivesse aprisionado. Juca das Neves envelheceu logo. Era um homem aniquilado? O dinheiro começava a faltar para a alimentação. Ele vendia objetos e jóias para poder ir ao mercado. Naquele dia se vencia uma das letras que ele não podia saldar. Por isso estava afundado na cama, à espera da morte.

Mas Ribamar apareceu no limiar da porta. 

“Era impossível salvar o Armazém das Novidades do qual só restavam móveis velhos, ou seja, um luxo fora de moda. Apesar de tudo, Ribamar abria diariamente a loja”, pois dela dependia a sua futura projeção social. Juca das Neves, “um dos ricos” que ficara pobre, à época da recessão, “envelheceu logo”, “era um homem aniquilado”. “Naquele dia se vencia uma das letras que ele não podia saldar. Por isso estava afundado na cama, à espera da morte”. “Mas Ribamar apareceu no limiar da porta”, acenando-lhe com a possibilidade de recuperação financeira e social.
Por mais que me apegue à filosofia bachelardiana, para refletir e/ou teorizar sobre a endosmose do segundo narrador rogeliano, levando o seu primeiro narrador à condição de personagem ficcional sem poder narrativo, e, com isto, impelindo-o a interagir com o recanto mais profundo de sua própria “casa onírica”, não posso deixar de perceber que “este” mesmo narrador possui conhecimento histórico-político de elevadíssimo nível. Assim, este parágrafo reflete, neste instante ficcional e metafísico, um interessante momento paradoxal. Ao mesmo tempo em que o primeiro narrador se transforma em importante personagem (de fora para dentro), visitando os recantos íntimos da “casa onírica” do segundo, “este” segundo narrador passa a desenvolver um novo “olhar de dentro para fora”, avaliando, inclusive, a derrocada financeira de Maurice Samuel, o pilar da família paterna do escritor, naquelas antigas fortificações amazonenses. Os anos de perdas sócio-financeiras foram drásticos para a família Samuel, de origem judaico-francesa. Os brilhos dos sobrenomes notáveis ─ quase todos estrangeiros ─ já não causavam reverência à nova sociedade que estava surgindo, provinda das camadas populares. Aquele fora o momento do seringueiro escravo, do retirante nordestino que, durante anos, muito lutou pela vida, naqueles entrançamentos da Floresta, “a ferir a árvore da borracha, a defumar o látex, a empilhar as pélas de borracha, a ouvir aquele permanente ruído de gorgulho oleoso do acotovelamento das águas escuras do Igarapé do Inferno” , pois os poderosos seringalistas estavam acuados pelos novos rumos da política monetária. Juca das Neves estava vivendo o seu tempo azarado de bancarrota, mas, a ele estava destinado um anjo salvador. Foi aí que Ribamar de Sousa apareceu “no limiar da porta”. O herdeiro de fato do “ontem eterno” sócio-político, ou seja, o segundo narrador alter ego do escritor, não poderia buscar para si a honraria de salvar o Armazém das Novidades, e, por conseqüência, a Cidade. As entrópicas transformações sócio-políticas contrárias às Leis Políticas anteriores, naquele momento, determinavam as novas direções partidárias. Aquele era um instante de impasse histórico, a privilegiar o oprimido em detrimento do opressor.

Ribamar não tinha aberto o Armazém naquele dia. Já estava amasiado com alguém que você finalmente vê aparecer nesta minha obra ─ Diana Dartigues. Mas ainda a deixarei em paz, por enquanto. Diana era muito mais nova do que ele.

Fazia anos que ele trabalhava ali, quase sem nada receber. Mas Ribamar aprendeu com espantosa velocidade e logo compreendeu a situação da firma. Juca das Neves tinha sabido confiar nele ─ em parte porque ele era único. Como sinal de amizade, deu-lhe um cômodo na parte superior da casa, um aposento confortável, com duas janelas que se abriam para o jardim. 

Ribamar já não era o mesmo. Elegante, bonito e bem cuidado, tinha-se transformado no homem que você veio a conhecer já velho. Andava com as melhores roupas, (...). Ribamar exibia-se numa coleção de paletós caros, o H. J. inglês, camisas de seda de colarinho duro. 

─ Diga-me, seu Juca: Quanto valem suas casas na Frei José dos Inocentes?

─ Nada, meu filho ─ respondeu o velho, cansado. São casas velhas, hipotecadas...

Ribamar avançou sobre a cama e sentou-se numa cadeira próxima. Acendeu um cigarro. Estava estranhamente calmo. Estava estranhamente confiante. E
começou a falar. 

A conversa foi demorada. (...). Do que se depreendia da conversa, e se ficou sabendo, Ribamar ia conseguir que as dívidas fossem adiadas, e ele, Ribamar, ia viajar no dia seguinte até Transvaal, na Rua das Flores, que estava à venda, e ia ele, Ribamar, fazer em pessoa uma proposta à Dona Conchita Del Carmen, e trazer as mulheres de lá para a cidade de Manaus, para as casas da Frei José dos Inocentes, onde iam ser instaladas. Em suma, Ribamar ia abrir o maior negócio da história da crise amazonense e único rentável. Que ia prosperar dali em diante, principalmente porque teriam o apoio da família Gonçalves da Cunha, do Comendador Gabriel, então Governador, que daria a proteção policial, e Juca das Neves se comprometia a saldar as dívidas quando o lugar estivesse funcionando a contento. 

Ribamar apareceu resguardado pelo poder ficcional do segundo narrador. Este segundo, como representante legal do antigo poder em decadência, como representante daqueles que perderam o nome ilustre do passado (sobrenome), não se viu no direito de, para si mesmo, reivindicar uma demanda para um renovado poder sócio-político na Cidade de suas aspirações maiores, na Cidade de seu inolvidável amor filial. A população, até aquele momento, inferiorizada, menosprezada socialmente e politicamente, começava a reagir contra os abusos do antigo poder dos tiranos magnatas, naquele agonizante momento de impasse político. A criativa saída ficcional do escritor de O Amante das Amazonas, sem dúvida, um escritor de origem abastada (neto de Maurice Samuel, aquele magnata amazonense de origem judaico-francesa que perdeu tudo, à época da recessão, da crise), possuidor de interativa consciência literária, mas, felizmente, não-vigiada, foi delegar tal função ao seu primeiro narrador, o Ribamar (d’Aguirre) de Sousa, o representante do povo.

A crise se demonstrava naquele silêncio quente, ao pôr-do-sol, luzes moribundas, o apagar do apogeu capitalista. A Amazônia ficou sem 80% da sua economia, um deserto morto, estéril, sobre a planície encharcada numa crise que durou meio século. 

Repensando o problema sócio-político-e-financeiro da Cidade de Manaus, ou seja, a crise econômica que se abateu sobre a Capital do Amazonas (a perda do poder político sócio-familiar, o qual gerenciava a economia do Estado do Amazonas, naquele momento de impasse), depois do auge da extração da árvore da Seringa (da borracha) e, posteriormente, do apagar do brilho incomum da Zona Franca, gradativamente, do princípio do século XX ao final dos anos oitenta, percebo a necessidade de repensar a questão pelo ponto de vista de Michel Foucault. Ao questionar “genealogia e poder”, em todos os seus matizes, em meados dos anos setenta do século XX, ele afirmou:

A genealogia seria, portanto, com relação ao projeto de uma inscrição dos saberes na hierarquia de poderes próprios à ciência, um empreendimento para libertar da sujeição os saberes históricos, isto é, torná-los capazes de oposição e de luta contra a coerção de um discurso teórico, unitário, formal e científico. A reativação dos saberes locais ─ menores, diria talvez Deleuze ─ contra a hierarquização científica do conhecimento e seus efeitos intrínsecos de poder, eis o projeto destas genealogias desordenadas e fragmentárias. Enquanto a arqueologia é o método próprio à analise da discursividade local, a genealogia é a tática que, a partir da discursividade local assim descrita, ativa os saberes libertos da sujeição que emerge desta discursividade.

Todos esses fragmentos de pesquisa, todos estes discursos, poderiam ser considerados como elementos destas genealogias, (...). Questão: por que então não continuar com uma teoria da descontinuidade, tão graciosa e tão pouco verificável, por que não analisar um novo problema da psiquiatria ou da teoria da sexualidade, etc.? É verdade que poderíamos continuar (...) se não fosse um certo número de mudanças na conjuntura. Em relação à situação que conhecemos nestes últimos quinze anos, as coisas provavelmente mudaram; a batalha talvez não seja mais a mesma. Existiria ainda a mesma relação de força que permitiria fazer prevalecer, fora de qualquer relação de sujeição, estes saberes desenterrados? Que força eles têm?

Repenso o doado: A história das linhagens familiares (aquelas que embarcaram no e/ou embasaram o capitalismo inicial), se fosse retomada, naqueles anos setenta, assinalados por Michel Foucault, seria “um empreendimento para libertar da sujeição [submissão, dependência, subordinação] os saberes históricos de base familiar, isto é, torná-los capazes de oposição e de luta contra a coerção [constrangimento, exigência para uma nova idéia de produção capitalista, ou seja, a manufaturação industrial renovada, com novos argumentos, para a fabricação de produtos em grande quantidade] de um discurso teórico, unitário, formal e científico”. Quanto àqueles renovados argumentos dos antigos saberes desenterrados, que força eles teriam, naqueles anos setenta de Michel Foucault? Seria a força da renovação capitalista, que se efetivou por intermédio das novas normas do capitalismo mundialmente industrial? 
Usando outras palavras, aquele “discurso” para uma provável “reativação dos saberes locais contra a hierarquização científica do conhecimento e seus efeitos intrínsecos de poder”, dos anteriores últimos quinze anos até ao momento de Michel Foucault (anos setenta), conformaria e se adaptaria à expressão discursiva poderosa do “capitalismo selvagem” como representante do domínio das grandes empresas estrangeiras, e, inclusive, com o consentimento dos influentes mandatários de uma determinada região de qualquer parte do mundo capitalizado. Tal proposta ─ com o passar do tempo ─ não se efetivou por serem “desordenadas e fragmentárias”, segundo Michel Foucault. “A reativação dos saberes locais contra a hierarquização científica do conhecimento e seus efeitos intrínsecos de poder”, naquele momento, não pode impedir o crescimento de uma novíssima etapa do “capitalismo selvagem” em seu ativo exercício de poder, distanciado dos “saberes locais”.
Penso que foi exatamente isto o que aconteceu na região de extração da árvore da borracha, no Amazonas e, posteriormente, na Zona Franca de Manaus, pois aqueles “saberes locais” estavam “desordenados e fragmentados” em virtude da falta de base genealógica (eram todos estrangeiros naquela realidade da Floresta Amazonense, incluindo os nordestinos brasileiros que ali ficaram ricos) e da ambição desmedida de seus proprietários. A “hierarquização” do Capitalismo representativo do domínio das grandes empresas estrangeiras estava assentada e culminada (elevada) em outra paragem, afastada das picuinhas próprias dos “saberes locais” da região amazonense (e mesmo de outras regiões submissas do chamado Terceiro Mundo). Uma “genealogia” estrangeira, muito mais ativa e preparada, uma “genealogia maior”, um “saber local” muitíssimo mais intensificado, naquele momento, ou talvez desde o princípio do Capitalismo Original, coagiu os “saberes locais menores” (usando aqui a expressão de Jules Deleuze, distinguida por Michel Foucault) do Terceiro Mundo.
No caso do livro de Rogel Samuel, “os saberes locais” amazonenses foram obrigados a uma temporária retirada de cena, e, com isto, submetidos ao renovado capitalismo industrializado, conhecido pelo nome de Zona Franca de Manaus e realçado criativamente no romance O Amante das Amazonas, em sua terceira fase. A “crise” posta em evidência pelo narrador rogeliano, “o apagar do apogeu capitalista”, simplesmente demonstra que, no primeiro momento do capitalismo de base familiar, a extração da borracha já não era do interesse da Matriz Capitalista Pioneira, aquela que, verdadeiramente, dominava os proprietários seringalistas. A chamada Zona Franca ilumina-se a partir do segundo segmento do “capitalismo selvagem” industrial, e, pelos mesmos motivos que levaram à bancarrota os grandes seringalistas amazonenses, como o personagem Pierre Bataillon, assinala-se o desaparecimento da Zona Franca de Manaus (a decadência do “Armazém das Novidades”, a decadência de seu proprietário Juca das Neves), atualmente, neste século XXI, totalmente despersonalizada. Por conseqüência, e pelo meu ponto de vista, o personagem Ribamar de Souza, da terceira fase do romance de Rogel Samuel, assinala uma terceira etapa de poder e riqueza individual na região amazonense: o poder político.

A questão de todas estas genealogias é: o que é o poder, o poder cuja irrupção, força, dimensão e absurdo apareceram concretamente nestes últimos quarenta anos, com o desmoronamento do nazismo e o recuo do estalinismo? O que é o poder, ou melhor ─ pois a questão o que é o poder seria uma questão teórica que coroaria o conjunto, o que eu não quero ─ quais são, em seus mecanismos, em seus efeitos, em suas relações, os diversos dispositivos de poder que se exercem a níveis diferentes da sociedade, em domínios e em extensões tão variados? Creio que a questão poderia ser formulada assim: a análise do poder ou dos poderes pode ser, de uma maneira ou de outra, deduzida da economia? 

Então, por via foucaultiana, retomo algumas questões já levantadas anteriormente. “A Amazônia ficou sem 80% da sua economia”, ou seja, por intermédio da demanda capitalista, que só visava ao lucro e à grandeza de um único “saber” enérgico do chamado Primeiro Mundo, a Amazônia, retratada e recriada pelo escritor Rogel Samuel, tornou-se “um deserto morto, estéril, sobre a planície encharcada numa crise que durou meio século”. A citação foucaultiana eleva-se preciosa. Por meio dela, poderia refletir aqui a questão da “irrupção” do poder capitalista, o qual dominou inteiramente o século XX, além de dominar os países do Terceiro Mundo, incluindo o Brasil. Abstenho-me da reflexão, uma vez que as palavras de Michel Foucault exprimem com intensa propriedade a minha permanente angústia terceiromundista, enquanto brasileira consciente dos “absurdos” histórico-sociais que “apareceram concretamente nestes últimos [setenta e poucos] anos, com o desmoronamento” de muitos núcleos sociais, mundiais, em favor de um único poder capitalista. Entretanto, admito que a minha abstenção se faz viável, porque já visualizo modificações (transformações) no cenário histórico-social destes anos iniciais do século XXI. Penso que o personagem Ribamar de Souza, criado por meio da inventiva especialíssima de Rogel Samuel, poderia/poderá ser realçado como sinalizador destas transformações, em seus aspectos particulares e universais, ou seja, além das fronteiras do “saber local” amazonense e brasileiro.

Depois de alguns anos Ribamar de Souza não só resgatou as dívidas da firma como começou a liberar as casas, sob penhor, e não só as da Frei José dos Inocentes, como a da Rua Barroso, e o próprio prédio do Armazém, que ficou durante todo aquele tempo fechado. Ribamar, com o auxílio de Juca das Neves, modernizou o Armazém das Novidades, passando a representar vários produtos norte-americanos, como as máquinas de costura Singer ─ de enorme popularidade. Ribamar expandiu os negócios e começou a ameaçar o império comercial da poderosa família Gonçalves da Cunha e de seu ex-genro Antônio Ferreira.

Anos depois Ribamar de Sousa era apontado como uma das figuras mais sólidas de Manaus e inimigo político do Comendador Gabriel e de seu ex-genro. O velho Gabriel perdera o prestígio na Capital Federal. Havia um mistério envolvendo a origem do poder de Ribamar de Sousa que ninguém conseguia saber.  

Nas páginas finais do romance de Rogel Samuel, o personagem (anteriormente, primeiro narrador) passa a representar a burguesia manauara pós-borracha, ou seja, será ele o representante da burguesia comercial da Zona Franca, a qual, já naquele momento, estava também, por sua vez, em decadência. Em verdade, o representante de fato da decadente burguesia comercial manauara é o personagem Juca das Neves, o falido proprietário do “Armazém das Novidades”. Penso que o Ribamar (d’Aguirre) de Souza vai além, como representante da burguesia comercial e política de uma diferenciada sociedade manauara (um novo rico; um paupérrimo retirante nordestino que enriqueceu “solidamente” e tornou-se Senador da República).
Assinalo a palavra “solidamente”, porque ela está destacada no romance de Rogel Samuel. A fortuna do personagem ficcional Ribamar de Souza, por vários motivos, é sólida. O dinheiro que amealhou, posteriormente, em Manaus, não poderá ser conceituado historicamente como ilegal. O fato de ter transformado as casas da Rua Frei José dos Inocentes ─ hipotecadas por Juca das Neves ─ em “puteiro”, não desmerece historicamente o talento comercial do personagem. À época, tal comércio, era considerado aceitável. Em verdade, a Rua das Flores ─ em sua exterioridade, como retrato ficcional da prostituição, ou mesmo interiormente, enquanto criação literária ─ realça um dos maiores negócios da crise amazonense pós-borracha.
O que ocorreu na tenção ficcional rogeliana: Depois do falecimento de Juca das Neves, Ribamar de Souza, como sócio do patrão, herda as dívidas do velho, resgata as hipotecas e compra os terrenos da Rua Frei José dos Inocentes, transformando-os em “puteiro”. Por meio de uma transação comercial com a dona do prostíbulo de Transvaal, traslada as “meninas” de “D. Conchita” para Manaus. Posteriormente, induzido naturalmente por Maria Caxinauá (que o enviou para Manaus, depois do declínio econômico do Seringal Manixi), casa-se com Diana d’Artigues, neta da Caxinauá, herdando ─ por intermédio do casamento ─ a fortuna “roubada” pela índia, e, com isto, tornando-se um dos maiores novos ricos da Cidade.
Páginas atrás, afirmei que não considero a apropriação das libras esterlinas de Ifigênia Vellarde, por parte de Maria Caxinauá, como roubo. Reflito conscientemente que tal fortuna pertencia aos índios caxinauás e aos trabalhadores seringueiros (os quais eram escravizados pelo dono do Seringal), portanto, os verdadeiros fraudulentos que se apoderaram do alheio foram os invasores seringalistas, no princípio, filiados ao iniciante “capitalismo selvagem” de base familiar. Bem enlevada na extremidade de minha binária consciência reflexiva ─ refletindo os “juízos afirmativos” e os “juízos negativos” de minha própria realidade social, a realidade social deste início de século XXI, e propensa a “juízos de descoberta”, sejam eles vitais ou ficcionais (cf. Gaston Bachelard) ─, entendo o “roubo” de Maria Caxinauá, assinalado ficcionalmente por Rogel Samuel, pelo prisma do antigo descamisado e escravizado perdedor e atual ganhador.
Contudo, retomando a questão de difícil explicação ─ sobre a fortuna do personagem ─, graças à sua inteligência comercial e ao casamento com a neta abastada de Maria Caxinauá, o ex-retirante pernambucano Ribamar de Souza, torna-se uma personalidade no cenário político manauara, extensivo ao cenário político do Brasil, um momento, certamente e extratexto, de pós-Ditadura Militar (se me aproprio convenientemente das informações sublineares, referentes à passagem do tempo vital, decalcadas no romance de Rogel Samuel). Nas páginas finais do romance, o plenipotenciário da terceira fase da narrativa de Rogel Samuel, aquele que centraliza poderosamente o relato, filia-se a um partido político da região e consegue elevar-se ao cargo de Senador da República e, de modo inclusivo, “apontado como uma das figuras mais sólidas de Manaus e inimigo político do Comendador Gabriel e de seu ex-genro”.
Por ser o relato rogeliano representativo da criativa entropia pós-moderna/pós-modernista dos anos finais do século passado, reflito a atuação do personagem Ribamar, nesta terceira fase desta diferenciada narrativa ficcional ─ ficção pós-moderna/pós-modernista de Segunda Geração ─, como personagem-representante das duas fases do Capitalismo Selvagem aclimatados na Cidade de Manaus ─ no Brasil ─ ao longo do século XX. Em um primeiro momento ─ representativo do capitalismo de base familiar ─, atuando como um subordinado; posteriormente, destaca-se como um dos baluartes do capitalismo industrializado, inclusive como representante comercial, no Amazonas, da indústria norte-americana das máquinas de costura Singer.
 Nos anos finais do referido século, a idéia de globalização se solidificou no mundo, o que ocasionou, posteriormente, o aparecimento de uma fase de transição comercial, industrial e política mais de acordo com os ideais sócio-históricos da pós-modernidade.
Finalizando este capítulo, penso ─ extratexto, certamente, uma vez que a proposição ficcional pós-modernista de Rogel Samuel, reconhecidamente criativa, obsta decodificações vitais ─ que o personagem em questão, nesta terceira fase do romance, foi baseado possivelmente em alguma figura real da Cidade de Manaus, ou seria ele um somatório dos muitos políticos desta recente pós-modernidade, quase todos provindos de famílias humildes e alcançando o panteón da glória político-social. Como já refleti alhures, já nos anos finais do século XX, os herdeiros de sobrenomes notáveis, herdeiros das anteriores grandes famílias políticas ─ herdeiros dos “coronéis” do sertão, ou seja, das regiões of hinterland do Brasil, “majores”, etc., todos possuindo títulos honoríficos comprados ─, com raras exceções, foram relegados ao ostracismo político, perderam o poder do apelido familiar. Os novos políticos brasileiros, os atuais, poderão ser conceituados a posteriori como uma pioneira leva de detentores dos recentíssimos negócios públicos, todos eles almejando o reconhecimento sócio-político de seus sobrenomes familiares, inventados ou não. São eles, esses “humildes” que alcançaram o poder sócio-político, neste início de pós-modernidade, primitivos troncos de um Novíssimo Tempo, e seus herdeiros, em um Futuro Logo-Ali, se considerarão os “donos” das novas leis sociais. Enfim, se o aparato mítico tradicional é algo inerente ao ser humano, seja ele primitivo ou civilizado, a temática do intermitente sempre renomeado “eterno retorno” continuará atuando nas gerações futuras.











XIII – Retrospectiva: Do Palácio do Seringal Manixi a Manaus

Pierre Bataillon X Frei Lothar: Música e lirismo no Manixi

Eu não sou. Sou de outra época. Sou do tempo de um capitalismo primitivo, arcaico, luxuoso, feito tricotado em ouro e pedras preciosas, de um outro modo, daquele tempo em que o Palácio era a imagem em busca de sua natureza profunda. Ali se dispunha de uma sala de música onde se ouvia principalmente Beethoven, de um piano Pleyel, a vitrine onde Pierre Bataillon ostentava sua coleção de violinos (...), as gravuras representando Viotti, Baillot, David, Kreuzer, Vieuxtemps, Joachim; a máscara mortuária de Beethoven, laureado em bronze, de Stiasny. A Biblioteca, em que alguém uma noite leu em voz alta versos de Lamartine. E salas e salas se interrogando para quê, salões e galerias e cômodos se intercomunicando por portas sucessivas que se abriam em galerias e corredores restritos, que se fechavam em si mesmos, ao som do piano de Pierre Bataillon dialogando com o violino de Frei Lothar uma sonata Mozart, como alguém que se concentra em si mesmo, de um poder mortal, ágil e terrível que se expressava nas paredes de estuque pintado, por irisações de um ouro esverdeado e escuro, na entrançadura de seus ritmos de galhadas e folhagens, de uma vegetação alucinada e japonesa que subia por aquelas formas pelo teto multirefletido nos bisotados espelhos de cristal, e nas flores dos lustres de modo a evocar a lembrança de exótico prazer. Sim, sou um velho de um outro século, e ali vivi, observando, aprendendo e comendo durante o longo daqueles anos todos, no círculo e em torno daquela povoação de objetos e móveis antigos, que descreviam monstros consumidores: como na cômoda veneziana a visão da atividade sexualizada da imagem; no armário de Boulle cenas de caça com javalis do consumo e cães mastigando sangrentas aves abatidas a tiros pelo Duque de Chartres e outros cavaleiros fidalgos na idiotia de vistosas calças vermelhas e botas pretas; no silêncio rigoroso do gabinete inglês, na dinâmica, na morfologia prostituta do divã de Delanois; na unidade e variante elíptica do canapé ─ e nos cipós, íris, cardos, insetos estilizados, poliformes, incorporando-se aos móveis e às linhas dos painéis franceses num delírio neo-rococó como não quis a natureza: estátuas sobre lambrequins, rocalhas e rosáceas ecléticas, urnas nas cimalhas dos balcões simbolizando a energia, a ontologia e o desejo do capitalismo de tudo consumir, de tudo gastar, de tudo produzir, de tudo poupar e de tudo faltar e apropriar-se, transbordando e abortando na loucura, na miséria e na morte.   (p. 19)

Esgarçados sobre o tapete, brincam bordados com as sombras e luzes que saem da porta. Reverberações de luzes na lâmina do espelho, foco de velas nos castiçais de ferro e círios que cantam um momento lírico. Quando o coronel toca, elas parecem dançar. As lembranças familiares me levam num aporte imaginativo. (p.76)



Morte de Pierre Bataillon X Declínio do Manixi

O Juruá é um rio de águas de barrela, de águas amarelas, barrosas, lixiviadas, que depositam três dedos de barro grosso no fundo do copo de vidro. Foi nessas águas que Pierre Bataillon e Ifigênia Vellarde desapareceram, em 1910, quando a lancha Angelina naufragou. (p. 77)

Frei Lothar

A sombra da samaumeira tornava mais triste a figura que esperava sentado ficasse pronto o assado, na folha de bananeira, um tambaqui que seria um reforço para seu coração e estômago. Era a primeira e substancial refeição que ele ia comer há dois dias em que vinha viajando. Frei Lothar sentia-se cansado e refletia sobre sua vida e desventura, como a que tinha acabado de sofrer. Ainda ofegava, abalado com a desgraça. Sentia certa desconhecida fragilidade quando menos velho, e por isso sabia que a carga de seus dias na Amazônia chegava ao fim, que agora tinha de abandonar a tudo e se aposentar e morrer.

Que vindo de canoa por um furo entre o Paraná dos Numas, atravessava uma ilha flutuante de mureru quando a canoa picou uma espécie de toalha móvel, num horrível tapete na forma de um mapa do Brasil, formado por crepitantes e armados escorpiões amarelos, na área de vários metros quadrados, uns sobre os outros, e avançavam, atravessando o rio, emigravam e um caboclo começou a gritar e a canoa quase virou.

─ Rápido!, ordenou o padre.

Mas já os escorpiões ameaçavam subir a bordo e Frei Lothar, a atear fogo nos jornais que trazia para o juiz do Calama, enchendo o casco de labaredas e queimando-se todo oh, meu Amazonas!, Deus é grande, mas a Floresta é maior, e eu já não sou o mesmo.

Voltando a recobrar o vigor esperava depois do almoço partir no Barão do Juruá, agora propriedade de Antônio Ferreira, como na verdade tudo ali. Mas Ferreira fizera um mau negócio: o preço da borracha cada vez ia para menos do que valia 100 anos antes, como vira o Frei na viagem que naquele mês fizera ao rio Machado ─

─ os seringueiros dizimados por febres, arrasados pela crise, vazios desde que a borracha do Ceylão, sem o microcyclus, suplantou a produzida ali, e milhares de seringueiros testemunharam o grande fim do gigantesco império, com que grandes fortunas, feitas da noite para o dia, assim desapareciam, e o Amazonas voltava a ser o que era, antes de 1850: o inferno mergulhado na crise econômica que durou meio século e que matou milhares.



Benito Botelho


Quem matou Zequinha Bataillon?

Era no apogeu do preço da seringa cotada a 655 libras a tonelada na Bolsa de Londres, cotação especulativa, que beneficiava o interesse das empresas inglesas no Oriente. Foi o último ano do império amazonense. Depois, o Teatro Amazonas cerrou suas portas, abrindo somente dois anos depois para Villa-Lobos dar um concerto de violoncelo, que foi no dia 12 de junho de 1912. Imediatamente à tragédia o jovem Bataillon chegou de Paris e recebeu Antônio Ferreira a bordo: ali mesmo vendia o Manixi, menos o Palácio, numa transação comercial nunca esclarecida. José foi para o Igarapé do Inferno sem pisar o solo de Manaus, como fazia sempre. (p. 78-79)

Era Zequinha um belo rapaz, selvagem, culto, delicado, forte, corpo apolíneo mas adamado, pele de bronze dourado, misterioso, os olhos amendoados muito negros. Os cabelos finos esvoaçavam. Para alguns, um semi-índio. Para outros, um esnobe parisiense que penetrava a floresta com Paxiúba e homens sempre em busca de aventuras, como quando excursionou nas montanhas do rio Pique Yaco, na caça dos Numas, sem encontrá-los. Era solteiro e não tinha mulher, exceto Maria Caxinauá. Paxiúba dormia a seus pés, como um cão. Maria lhe dava banho. (p. 79)

Ele [Zequinha Bataillon] nasceu no meio do rio, em 1890, a bordo do Adamastor, nascimento anunciado pelos pajés como de um deus que veio de uma estrela distante chamada Thor. (p. 79)

Em 1854, o Visconde de Mauá bloqueava as nações estrangeiras de navegarem o Amazonas e resistiu até sua falência. (p. 79)

O Santa Maria dela Mar Dulce cruzava com o Adamastor poucos meses depois de ter nascido José e para onde, a fim de salvá-lo da malária, que dizimava as crianças da região, foi ele trasladado e transbordado com sua mãe, seguindo para Inglaterra, e de lá para Estraburgo, onde foi deixada a criança com tio Levy, com quem morou os anos de sua infância, primeiro na Praça Kleber no 9, depois em cima da Pharmacie du Dome, até que, em 1894, é trazido de volta ao Manixi, onde fica mais 3 anos até partir de vez, em 97, para Paris, onde morou no Boulevard Saint Germain, e de onde só retornou com 15 anos de idade, em 1905, pouco antes do ataque dos Numas, que foi em meados de novembro. Em 1906 foi de regresso para Paris, para os estudos. (p. 79-80)

O leitor não dará crédito ao que vou narrar, pois eu vi prodígios que ainda agora me surpreendem. Que, sem regressar a concluir seus estudos de Paris ─ estava ele com 18 anos de idade, em 1918 ─ José Bataillon foi-se deixando ficar no Igarapé do Inferno e passou a viver no exótico, pela singularidade, da vida afastada dos costumes e expectativas gerais, os seringueiros arredados várias léguas do Palácio, confinados os Caxinauás e o que restava deles nos confins da Amazônia: Desçamos agora a este mundo ignoto. 

Aqui, percebo um cochilo do digitador da obra de Rogel Samuel, o que, seguramente, não invalida a grandeza de seu relato ficcional pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração (convenhamos que tal incúria, quase sempre, se torna perceptível nas obras literárias de grandes escritores, inclusive, muitos críticos literários já detectaram reverenciados cochilos históricos em alguns romances de Machado de Assis, o nosso grande ficcionista do realismo-naturalismo do final do século XIX). No ano assinalado no parágrafo de Rogel Samuel, Zequinha Bataillon deveria estar completando vinte e oito anos ao invés de dezoito, uma vez que o seu nascimento deu-se em 1890. 

Mas silenciosos, sozinhos, sigamos nós, leitor.

Pois do que pude conseguir de jornais da época e de cartas de familiares, o desaparecimento de Zequinha Bataillon nas margens do Igarapé do Inferno se deu em janeiro de 1912. Não fosse essa uma obra de ficção eu poderia citar, em notas de pé de página, as fontes de onde obtive tal informação. Mas o sumiço do filho de Pierre Bataillon, um homem que vivia debaixo do ouro no Alto Juruá, permanece encoberto de tal mistério, sempre um acontecimento mitificado na imaginação do povo amazonense e acreano, e todas as hipóteses, levantadas então, não se puderam justificar, nem explicar, pelo menos para mim, motivo por que depois recorri àquelas fontes alternativas que tive a felicidade de encontrar, ainda vivas, depoimento dos principais personagens envolvidos que, lastimavelmente, tenho de omitir, mas que o leitor arguto pode logo descobrir se conhecer minha família. Entretanto sei, e de antemão o digo, que esta é apenas uma obra de ficção, e portanto mentirosa, dentre as várias que há na literatura amazonense, e espere o leitor e a leitora o surpreender-se com o que, apesar disso, o fio do destino vai descobrir. Todos os fatos, aqui expostos, foram realidades notáveis e aconteceram realmente para a minha imaginação, e se não tal exatamente como descrevo, até bem mais extraordinariamente talvez se não fosse eu quem estivesse escrevendo, nas peças das partes da composição deste complexo relato. (p. 87-88)


CONCLUSÃO

Por que Antônio Ferreira fez um mau negócio?


Por que Paxiúba matou Conchita Del Carmen? 


Por que Benito Botelho matou Paxiúba? 


Por que o primeiro narrador Ribamar reaparece no final e se despede dos leitores?







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NOTAS